23 de dezembro de 2008

JOÃO DANTAS


João Duarte Dantas



Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
João Duarte Dantas (Teixeira, data de nascimento desconhecida — Recife, 3 de outubro de 1930) foi um advogado e jornalista brasileiro.
Seu nome está ligado à História da Paraíba, principalmente porque foi o autor disparos fatais que vitimaram o então Governador do Estado, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque. João Pessoa era candidato a Vice-presidente do Brasil na chapa encabeçada por Getúlio Vargas, contra o grupo paulista de Júlio Prestes. A morte é considerada o estopim da Revolução de 1930, quando Getúlio ascendeu ao poder, após um levante popular contra uma suposta fraude nas eleições.
João Dantas era adversário político de João Pessoa e aliado de José Pereira, chefe político da cidade de Princesa, o qual liderava uma intensa oposição às medidas governistas contra os interesses comerciais do grupo sertanejo. José Pereira recebia apoio dos irmãos Pessoa de Queirós, de Pernambuco, primos de João Pessoa e proprietários do Jornal do Commercio.
A atitude de João Dantas costuma ser atribuída não à divergência política diretamente, mas a uma questão de cunho pessoal. O embate político travado entre ele e Pessoa, através da imprensa, inclusive com ataques ao pai de Dantas, Dr. Franklin Dantas, e outros familiares, acendeu o ódio mútuo. Nesse contexto, a Polícia da Paraíba, sob o Governo de João Pessoa, invadiu escritório de Dantas, à Rua Duque de Caxias, e, além de outras coisas, apoderou-se de cartas íntimas entre ele e a professora Anayde Beiriz.
O jornal estatal, A União, fazia suspense diariamente, ao comentar sobre documentos imorais que haviam sido encontrados no escritório de João Dantas. Acrescentava que os interessados poderiam ter acesso ao material, na sede da Polícia. À época, em decorrência de uma reforma no Palácio do Governo, o mandatário do Estado, João Pessoa, despachava em prédio defronte à sede de A União. Segundo o livro Órfãos da Revolução, de Domingos Meirelles, os mais íntimos de João Pessoa sabiam que nada era publicado no jornal oficial, sem sua aquiescência. A correspondência veio a público, dias depois da invasão.
A intriga fez que amigos de João Dantas o convencessem a se mudar para Olinda. Por ocasião de uma visita de João Pessoa a Recife, amplamente noticiada, com o objetivo de receber uma homenagem, João Dantas armou-se com seu cunhado, Moreira Caldas, e foi à Confeitaria Glória, onde disparou contra o desafeto. Caldas e Dantas atiraram simultaneamente, de modo que não seria possível assegurar de onde saíra a bala fatal.
Após serem presos na Casa de Detenção de Recife, foram encontrados degolados, a 3 de outubro de 1930, no início da Revolução de 1930. A versão oficial indicou suicídio. Também Anayde Beiriz faleceria dias depois, em Recife, por envenenamento, aos 25 anos, provavelmente por iniciativa própria. Outras mortes se seguiram ao episódio, como a do então Deputado Federal, ex-governador do estado, João Suassuna, pai do escritor Ariano Suassuna, o qual foi assassinado, no Rio de Janeiro, por Miguel Laves de Sousa.
A história já inspirou filmes, livros e peças teatrais. Até hoje, desperta muita polêmica quanto aos detalhes e interesses subjacentes às ações de ambas as partes.


