Cidade, Casa e Igreja: sobre
Catingueira,
seus adultos e suas crianças1
Flávia Ferreira Pires
Conta-se que, em finais do século XIX, o vilarejo que se
constituía às margens de
um pé de catingueira2, dando repouso aos viajantes e comerciantes de passagem
entre as cidades de Piancó e Patos (Paraíba), foi salvo de uma
peste de cólera,
através de uma promessa, pelas graças de São Sebastião. Ao
santo é atribuído
o dom de exterminar a fome, a peste e a guerra. São Sebastião
cumpriu a sua
parte na promessa: ninguém adoeceu no vilarejo3. O pagamento da promessa
compreendia a construção de uma capela e a doação ao santo de
todo o lugarejo
que, hoje, compreende parte da Serra da Catingueira4, da cidade e da área rural.
Para saldar a dívida da promessa, foi preciso unir quatro
famílias distintas que
doaram parte de suas propriedades ao santo, o que
posteriormente constituiria a
cidade5.
Assim, juridicamente, todos os terrenos da cidade se tornaram propriedade
do santo. Ainda hoje, a maioria dos terrenos na cidade pertence
ao “Patrimônio
de São Sebastião”. Quem mora nos terrenos do santo paga uma
quantia anual à
igreja, chamada foro, uma espécie de aluguel pelo uso da terra.
O pagamento do
foro é calculado a partir da extensão frontal do terreno. A
cada metro, paga-se R$
1 por ano (pelo menos desde o ano 2000 até 2005). Os moradores
que desejam ser
donos do terreno onde construíram as suas casas podem
negociá-lo, dependendo
da política adotada pelo bispo6.
Além da igreja católica, na cidade há também um centro espírita
de linha
kardecista e três igrejas evangélicas, dentre as quais a
Assembléia de Deus é a mais
antiga e com maior número de fiéis. Para completar o quadro
religioso evangélico
temos, por fim, as igrejas Seguidores de Cristo e Pentecostal
do Evangelho Amor
de Deus7.
Na cidade de Catingueira, apesar da presença do protestantismo e do
espiritismo kardecista, o catolicismo é a religião
predominante. Como se vê, a
própria constituição da cidade está ligada ao catolicismo e à
fé em um santo. Neste
contexto, descrevi alhures que o santo padroeiro é um mediador
entre as religiões
representadas8.
Quanto à localização geográfica, a cidade de Catingueira
situa-se na região
do semi-árido nordestino, no chamado Vale do Piancó, na parte
oeste do Estado
da Paraíba. Catingueira é um município onde estima-se que
metade da população
viva na área rural. Essa população dos
“sítios” (zona rural) vive basicamente do
plantio em pequena escala do milho e do feijão, ambos para a
subsistência e para o comércio de excedentes,
embora muitas famílias que vivem na cidade também contem com a
colheita do seu roçado para garantir a
sobrevivência. Dependendo da localização do sítio, pode-se
plantar também arroz, que “gosta” de terrenos
alagáveis, chamados de “baixios”. Além disso, algumas famílias
cultivam também a batata doce, a macaxeira
e o maxixe em menor escala. O cultivo de frutas não é
tradicionalmente popular. O plantio e a colheita seguem
o calendário das chuvas, o chamado inverno, que normalmente tem
início em janeiro, com as celebrações em
honra de São Sebastião, e finda em junho, com as celebrações de
São João, São Pedro e Santo Antônio. Em
Catingueira não se utiliza irrigação na agricultura, apesar de
não faltar água na cidade desde a construção do
Açude dos Cegos, na década de 1990. As famílias que vivem em
propriedades de terceiros plantam no sistema
de terça parte ou meia. Quando o “ano é bom”, isto é, quando há
excedentes – geralmente o milho e o feijão –
eles são vendidos (ou trocados) ao longo do ano para a compra
de outros gêneros de primeira necessidade. As
famílias geralmente criam animais, como galinhas, bode, porco e
jumento. Na cidade, criar animais de pequeno
e médio portes é, basicamente, tarefa feminina. Criam também
gado, porém em escala bem reduzida, já que, na
estação da seca, falta-lhe alimento, devido aos pastos ficarem
ressequidos. É considerado um bom negócio criar
o gado no inverno (estação das chuvas) e vendê-lo ainda gordo
quando estas começam a escassear, no início
do verão (estação da seca). Na seca, o preço do gado cai
drasticamente, assim como seu peso.
Na cidade, as famílias vivem basicamente dos benefícios do
governo federal (bolsas e aposentadorias),
de alguma plantação ou criação de seu roçado ou muro (terreiro, quintal) ou, quando possuem, de
um emprego
na prefeitura. Comenta-se na cidade que hoje em dia ninguém
mais quer trabalhar nas roças, porque o serviço
é considerado pesado e difícil. Com isso, cada dia mais
famílias vão morar na cidade, criando um problema
econômico e social, dado o enorme déficit de empregos.
O raciocínio é o seguinte: ‘Bem ou mal, no sítio a pessoa
pode plantar um feijãozinho e a alimentação da família fica
garantida. Na cidade, a pessoa não encontra trabalho
e não tem nem como alimentar os filhos’. Infelizmente, não
posso confirmar com dados estatísticos este êxodo
rural. Porém, “conseguir” um emprego na prefeitura é uma grande
aspiração da maior parte da população. O
emprego na prefeitura é altamente valorizado pela estabilidade
que implica. Estabilidade é entendida como a
certeza de receber aquele salário no final do mês, o que
possibilita, por exemplo, o planejamento da compra
de bens duráveis. Mas é interessante constatar que esta
reconhecida estabilidade é compatível com o fato de
que a cada novo prefeito ocorrem mudanças drásticas no quadro
de funcionários, os quais são substituídos em
função dos laços de amizade ou parentesco com o candidato a
prefeito vitorioso. A necessidade de trabalhar na
prefeitura, já que não há na cidade outros empregadores – senão
as vendas e os bares (que geralmente utilizam
mão de obra familiar) – cria relações de co-dependência entre
os políticos e a população9.