Textos Escolhidos


O ano de 1930 nascera sob maus presságios. Poucos meses antes, o crack na bolsa de Wall Street em Nova Iorque já estava repercutindo negativamente sobre a economia brasileira, com a crise na cafeicultura e nas exportações.
A sucessão presidencial ia num crescendo preocupante. Antônio Carlos, presidente de Minas, era o candidato natural à sucessão de Washington Luís, um paulista de Macaé, e que, findo o seu quadriênio no Catete, deveria ser sucedido por um mineiro, em obediência à tradição republicana.
Citado por Alzira Vargas do Amaral Peixoto, no livro Getúlio Vargas, Meu Pai - Ed. Globo - Pág. 47, o catarinense Lauro Müller, com a frustração dos sonhos de seu estado em fazê-lo presidente da República, dizia numa clarividente previsão:
- Enquanto o governo do país permanecer nas mãos desses portugueses de Minas e de São Paulo, não haverá perigo; cuidado, porém, com esses espanhóis do Rio Grande do Sul, porque estes, se tomarem conta do poder, custarão a sair.
Com o apoio de Washington Luís a outro paulista (no caso, Júlio Prestes), rompia-se a monotonia dessa gangorra Minas-São Paulo. Aí, bafejada pela reação e pelo estímulo mineiros, surgia a candidatura de Getúlio, presidente do Rio Grande do sul, que até então se mantivera fiel à orientação política do governo federal - fora antes, inclusive, seu ministro da Fazenda - , mas que se transformaria no candidato da oposição.
O companheiro de chapa era o presidente da Paraíba, João Pessoa, a braços com a rebelião local de José Pereira num reduto no interior paraibano, que todos imaginavam apoiado por Washington Luís e que, à frente de jagunços, anunciava a criação do Território Livre de Princesa.
Dias após as eleições, realizadas a 1º de março, a vitória da chapa Júlio Prestes-Vital Soares era tão esmagadora que normalmente deveria desestimular qualquer protesto da oposição. Mas acontece que essa oposição não aceitava o resultado das urnas, acusando-o de falso porque obtido através de extensa fraude eleitoral. Era a primeira vez que a oposição derrotada reagia. Mas não seria a última em que se falaria de fraude. Muito pelo contrário.
A revolução, coordenada por Góes Monteiro, Oswaldo Aranha, João Alberto, João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Maurício Cardoso, Antunes Maciel, João Carlos Machado, Virgílio de Melo Franco, Juarez Távora, Juracy Magalhães, Afonso de Albuquerque Lima, Batista Luzardo e vários outros, já estava praticamente na rua e sua articulação atingiu o auge do emocionalismo com o assassinato de João Pessoa, na Confeitaria Glória, Recife.
Afinal, por que João Pessoa foi assassinado?
Esse crime merece uma reconstituição, não só pelos seus desdobramentos e conseqüências, como também pela importância das pessoas nele envolvidas: a vítima, João Pessoa, presidente de um estado; e o assassino, João Dantas, um advogado paraibano, sertanejo da cidade de Teixeira e amigo de José Pereira, o líder de Princesa, e de João Suassuna, o líder de Catolé do Rocha.
João Duarte Dantas fazia violenta oposição a João Pessoa. Um apartamento seu, localizado em sobrado da então Rua Direita, 519 (hoje Duque de Caxias), bem no centro da capital, próximo do Ponto de Cem Réis e do palácio onde trabalhava João Pessoa, foi invadido pela polícia no dia 10 de julho, sem que se saiba até hoje se com ou sem o conhecimento prévio do presidente paraibano. Livros, documentos e móveis de João Dantas foram queimados na calçada fronteira.
Informa-se sem confirmação que se aprenderam cartas íntimas entre João Dantas e sua noiva Anayde Beiriz. O jornal A União, que já era então o órgão oficial do governo da Paraíba, publicou uma série de acusações gravíssimas a familiares de João Dantas, inclusive ao patriarca, Dr. Franklin. Ódio mortal passou a jogar um João contra o outro. Amigos preocupados com aquela rivalidade conseguiram que o Dantas se retirasse para Olinda, em Pernambuco.
O Presidente João Pessoa preparava-se para receber a homenagem de um grupo de paraibanos pelo famoso Nego, inscrito como símbolo na bandeira da Paraíba, quando anunciara a Washington Luís a sua definitiva recusa em apoiar Júlio Prestes. Precisamente no dia 26 de julho, e acompanhado apenas do seu motorista, foi ao Recife numa viagem particular, amplamente divulgada pelos jornais locais, a fim de visitar um amigo enfermo, o Juiz Francisco Tavares da Cunha Melo, internado no Hospital Centenário. O Estado de São Paulo publicou no dia 3 de outubro de 1930: "Tudo indica que João Pessoa fora ver uma cantora com quem vinha mantendo romance secreto e isto explica a sua ida à Joalheria Krause."
Segundo os escritores paraibanos Horácio de Almeida e Amarýlio de Albuquerque, referidos por José Joffily no livro Anayde - Paixão e Morte na Revolução de 30 - Ed. Record - Pág. 49, essa cantora era o soprano Cristina Maristany.
No seu refúgio de Olinda, João Dantas armou-se de um revólver e rumou para o centro da capital pernambucana. Estava acompanhado do cunhado Moreira Caldas e não lhe foi difícil vislumbrar João Pessoa bem no centro da Confeitaria Glória. Aproximou-se dele:
- João Pessoa? Eu sou João Dantas.
Vários tiros foram disparados por João Dantas e por Moreira Caldas, não se tornando possível, assim, caracterizar qual tenha sido a bala fatal que lhe varou as costas. Ao tentar a fuga, João Dantas foi ainda atingido de raspão na cabeça com um disparo feito pelo motorista de João Pessoa.
Em seqüência, diversas outras mortes trágicas
Presos, João Dantas e Moreira Caldas foram recolhidos à Casa de Detenção, do Recife, onde ambos, no dia 3 de outubro, logo no início da Revolução de 30, viram-se degolados a cortes de navalha e suas cabeças remetidas à Paraíba. Versão diferente dá conta de que eles se suicidaram com golpes do mesmo bisturi, primeiro Dantas, depois Caldas. Para sustentar a tese desse suicídio-a-dois, José Joffily revela no seu livro, pág. 53, a existência de bilhetes deixados por ambos sob os travesseiros:
"Como poderiam estes documentos de despedida, escritos em instante derradeiro, apresentar a correta redação, o talho das letras e a autenticidade das assinaturas, comprovadas em perícia, se tudo fosse escrito no tumulto de uma feroz degola e trucidamento?"
Cita a confidência de João Dantas ao seu irmão Manoel, como prova do seu intuito de suicidar-se: "- No caso de um movimento armado e vitorioso, eu não me entrego. Mato-me!"
"- E tens ao menos com que te matar?"
"Ele abriu a gola do pijama e retirou dele um afiado bisturi."
Três dias depois aconteceu outra morte dolorosa: a da noiva Anayde, uma moça de 25 anos, bonita, moderna e avançada para a época, que, já tendo ingerido o tóxico peçonhento de uma cobra, procurou refugiar-se no Asilo Bom Pastor, à Rua Benfica, bairro da Madalena, Recife, onde deu entrada às 11 horas do dia 6 de outubro para, mesmo socorrida pelas freiras, morrer três horas depois. Causa mortis, atestada pelo IML local: envenenamento.
Anayde, uma órfã de pai e mãe, execrada com o sinete daquela paixão por João Dantas, foi enterrada no cemitério de Santo Amaro, como mendiga, sem endereço e sem nome conhecidos, de acordo com sua certidão de óbito.
A quinta vítima dessa tragédia shakespeariana foi o ex-governador e já então Deputado Federal João Suassuna, assassinado, por Miguel Laves de Souza, com apenas um tiro, na esquina da Rua Riachuelo com a dos Inválidos, Rio.
O parlamentar, amigo de João Dantas, viera ao Distrito Federal na esperança de ser recebido pelo Presidente Washington Luís, já na agonia final de seu governo, para fazer-lhe um relato sobre a situação paraibana.
Sobre esse assassínio de Suassuna, seu filho, Ariano Suassuna, acadêmico e escritor (Auto da Compadecida), denunciaria num artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 11 de setembro de 1980:
"Por ocasião dos acontecimentos de 30, nos quais, entre outras coisas, meu pai foi assassinado, a mando de pessoas que apoiavam Getúlio, éramos todos, da nossa família, antigetulistas."
Pelo menos aparentemente, a morte de João Pessoa não passara de um crime passional, transformado em tragédia política. O navio "Rodrigues Alves", que transportou seu corpo para o Rio, fez escalas em Salvador e Vitória, onde multidões acorreram ao Cais do Porto , para ovacioná-lo. No Rio, em plena Avenida Rio Branco, o caixão foi saudado por Maurício de Lacerda:
- Cidadãos, mirai este esquife. Morrei por este homem que por vós morreu. Ajoelhem-se e deixem passar o cadáver deste Cristo do civismo e ergam-se, depois, para ajustar contas com os judas que o traíram."...
"Testemunho Político" - 1998-pg.3
Um presidente de Cuiabá, desconfiado e esquivo
Eurico Gaspar Dutra era um cuiabano, esquivo e desconfiado. Com um físico franzino, fora recusado inicialmente pelo Exército. E se vira aprovado numa segunda junta de saúde, já na cidade de Corumbá. Fez depois uma completa carreira militar, permanecendo como ministro da Guerra desde 1937 e visitando a FEB, na Europa. Foi tido como o Condestável do Estado Novo, até 1945, quando ajudou a depor Getúlio Vargas no dia 29 de outubro, embora viesse a receber em seguida o apoio getulista, decisivo, para a sua candidatura presidencial.
Governou durante cinco anos, apoiado por quase todos os partidos: PSD, UDN, PTB e PR. Inaugurou em Volta Redonda a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN e, no Rio, em 1948, o Tribunal Federal de Recursos - TFR; construiu a Hidrelétrica de São Francisco - CHESF; proibiu o jogo e fechou os cassinos; lançou o plano SALTE, que foi o primeiro projeto de governo no Brasil, com as metas prioritárias de sua sigla: Saúde, Alimentação, Transporte e Energia.
Esse Plano, que nasceu das visitas do General Eisenhower e do Presidente Truman ao Brasil – logo retribuídas pelo Presidente Dutra em 1948 -, não pôde ser integralmente executado por causa da demora de sua aprovação no Congresso.
Forte anedotário circulava então sobre a pessoa de Dutra, que não se aborrecia nem se magoava, porque encarava as piadas como provas de afeto popular:
- É possível que escondam de mim as mais pesadas.
Era o alvo predileto das anedotas. Fazia questão de manter-se atualizado sobre elas. Divertia-se quando as reproduzia para os amigos, mas não gostava de vê-las contadas por estranhos.
Não cortejava o aplauso do povo, mas torcia pelo Flamengo, do qual veio a ser sócio-benemérito.
Seu mutismo era famoso. Tinha horror a dar entrevistas coletivas ou individuais à imprensa. Só discursava em público quando não podia evitar. E lia penosamente textos preparados pelos seus ghost-writers. Tinha uma irresistível dificuldade para pronunciar certas palavras, sobretudo as que contivessem a letra s, que geralmente trocava por x.
Em 1954, três anos depois de ele haver deixado a Presidência da República, procurei-o certa tarde em sua residência da Rua Redentor, Ipanema. Fui na companhia do ex-Deputado Anísio Rocha, seu amigo particular. Queria uma declaração dele sobre o Memorial dos Coronéis e a crise militar, que estavam então em grande efervescência:
- Não posso nem devo falar sobre esses assuntos. A minha condição de ex-presidente me impede de dar entrevistas. Não tive tempo nem de ler os jornais sobre essa crise de que você está falando. É que um ladrão entrou aqui em casa, hoje de madrugada, e tive de chamar a polícia. Foi uma chateação terrível.
- Como foi mesmo esse assalto?
- Uma revista importante como a Manchete não pode se preocupar com histórias de ladrão. Foi um assalto comum. Não houve vítimas. Ele levou poucas coisas, inclusive porque não havia muitas coisas para levar. Não teve nenhuma gravidade ou importância.
- Então, voltemos à crise militar e ao memorial contra Jango...