A prefeitura, por sua
vez, sustenta-se financeiramente através do dinheiro do Fundo
de Participação dos Municípios e do Imposto
Territorial Rural. Na cidade, não há fábricas ou indústrias.
Alguns meninos complementam o orçamento familiar fazendo
pequenos serviços, como capinagem de
terrenos, venda de picolé (conhecido alhures como sacolé ou
chup-chup) ou costurando bolas (para uma fábrica
em Patos que paga R$ 1,50 por unidade costurada – julho de
2004). As meninas geralmente não são pagas pelos
serviços que executam, uma vez que estes
estão inseridos nas atividades domésticas cotidianas.
Quanto aos benefícios do governo federal, a Bolsa Família
compreende o Fome Zero, no valor de R$ 50; a
Bolsa Escola, no valor de R$ 15 por criança cadastrada e o Vale
Gás, de R$ 15. Além destes benefícios, Catingueira
conta com o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil), com duzentas crianças cadastradas recebendo
mensalmente R$ 25, e com o Agente Jovem, com vinte e cinco
jovens cadastrados, recebendo mensalmente R$
65. Há ainda o Programa Leite da Paraíba, com cento e cinqüenta
famílias cadastradas, que recebem diariamente
um litro de leite. E, por fim, o Auxílio à Natalidade no valor
de R$ 1.400 por nascituro. Já em 2002, os benefícios
do governo federal geravam discussões substanciais na
comunidade (Pires 2003:99-100). As aposentadorias
como trabalhador rural levantam uma questão sociológica interessante,
na medida em que se entende que o
indivíduo que não possui sua própria terra depende de um
“patrão” para assinar os papéis da sua aposentadoria.
Entre o proprietário de terras que assina a papelada e o
trabalhador será estabelecido um vínculo, que pode ser
reavivado, por exemplo, em momentos de eleições, ou quando o
proprietário de terras precisa de uma “ajuda”
de qualquer natureza (capinar um terreno, limpar a casa etc.),
ficando aquele trabalhador e a sua família para
sempre “endividados”. O ato de assinar os papéis é tido como
prova da bondade do proprietário de terras – à
qual o trabalhador responde com gratidão (Mauss 1974
[1923-24]). No entanto, ultimamente algumas pessoas têm
conseguido a aposentadoria através do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais sediado na cidade de Catingueira.
Segundo dados do Censo do ano de 2007, Catingueira conta com
4.849 habitantes em uma área territorial
de 529,46 Km². Aproximadamente metade da população vive na área
rural, enquanto a outra metade vive na
cidade. A faixa etária com o maior número de habitante está
concentrada dos dez aos catorze anos, com 667
habitantes. Dentre as pessoas residentes com dez anos ou mais
de idade, 2.222 habitantes não contam com
nenhum rendimento (rendimento nominal mensal), sendo o rendimento
nominal mensal médio R$ 220,85 entre
as pessoas residentes com dez anos ou mais de idade, com
rendimento.
O Produto Interno Bruto (PIB) no ano de 2003 foi de R$
12.662.829, contabilizando um PIB per capita de
R$ 2.772,07 de acordo com o IBGE. Ainda, o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) de acordo com o PNUD
2000 era de 0,555. Sobre as finanças públicas, em 2003, as
receitas orçamentárias realizadas computavam R$
2.611.909,84. Destes R$ 2.012.508,34 eram oriundos do Fundo de
Participação dos Municípios (FPM) e R$ 4.159,56
oriundos do Imposto Territorial Rural (ITR). Em 2004, houve
1.180 matrículas no ensino fundamental, e em 2004
havia 56 docentes no ensino fundamental. Em 2006, Catingueira
contava com 3.566 eleitores10.
Os dados estatísticos podem auxiliar o leitor a imaginar a
realidade social da Catingueira; no entanto, é
preciso ressaltar que os dados aqui expostos só podem ser
completamente entendidos quando referidos às
especificidades locais como, por exemplo, o alto poder de
compra do salário mínimo. Em outra oportunidade,
escrevi que as famílias que contam com dois salários mínimos
são consideradas ricas, o que se evidencia, por
exemplo, no fato de que podem se dar ao luxo de comer carne (ou
a “mistura”, ou seja, ovos e carne) todos os
dias, no almoço e no jantar (Pires 2003: 99).
Para descrever como a vida em Catingueira se move no tempo e no
espaço, não poderia deixar de incluir
o calendário das festas e de descrever os horários seguidos
pela população. A festa do Padroeiro em janeiro e
a festa de João Pedro
(São João e São Pedro comemorados
simultaneamente), em junho, são eventos muito
significativos. Em grande medida, a cidade
vive da memória destas festas. Os comentários das festas passadas duram até que
chegue a próxima. A festa é o momento de criar ou reavivar os laços sociais,
entre eles os de
parentesco e os de amizade. Também é o tempo das alianças
políticas e econômicas. As festas são, em princípio,
religiosas, mas ultrapassam as comemorações estritamente
religiosas, apesar de nunca prescindirem delas11.
Há, geralmente, bandas de forró que tocam em praça pública ou
bailes na quadra de esportes, onde se cobra um
ingresso na entrada12. Freqüentam as festas tanto a população local e das cidades
vizinhas, quanto os chamados
“filhos-ausentes”, isto é, pessoas que nasceram na cidade,
emigraram por razões econômicas e, segundo os
catingueirenses, acabaram por “enricar” (Pires 2003, 2004).
Catingueira acorda cedo, ao raiar do sol, entre as quatro e
seis horas da manhã. Quem levanta tarde
(depois das sete horas) é considerado preguiçoso. A partir das
cinco horas, as pessoas que vão fazer compras
em Patos ou viajar aparecem na praça para conseguir lugar nas
primeiras viagens das caminhonetas – que fazem
o transporte de passageiros pelas cidades vizinhas13. Das cinco até as sete horas da manhã,
pequenos grupos
de três ou quatro homens sentam-se na praça, batendo papo,
enquanto suas mulheres varrem a calçada ou
preparam o café. A cidade vive uma espécie de efervescência às
oito horas da manhã, quando a agência dos
Correios e a casa lotérica abrem suas portas. Entretanto, entre
as onze e quinze horas, a cidade é quase deserta.
Só se movem os grupos de estudantes indo e voltando dos
colégios. O restante da população está dentro de
casa, almoçando, descansando, tirando uma soneca ou vendo TV.
Só depois das dezesseis horas, quando o
sol abranda seu calor, a cidade movimenta-se novamente. Ao cair
da noite, salpicam cadeiras de balanço nas
calçadas. A praça movimenta-se outra vez com grupos de jovens
conversando e casais namorando. Por volta das
vinte e uma horas, a praça começa a esvaziar, mas perto das
vinte e duas horas e trinta minutos se movimenta
novamente, com os estudantes que deixam o colégio. Exceto por
alguns bares que ainda estão abertos, à meia
noite parece que toda a cidade dorme.
Faz parte dos ritmos sociais catingueirenses o localmente
chamado “tempo da política”, sobre o qual
Moacir Palmeira (1996, 2001) e Palmeira & Heredia (1995,
1997) discorreram demoradamente. “A política está
chegando” é frase que remete ao tempo social em que todas as
conversas começam ou terminam falando dos
candidatos, em que não há silêncio possível devido aos carros
de propaganda, em que, enfim, todas as pessoas
estão envolvidas no reavivamento, destruição ou construção de
novas alianças políticas. Gostaria de assinalar
que as crianças também estão incluídas no “tempo da política”
de maneira ativa e efetiva.
Em 2005, durante o meu trabalho de campo, subi a Serra da
Catingueira, com mais ou menos umas
quinze crianças. A subida da Serra pode ser levada a cabo
basicamente com o intuito de pagar promessa ou por
diversão (mais informações sobre a Serra serão fornecidas
adiante). Naquele dia, na descida da Serra, não me
senti bem. As crianças perceberam que algo estava errado, mas
não sabiam o quê. De minha parte, não queria
compartilhar a causa da minha “fraqueza” porque, naquele
momento, eu era a responsável por elas. Coincidiu que,
na descida da Serra, elas vinham cantando as músicas dos seus
candidatos prediletos. Havia ‘eleitor’ para todos
os candidatos, o que incentivava a competição entre as crianças
na forma de brincadeiras jocosas. Aconteceu
que, um dia depois da subida da Serra, um grupo de crianças –
as que cantavam mais exaltadas as músicas da
“política” – veio até a minha casa pedir-me desculpas. Meu mau
humor, pensavam elas, era devido à cantoria
entusiasmada da música de um determinado
candidato a prefeito que, por sua vez, não correspondia, segundo elas, à minha
opção de voto! Com isso, vê-se que as crianças também estão fazendo suas
escolhas políticas e,
ao mesmo tempo, têm um aguçado faro para as opções alheias.
Para mais um exemplo de como as crianças
envolvem-se na política, R., menina de treze anos, cujo
padrinho “Zé Pelado” era candidato a vereador, inventou
o seguinte lema para incentivar a sua campanha: “Rim por rim
vote no meu padim!”. “Rim” é a expressão oral de
“ruim”, assim como “padim” corresponde a “padrinho”. O lema da
menina, para além de seu sentido humorístico,
tece uma crítica social aos políticos de modo geral. Para ela,
todos os políticos são ruins. Ela adverte: se é assim,
opte por alguém que você conheça. Sua mensagem é clara: dada a
atual conjuntura, em que nenhum político é
confiável, vote no meu padrinho, porque este, eu conheço.
De todas as crianças que desenharam14 em quem elas votariam, apenas uma delas,
de seis anos de idade,
relutou entre dois candidatos a prefeito. Todas as outras
crianças tinham feito previamente as suas opções entre os
candidatos daquele ano e as sustentavam com energia. Estas
opções geralmente coincidem com as dos seus pais,
mas nem sempre. Quando perguntadas as razões para votar em
determinado candidato, as crianças enfatizavam, em
primeiro lugar, algum grau de parentesco. Se não há nenhum grau
de parentesco, um bom candidato é aquele que “dá
as coisas ao povo”; em outras palavras, aquele que não nega
ajuda. A ajuda pode ser endereçada à comunidade de
modo geral, como na redação de L.12.F15: “Eu gosto da dona Zuila porque ela dá
muitas coisas aos pobres, dá ajuda
a quem precisa (...) Ela dá feira de material escolar, dá
material de construção de casa”. Mas, muito constantemente, a
ajuda é pessoal e especificamente direcionada à família daquela
criança. R.12.F escreve: “Se eu fosse votar, eu votaria
em Edivan. Porque ele vai fazer a casa da minha mãe. Se eu
fosse votar para vereador, eu votaria em Dr. Humberto,
porque ele conseguiu a aposentadoria da minha mãe”. A.11.F
sintetiza bem as duas grandes razões para se votar em
um candidato, quais sejam, ligação de parentesco e generosidade
por parte do candidato: “Para prefeito (...) eu voto
em Edivan porque, a primeira coisa (...) ele é nosso primo e já
ajudou muito a nossa família”.