- Olha aqui Murilo, é melhor nós voltarmos ao ladrão.
Marchas e contramarchas na sucessão de Dutra
A verdade é que o Presidente Dutra encontrara a nação em razoável situação econômico-financeira, provocada pelo acúmulo de reservas feito durante a II Grande Guerra. Mas o governo começou a desenfreada política de permitir importações então tidas como supérfluas: carros, geladeiras, tecidos, artigos de luxo, além de ferro velho, como a Leopoldina, quando foram gastos US$ 2 bilhões, num verdadeiro festival de esbanjamento e desperdício.
Na intimidade do poder, crescia a influência do chamado Partido da Copa e da Cozinha, que por trás dos bastidores comandava a política e a administração.
Do meio para o fim do qüinqüênio, começou a aumentar a onda da sucessão presidencial. Estava em plena vigência o Acordo Interpartidário, firmado entre o PSD, a UDN, e o PR. O Sr. Cirilo Júnior comentava:
- O diabo é que os partidos são três e o candidato só poderá ser um.
Muitas marchas e contramarchas aconteceram, então. Surgiram e sumiram as candidaturas de Octávio Mangabeira, Wenceslau Braz, Milton Campos, Nereu Ramos, Adhemar de Barros, Afonso Pena Júnior, Walter Jobim, Canrobert Pereira da Costa e Mello Vianna. Nasceu a famosa Fórmula Jobim, preconizada pelo governador do Rio Grande do Sul, para incluir apenas as forças consideradas leais ao governo. Sucederam-se monotonamente as reuniões dos "Três Grandes": Nereu Ramos, Prado Kelly e Arthur Bernardes. Uma Fórmula Mineira, então idealizada, incluía os gasparinhos, sugeridos pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra: Ovídio de Abreu, Carlos Luz, Israel Pinehiro e Christiano Machado.
Sobre este último, Amaral Peixoto conta que submeteu seu nome ao Presidnete Dutra, ouvindo dele a seguinte resposta:
- Este não serve.
- Por quê?
- Porque tem um irmão comunista, que dentro do palácio será muito perigoso para nós. O irmão era o escritor Aníbal Machado.
Com Plínio Salgado, sem apoio dos socialistas
Ciente de que o Acordo Interpartidário não era mais viável e tinha sido praticamente enterrado, com impossível tessitura, a UDN, pressionada por um Movimento Popular, reuniu a sua convenção nacional no dia 18 de abril de 1950 e lançou mais uma vez a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes para presidente e de Odilon Braga para vice, através de um histórico e dramático discurso de José Américo.
Convidado a apoiá-los, João Mangabeira, do Partido Socialista, reagiu:
- Não podemos caminhar ao lado de quem já tem o apoio de Plínio Salgado.
E viu-se lançado pelo PSB, escolhendo Alípio Corrêa Neto para vice. Com o PSD dividido entre ortodoxos e liberais, entre getulistas e dutristas, foi finalmente lançada na convenção nacional a candidatura de Christiano Machado, mesmo com o estranho veto ao seu irmão Aníbal, tendo dois candidatos a vice: Altino Arantes (do PR) e Vitorino Freire (do PST).
Lá em São Borja, durante os últimos cinco anos, Getúlio se deixara ficar, livre dos atritos e desgastes. Antes solitário e praticamente abandonado, ele assistia agora, de uma hora para outra, à revoada de políticos que aterrissavam no campo de pouso de sua fazenda: Adhemar de Barros, Salgado Filho, Danton Coelho, Epitácio Pessoa e Erlindo Salzano, que lhe levavam apelos para que aceitasse ser candidato.
Assinou-se aí o famoso Protocolo de Itu, que consagrava a fusão dos partidos populistas em apoio a Getúlio na sucessão presidencial, mas que não incluía ainda no seu texto a escolha do vice-presidente.
Adhemar engajou-se nessa frente: não podia ser candidato, ele próprio, à Presidência da República, porque tinha de enfrentar um genro de Dutra, o vice-governador em São Paulo, Novelli Júnior, que era seu inimigo pessoal e ao qual não podia transferir o governo, seis meses antes da eleição. Ao mesmo tempo, precisava do apoio getulista para o candidato à sua sucessão no governo de São Paulo,, o