Razões para não votar em um candidato vão de uma simples
antipatia pessoal a promessas não cumpridas,
mas a principal razão é a falta de “generosidade” para com o
povo. S.12.F escreveu: “Eu não gosto dela [uma
candidata à prefeitura] porque um dia vó foi pedir não sei o
quê, aí ela disse que não dava. Aí vó e mãe não votam
nela. Ela é muito falsa. Como ela quer que alguém vote nela?
Ela não fez nada para ninguém. Eu acho que quando
ela era do lado do Dão [ex-prefeito], não dava nada para
ninguém, nem um centavo”. Esclareço que os bens que
os candidatos distribuem através de critérios seletivos são, na
verdade, bens de natureza pública – dentre os
quais podem estar incluídos uma viagem da ambulância da
prefeitura para levar uma criança doente até o hospital
em Patos, a inscrição em um programa de benefício do governo
federal como o Bolsa Escola ou, inclusive, a
facilitação da aposentadoria como trabalhador da agricultura.
G.7.F escreveu: “Eu voto nele porque foi ele que
deu óculos de mãe, e porque ele deu a chapa de mãe” (chapa é o
mesmo que dentadura). Ou ainda T.9.F: “Eu não
gosto do Edivan porque ele, em vez de dá o dinheiro aos pobres,
ele faz festa”. Parece-me que o político bom
é político da família e, além disso, é aquele que distribui
dinheiro ao povo. Isso até uma criança de seis anos de
idade já sabe. C.6.F., ainda elaborando que tipo de bem
participa neste “jogo da generosidade”, escreveu: “Eu
votaria nele porque ele é meu pai. E também quando ele recebe
dinheiro, ele me dá um real. Quando ele promete
que dá qualquer coisa a mim, ele cumpre”. Interessante
ressaltar, por último, que as razões para a escolha de um
determinado candidato político, segundo as
crianças, parecem não diferir daquelas dos adultos.
Quanto à geografia interna, a Rua da Cerâmica é o lado escuro
e, podemos assim dizer, criminoso da cidade.
Curiosamente, é a rua tida como a mais pobre, com o maior
número de casas de taipa. Ali não há iluminação
pública, calçamento ou rede de esgoto. Em geral, as pessoas têm
vergonha ao dizer que moram naquela rua.
Como as casas são distantes uma das outras, na escuridão da
noite, a Rua da Cerâmica torna-se “perigosa”. Certa
noite, passei naquela rua com um jovem amigo e vimos um carro
com o porta-malas aberto estacionado um
pouco além da estrada de terra, dentro do “mato”. Meu amigo
ficou muito preocupado e pediu que acelerasse o
carro, com medo de que se tratasse de assaltantes ou
vendedores/consumidores de drogas. Quando chegamos à
cidade, ele foi direto para a delegacia avisar aos policiais do
fato. Os policiais checaram o que estava acontecendo,
reportando ao meu amigo, com um sorriso malicioso nos lábios,
tratar-se de um morador da Rua da Cerâmica
com a sua namorada. O porta-malas aberto tinha como objetivo
simular uma pane mecânica do carro16.
A Rua do Açude é também tida como pobre, mas goza de reputação
festeira – talvez por sua proximidade
com o açude, ponto de lazer para rapazes e moças mais
“atiradas”. Ali, beber é uma constante, e namorar, também.
A Rua do Olho d´Água já foi considerada o “fim do mundo”, mas
hoje, com a construção de várias “casas boas”
(julgamento êmico que se refere, dentre outras coisas, ao fato
de ter sido usado tijolo na sua construção), é tida
como um lugar bom de se morar. Apesar de não ser central, é
perto do olho d´água. Uma rua silenciosa não é
uma rua considerada boa de se morar, porque ela seria uma rua
“esquisita”. Em Catingueira, quando a cidade
está parada, isto é, quando não há nenhum tipo de som ligado,
diz-se que a cidade ou o dia está “esquisita(o)”.
Estar esquisito significa estar silencioso, o que não é
considerado agradável. Muitas pessoas reclamam de morar
no sítio justamente porque “no sítio é muito esquisito”. Com
isso, podemos começar a entender o que sempre
me causou muita estranheza durante os meses em que vivi na
cidade. O volume da música que se ouve em
Catingueira, seja nos bares, casas ou alto-falantes dos carros
é altíssimo, especialmente nas festas. No entanto,
as pessoas não parecem se incomodar em absoluto. É natural que
os jovens gostem do barulho, mas nunca
consegui encontrar ninguém da cidade, por mais idoso que fosse,
que preferisse o som desligado. As pessoas
parecem simplesmente não se incomodar ou, eu diria, parecem até
mesmo gostar do som alto. Isso só pode ser
entendido, mesmo que parcialmente, se pensarmos na categoria
nativa “esquisito”, que foi apresentada acima.
O silêncio é esquisito e indica alguma coisa que está parada no
tempo e no espaço. Não se desenvolve, não
cresce, não gera dinheiro. Parece que a música – e quanto mais
alta melhor – é um signo do progresso, que vem
em forma de alegria e conseqüente bebedeira, festa, dança.
Posso dar um exemplo: o Coreto, um bar na região
central, geralmente fica com as portas fechadas em dias de
semana. Mas quando a prefeitura faz o pagamento, ou
quando os rapazes que vendem sapatos pelas cidades voltam a
Catingueira, o Coreto sempre abre suas portas.
Não importa qual seja o dia da semana. E, de Coreto aberto,
subentende-se música tocando17.
O Alto é um conjunto de ruas sem urbanização, iluminação ou
rede de esgoto. Como a Rua da Cerâmica,
é tido como lugar de gente pobre, mas sua particularidade é ser
lugar de muita confusão e brigas. No entanto, é
preferível morar no Alto que na Rua da Cerâmica – considerada
erma e, por isso, como já afirmei, perigosa. Ali, ao
contrário da Rua da Cerâmica, há uma grande concentração de
casas, o que desestimula as atividades ilícitas, ao
mesmo tempo em que estimula as brigas familiares e entre os
vizinhos. A Pista é o lugar onde está a prefeitura,
os postos de saúde, a padaria e os maiores
bares. É por onde passam o ônibus e as caminhonetas que fazem o
transporte de passageiros e cargas. Pela Pista, a cidade recebe
os visitantes – entre eles, os “filhos-ausentes”. É
perto do Coreto, na região central, que acontecem as festas
públicas. No centro da cidade (também chamado “a
rua” – ver nota 16 – ou “a cidade”) está a igreja Católica e, à
sua volta, uma praça. O prestígio da localização das
residências é medido, em parte, pela sua distância em relação à
igreja Católica. O Centro Espírita está localizado
em uma rua periférica próxima ao centro. A igreja Assembléia de
Deus está localizada no caminho para o Açude
do Prefeito, distante do centro, enquanto a igreja do Evangelho
do Amor de Deus fica na mesma rua da igreja
Católica. E, finalmente, a igreja Seguidores de Cristo fica
localizada na Rua da Cerâmica.
O Açude dos Cegos abastece a cidade de Catingueira e todas as
cidades vizinhas. Além disso, é usado
para lazer, pescaria e irrigação das terras próximas. O Açude
do Prefeito, por sua proximidade com a cidade,
é usado para lavar roupa, cavalos, jegues, carros e para o
lazer masculino, especialmente infantil. Catingueira
conta com quatrocentas e vinte propriedades rurais chamadas de
“sítios” (informação do Incra com base em
Catingueira referente ao ano de 2005). “Ser do sítio” – não
importa qual –, em oposição a morar na cidade, é tido
como marca indelével e justificativa para o fracasso ou a
estupidez. Se um menino do sítio tem dificuldades em
aprender a ler, sua professora dirá: “Ah, é do sítio”, lavando
suas mãos.
A Serra da Catingueira também faz parte do painel geográfico da cidade. Ela é cantada
nos versões de
Inácio da Catingueira, nas músicas do grupo O Cordel do Fogo
Encantado18 e
na saudade dos catingueirenses.
Inácio da Catingueira é considerado um dos maiores repentistas
de toda a história. Ele nasceu em uma fazenda
na região onde hoje fica Catingueira. Era negro, escravo e
analfabeto mas, com sua astúcia e inteligência, foi
capaz de derrotar Romano do Teixeira, repentista também
afamado, porém branco, livre e formalmente educado.
A peleja entre os dois cantadores teria durado oito dias e oito
noites sem intervalos (Nunes 1979:19; Sátyro
1979:129). O “gênio negro do sertão” morreu no ano de 1879
(Nunes 1979:15). Os catingueirenses exaltam o
nome de Inácio e a sua ligação com aquela terra sempre que é
preciso afirmar as particularidades da sua gente.
Na praça da cidade, há uma estátua de Inácio em tamanho natural
com o seu pandeiro na mão – instrumento
pouco usual nos repentes naqueles tempos.
Na Serra, foram instalados dois cruzeiros. Um em homenagem a
São Sebastião, no alto da Serra, e outro,
no meio, em homenagem a Santo Antônio. No Cruzeiro de São
Sebastião há uma “casinha” de tijolos, onde são
deixados ex-votos e acendem-se velas. Subir a Serra é um
divertimento para a população jovem, principalmente
na época da festa do padroeiro. Os grupos geralmente sobem a
Serra ao nascer do dia, por volta das quatro ou
cinco horas, para não se expor ao sol muito forte. Geralmente,
vão munidos de bebida alcoólica e comida – a
farofa/cuscuz com galinha é altamente apreciada. Os rapazes e
as moças, muitas vezes, depois de passarem a
noite no baile, sobem a Serra quando a “barra do dia” começa a
aparecer. Cansados, descansam tirando uma
soneca no alto da Serra, onde é sempre “frio”, em virtude do
vento. Nos meses de chuva, a chamada Cachoeira
da Mãe Luzia fica
cheia de água, propiciando deliciosos banhos em dias quentes. A chamada “Mãe
Luzia” é um
poço de pedras que fica desoladamente vazio em tempo de seca.
Mas quando chove, todos os pocinhos se
enchem, fazendo a festa de quem sobe a Serra. Quando o poço da
Mãe Luzia está muito cheio, ele “sangra”, ou
transborda, donde o nome de cachoeira. Diz-se que Mãe Luzia era
uma mulher que morava no alto da Serra e,
um dia, estava lavando roupa naquele poço
quando foi comida por uma onça19.
Os locais, muito constantemente, quando sobem a Serra, levam
fogos de artifício para soltar quando
alcançam o seu cume. Os fogos de artifício atestam o grande
feito e, ao mesmo tempo, dão graças a São
Sebastião. Se as pessoas escutam fogos de artifício pela manhã,
elas dirigem o olhar para o alto da Serra,
tentando identificar quem está a soltar aqueles “foquetões”
para santo. Muitas vezes, elas sabem quem está lá
em cima porque a notícia de que um grupo vai subir a Serra na
manhã seguinte corre ligeira. Também sobem
constantemente a Serra, com seus cachorros bravios, os
caçadores. Nela, encontram alimento para o consumo
familiar ou para o comércio. Há ainda famílias que moram na
Serra, vivendo da extração e venda de pedras e,
durante o inverno, da agricultura. Os membros destas famílias
são acostumados a subir a Serra com rapidez
e, mesmo com a dificuldade, geralmente as crianças não deixam
de freqüentar a escola. Demora-se em média
uma hora e trinta minutos para a subida e uma hora para a descida,
em ritmo moderado. Subir a Serra, enfim, é
tido como um grande feito, recordação para a vida toda,
atividade para jovens ou para quem se endividou com o
santo e precisa pagar promessa. Na Serra também está localizada
a Furna,
uma caverna da qual nunca ninguém
conseguiu alcançar o fim; os que tentaram, diz-se que ou
desistiram, ou nunca mais voltaram. Para entrar na
Furna, o sujeito deve estar sem pecado, e levar consigo uma
vela benta, que será a única fonte de luz capaz de
iluminar a escuridão da mesma. Lanternas, por mais que já
tenham sido experimentadas, nunca resistem e se
queimam inexplicavelmente. O sujeito que quiser atingir o fundo
da Furna, lugar onde o aguardará uma série de
surpresas − inclusive, possivelmente, o Carneiro de Ouro20
(ver Pires 2007) −, deve usar uma corda de
grande
extensão a fim de não se perder no interior da caverna. Um
grupo de amigos deve ficar na parte exterior segurando
a corda, a fim de puxá-la, em caso de necessidade. Além disso,
a Furna é habitada por imensas quantidades de
morcegos e outras criaturas que se valem da escuridão, como os
mal-assombros, cobras e onças − sem falar
que, à medida que o sujeito vai adentrando, a Furna vai se
tornando cada vez mais estreita, chegando ao ponto
de o sujeito ter que se locomover
arrastando-se.
CONCLUSÕES
Neste artigo descrevi brevemente alguns aspectos relevantes da
vida social de Catingueira. Esta cidade é
tida aqui como um lócus de observação científica. O Nordeste
Brasileiro, quiçá o país, é formado por muitas
“catingueiras”: cidades tradicionalmente campesinas, mas cuja
população divide-se entre as áreas rural e urbana,
entre o desejo de emigrar para as grandes cidades e o desejo de
possuir o seu pedaço de terra. Cidades pequenas
que dependem economicamente do Fundo de Participação dos
Municípios para arcar com as suas despesas
básicas, como a folha de pagamento da prefeitura. Cidades que
sofrem com a estiagem. Lutam contra altas taxas
de analfabetismo, contra a desnutrição e a subnutrição, e toda
sorte de problemas decorrentes destas. Cidades
que oferecem poucas perspectivas de crescimento econômico aos
seus habitantes, que muitas vezes optam
por emigrar para conseguirem melhorar de vida. Como se não
bastasse, cidades que, como Catingueira, têm os
seus políticos envolvidos em escândalos de
corrupção de nível nacional.
Cidade, Casa e Igreja
Conhecer os ritmos e as instituições sociais da cidade
pesquisada e ser capaz de descrevê-los faz parte
do ofício do antropólogo. Neste pequeno artigo, talvez por
demais descritivo, tenho como objetivo compartilhar
algumas observações feitas ao longo dos anos de pesquisa nesta
cidadezinha do sertão paraibano. O artigo pode
servir de ponto de partida para o desenvolvimento de outras pesquisas:
como mapeamento geral de uma região
no cenário brasileiro e como incentivo para futuros
desdobramentos teóricos e pragmáticos. Como vimos, o que
não falta é tema a ser aprofundado. Alguns deles podem ser
enumerados: a política local e suas implicações com
o chamado coronelismo; a geografia social da cidade e suas
implicações sócio-econômicas; o lugar da igreja
católica e a dinâmica do sagrado; as festas e sua capacidade de
deflagrar conflitos e soluções para problemas
de toda sorte; e a recepção e os desdobramentos trazidos pela
introdução de políticas de distribuição de renda
na região.
Notas
1 Este artigo é uma reelaboração do segundo capítulo da minha
tese de doutorado defendida em 2007 no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, cujo título é
“Quem tem Medo de Mal-Assombro? Religião e infância no semiárido
nordestino”. Agradeço aos membros da banca pelas suas preciosas
considerações.
2 Caesalpinia pyramidalis Tul. “É uma arvoreta com até 4 m de altura. Folhas bipinadas com 5-11
folíolos, sésseis, alternos, obtusos, oblongos.
Flores amarelas dispostas em racemos pouco maiores ou tão
longos quanto as folhas. Vagem achatada de cor escura. Madeira para
lenha, carvão e estacas. É uma das plantas sertanejas cujas
gemas brotam às primeiras manifestações de umidade anunciadoras do
período das chuvas. Então o gado procura as suas folhinhas com
avidez, para pouco depois desprezá-las devido ao cheiro desagradável
que adquirem ao crescer. As folhas, as flores e a casca são usadas
no tratamento das infecções catarrais e nas diarréias e disenterias. É
uma planta característica das catingas”
(http://www.esam.br/zoobotanico/vegetais/catingueira.htm. Acesso em 21 de julho
de 2005).
3 São Sebastiãozinho é o nome dado à pequena imagem adquirida como primeira imagem
do santo padroeiro na época da promessa
inicial. Ela ainda hoje permanece na igreja. Durante a festa do
padroeiro, esta imagem peregrina pelas casas dos fiéis, pernoitando a
cada noite na casa de um devoto. Durante as celebrações das
missas, ela fica em um lugar privilegiado. Além disso, nas procissões
é ela que trafega pelas ruas, sustentada pelo povo. Esta
imagem, por estar tão presente na vida daqueles que participam da festa
religiosa, adquiriu uma conotação humana. Mesmo tendo sido
feita de um material perecível, ela é tida como um ente poderoso,
capaz de realizar milagres. Por isso, ao se referir a ela, não
se diz a imagem de São Sebastião, se diz o próprio São
Sebastião. E em
se tratando da primeira imagem adquirida, “São Sebastiãozinho”, não se trata da encarnação no barro de uma entidade exterior
a
ele, mas de um barro tornado santo. O hino de São Sebastião,
cantado nas missas e novenas durante a festa de janeiro, revela a
esperança no santo, já testada e comprovada na promessa
inicial: “Livrai-nos da peste, São Sebastião” (Pires 2003:24). A imagem
do santo pode ser entendida como um “feitiche”, no termos de
Latour (2000, 2002 [1996]; vide também Velho 2005).
da paisagem da cidade; abriga dois cruzeiros, moradores e
plantações. Falaremos mais sobre a Serra e sua importância para a
cidade no decorrer deste artigo.
Velho (1981 [1972]). Pela lei n.º 836, de 9 setembro de 1887, o
lugarejo que se constituía recebeu o nome de São Sebastião da
Catingueira, em virtude do milagre alcançado. Pelo decreto n.º 27, de 23
de julho de 1890, o lugarejo se tornou Jucá. Em 1933, pelo
decreto n.º 400, o povoado se transformou em distrito, também
sob o nome de Jucá. Em 15 de novembro de 1938, o distrito teve
sua mais antiga denominação reimplantada. Tornou-se município
pela lei n.º 2144, de 15 de julho de 1959.
6 Veja extrato de entrevista com uma moradora no ano de 2002
sobre a promessa inicial (Pires 2003: 26):
“- F.P. (Flávia
Pires): Aqui eles falam que a cidade nasceu de uma promessa, a senhora sabe
contar? (...)
- Sebastiana:
(...) conta assim, né, que foi uma doença
que houve na Catingueira aqui, né, parece que o nome era cólera... É, eu sei
que deu
essa doença, e inventaram de fazer essa promessa, que São
Sebastião protegesse pra num chegar até a Catingueira e diz-se que trocava
São Sebastião e fazia uma capela, e de fato, fizeram mesmo. E
num chegou aqui não, veio até a Mina do Ouro, e o povo contava, né”.
Veja também extrato de entrevista com dois senhores no ano de
2002 sobre o proprietário dos terrenos da cidade (Pires
2003:25):
“- Sebastião: Quer dizer que é o seguinte, a cidade, toda a
cidade tem um padroeiro dela, né? Aí quem manda é o padroeiro, aí a
festa é do Padroeiro.
- F.P.: Mas o padroeiro manda em quê?
- Sebastião: Em tudo, nos terrenos....
- José: Essa Serra toda é dele. Aqui, até acolá no açude...
- Sebastião: Se você quer comprar um chão
aí você tem que falar com o padre.
ARTIGOS
- José: Com o bispo.
- Sebastião: Fala com o padre aí o padre vai ver e o bispo
libera. Senão....
- José: Não compra não.
- F.P.: Nada com a prefeitura não?
- Sebastião: Não, a prefeitura num tem nada. Nada, nada.
- José: Nada com a prefeitura não. A prefeitura só tem o local
dela”.
7 Nos anos anteriores a 2005, no lugar onde hoje funciona a
Igreja Pentecostal do Evangelho Amor de Deus, funcionava a Igreja
Congregacional. Infelizmente, não observei detalhadamente o
processo que culminou com o fim de uma igreja e o estabelecimento
da outra.
8 Além destes templos religiosos, existem na cidade algumas capelas.
Uma delas, a Capela do Vaqueiro, é conhecida como malassombrada
(Pires 2007).
9 Há uma vasta literatura que trata do chamado “coronelismo”.
Entre os clássicos, ver Leal (1975), Queiroz (1976).
10 “Uma revisão eleitoral feita pelo TRE no município de
Catingueira, no sertão paraibano, resultou no cancelamento de 706 títulos
de eleitores fantasmas. No universo de 3.566 eleitores, 2.860
participaram do recadastramento e tiveram os domicílios eleitorais
homologados. A população de Catingueira é de 4.465 habitantes –
LKA.” (Fonte: http://jornaldaparaiba.globo.com/poli-4-180606.
html, em 18 de junho de 2006).
Em maio do ano de 2006, o ex-prefeito de Catingueira João Felix
de Souza teve a sua prestação de contas do ano de 2004 reprovada
pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, sendo intimado a
devolver o valor de R$ 47.800,00 para os cofres públicos. O valor, na
sua maior parte, é referente a despesas não comprovados do INSS
(Fonte: http://www.jornalonorte.com.br/noticias/?63304, acesso
em maio de 2006). O mesmo ex-prefeito está sendo investigado
pela sua participação na chamada Máfia dos Sanguessugas, no que
se refere ao escândalo das ambulâncias, considerado uma dos
maiores esquemas de corrupção já planejados pelos parlamentares
do país. (http://wscom.digivox.com.br/noticias.jsp?pagina=noticia&id=75810&categoria=29,
acesso em 26 de julho de 2006).
11 Vide Pierre Sanchis (1983), assim como Lea Perez (1994,
1996, 2002), para belas análises sobre as festas.
12 Existem em funcionamento duas quadras de esportes na cidade.
Uma quadra coberta, que fica dentro do colégio municipal, e outra
recentemente construída pela prefeitura, que fica na chamada
“pista”, ou seja, na estrada que faz a ligação de Catingueira com
Patos (BR 361). Além disso, há também o campo de futebol (não
coberto, não gramado) que faz a diversão da cidade quando há
campeonatos nas tardes de domingo. O futebol é o esporte mais
popular na cidade. Com os torneios organizados pela prefeitura,
incentivou-se a organização dos moradores em times, dentre os
quais dois são femininos.
13 O transporte, feito de maneira ilegal, utiliza caminhonetas,
geralmente compradas com o benefício de isenção de impostos para o
proprietário rural. Na carroceria, são improvisados bancos de
madeira para os viajantes. As caminhonetas são, na minha opinião,
uma versão atual do “pau de arara”, afirmação com a qual meus
informantes não concordariam, porque vêem neste transporte
algo de moderno e eficiente. Na parte da frente da caminhoneta
– onde se viaja com mais conforto – viajam, em princípio, as
pessoas que têm acesso à caminhoneta em primeiro lugar. No
entanto, as mulheres e os idosos têm certa preferência. Parece-me,
entretanto, que a possibilidade de viajar nos bancos da frente
depende mais da relação que se estabelece com o motorista ou dono
da caminhoneta (que nem sempre coincidem) e, principalmente, do
status social daquela pessoa. Entre uma jovem professora da
cidade e um idoso do sítio, a professora sentar-se-ia na frente
e o(a) idoso(a) subiria na parte de trás. É preciso acrescentar que
mesmo os que viajam na parte da frente não usam cinto de
segurança. Algumas vezes vi as caminhonetas pararem de rodar por
algumas horas em função do conhecimento de uma blitz da Polícia Rodoviária. Para a população, por sua vez, a proliferação
das
caminhonetas representa conforto, uma vez que o ônibus
(transporte legal) só passa pela cidade de duas a três vezes por dia, em
horários inconvenientes.
14 Na pesquisa que culminou com o meu doutorado trabalhei com
técnicas de pesquisa complementares, como os desenhos aqui
citados e as redações citadas adiante.
Para maiores informações ver Pires (2007 e em preparação).
ARTIGOS
15 Os informantes são identificados da seguinte forma: iniciais
do nome, idade, sexo.
16 Veja o que D. C., uma senhora de aproximadamente sessenta
anos, moradora da Rua da Cerâmica, disse: “Às vezes eu num vou
pra igreja porque aí num tem luz, é no escuro, mas o menino
botou lâmpada. Tava jogando umas pedras... [Quem?] Quem sabe?
Um malfazejo ruim. Num tá vendo, minha fia, como essa rua aqui
como é. Aqui é esquisito, tu num tá vendo não, que é esquisito? É
mesmo que um sítio, menina! Olhe, de primeiro eu falava os
povo: ‘Vocês vende tanta as coisas aqui na rua. Na rua da
Cerâmica que
a gente é pobre, mas às vezes a gente compra umas coisa. Às
vezes passa uma pessoa, tá com precisão a gente compra’. Pense,
menina, aqui num andava ninguém. Aí, agora eles passa” (Pires
2003: 16). Sobre o conceito de “esquisito” ver a nota a seguir.
Calcinha Preta, Cheiro de Menina, Kalipso, Gaviões do Forró,
Magníficos, Limão com Mel etc. fazem grande sucesso. Resta dizer
que os carros de som dos candidatos, na época da política, não
fugiam à regra do volume excessivo.
18 Ver como exemplo a música “Cordel Estradeiro”.
19 Existe até uma comunidade no site orkut chamada “Já subi a Serra de Catingueira”, atestando a
popularidade do passeio.
20 O Carneiro de Ouro é um encantado, que mora na Serra, e que
trará riqueza a quem o vir. Alguns dizem que ele mora na Furna, mas
que pode ser visto em todo o alto da Serra pelo reluzir do seu
corpo de ouro. Segundo Cascudo (1984: 199), o Carneiro de Ouro é
uma versão do Carneiro Encantado. A lenda do Carneiro Encantado
acontecera em Passagem de Santo Antônio, na divisa do Piauí
com o Maranhão, às margens no rio Parnaíba. Um monge
missionário que voltava com um saco de esmolas para o convento foi
assassinado. Os ladrões assassinos, arrependidos do sacrilégio,
trataram de enterrar ali mesmo o monge junto a todo o dinheiro
roubado. Neste local do enterro, é visto um grande carneiro
branco com uma estrela radiante na testa, sinal de que ali se encontra
toda a riqueza. Sá (1913) conta história parecida, que se passa
em Campo Maior, no Piauí, na Serra de São Antônio, e que dá origem
ao Carneiro de Ouro. Um grande carneiro de ouro, todo vestido
de luz e com uma estrela na testa, tem-se apresentado a algumas
pessoas, às vezes durante o dia, às vezes durante a noite.
Dizem que ele berra junto a uma enorme corrente de ferro, como que
indicando que naquele local existem grandes riquezas e grandes
encantos. Mas, como uma só pessoa, ou mesmo duas ou três,
não são capazes de carregar o achado precioso, quem o vê volta
à vila e reúne todo o povo para buscar o velocino. Chegando,
porém, ao lugar, não encontram mais sequer sinal da corrente ou
do carneiro. Dantas (s/d:97-100) conta que, em Serra Talhada,
Pernambuco, na Vila Bela, existe um gruta em cuja entrada
aparece um carneiro de ouro de brilho lusco-fusco. Dentro da gruta,
mora uma enorme e apavorante jibóia que não deve ser morta por
se tratar de uma linda princesa encantada. Para entrar na gruta,
é preciso ter cuidado com os morcegos e com a jibóia (em
hipótese alguma matá-la). Além disso, é imprescindível levar consigo
sete velas bentas por Padre Cícero. Essa versão é citada também
por Melo (1930). Vê-se semelhanças entre essas versões e aquela
encontrada em Catingueira.
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Cidade, Casa e Igreja: sobre Catingueira, seus adultos e suas
crianças
RESUMO
Este é um artigo de caráter descritivo e etnográfico que
apresenta a vida cotidiana de uma cidade pequena no
semi-árido da Paraíba. O objetivo é situar a cidade de
Catingueira e os catingueirenses, abrangendo breves aspectos
sócio-econômicos, políticos, geográficos, religiosos,
estatísticos. Além disso, discuto como as crianças estão
presentes neste contexto, dando destaque às idéias infantis,
principalmente no que diz respeito à política.
PALAVRAS-CHAVE: crianças, infância, semi-árido, vida cotidiana.
Church, House and
Village: children’s lives in semi-arid Northeast Brazil
ABSTRACT
This is an
ethnographic descriptive paper that presents the everyday life in a village in
the semi-arid region of
life.
Additionally, the paper discusses children’s political ideas and day-to-day
lives.
KEY WORDS:
children, childhood, Northeast Brazil ,
everyday life.
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