Prof. Lucas Garcez.



"Testemunho Político"

CATINGUEIRA


Cidade, Casa e Igreja: sobre Catingueira,
seus adultos e suas crianças1


Flávia Ferreira Pires

Conta-se que, em finais do século XIX, o vilarejo que se constituía às margens de
um pé de catingueira2, dando repouso aos viajantes e comerciantes de passagem
entre as cidades de Piancó e Patos (Paraíba), foi salvo de uma peste de cólera,
através de uma promessa, pelas graças de São Sebastião. Ao santo é atribuído
o dom de exterminar a fome, a peste e a guerra. São Sebastião cumpriu a sua
parte na promessa: ninguém adoeceu no vilarejo3. O pagamento da promessa
compreendia a construção de uma capela e a doação ao santo de todo o lugarejo
que, hoje, compreende parte da Serra da Catingueira4, da cidade e da área rural.
Para saldar a dívida da promessa, foi preciso unir quatro famílias distintas que
doaram parte de suas propriedades ao santo, o que posteriormente constituiria a
cidade5. Assim, juridicamente, todos os terrenos da cidade se tornaram propriedade
do santo. Ainda hoje, a maioria dos terrenos na cidade pertence ao “Patrimônio
de São Sebastião”. Quem mora nos terrenos do santo paga uma quantia anual à
igreja, chamada foro, uma espécie de aluguel pelo uso da terra. O pagamento do
foro é calculado a partir da extensão frontal do terreno. A cada metro, paga-se R$
1 por ano (pelo menos desde o ano 2000 até 2005). Os moradores que desejam ser
donos do terreno onde construíram as suas casas podem negociá-lo, dependendo
da política adotada pelo bispo6.
Além da igreja católica, na cidade há também um centro espírita de linha
kardecista e três igrejas evangélicas, dentre as quais a Assembléia de Deus é a mais
antiga e com maior número de fiéis. Para completar o quadro religioso evangélico
temos, por fim, as igrejas Seguidores de Cristo e Pentecostal do Evangelho Amor
de Deus7. Na cidade de Catingueira, apesar da presença do protestantismo e do
espiritismo kardecista, o catolicismo é a religião predominante. Como se vê, a
própria constituição da cidade está ligada ao catolicismo e à fé em um santo. Neste
contexto, descrevi alhures que o santo padroeiro é um mediador entre as religiões
representadas8.
Quanto à localização geográfica, a cidade de Catingueira situa-se na região
do semi-árido nordestino, no chamado Vale do Piancó, na parte oeste do Estado
da Paraíba. Catingueira é um município onde estima-se que metade da população
viva na área rural. Essa população dos “sítios” (zona rural) vive basicamente do
plantio em pequena escala do milho e do feijão, ambos para a subsistência e para o comércio de excedentes,
embora muitas famílias que vivem na cidade também contem com a colheita do seu roçado para garantir a
sobrevivência. Dependendo da localização do sítio, pode-se plantar também arroz, que “gosta” de terrenos
alagáveis, chamados de “baixios”. Além disso, algumas famílias cultivam também a batata doce, a macaxeira
e o maxixe em menor escala. O cultivo de frutas não é tradicionalmente popular. O plantio e a colheita seguem
o calendário das chuvas, o chamado inverno, que normalmente tem início em janeiro, com as celebrações em
honra de São Sebastião, e finda em junho, com as celebrações de São João, São Pedro e Santo Antônio. Em
Catingueira não se utiliza irrigação na agricultura, apesar de não faltar água na cidade desde a construção do
Açude dos Cegos, na década de 1990. As famílias que vivem em propriedades de terceiros plantam no sistema
de terça parte ou meia. Quando o “ano é bom”, isto é, quando há excedentes – geralmente o milho e o feijão –
eles são vendidos (ou trocados) ao longo do ano para a compra de outros gêneros de primeira necessidade. As
famílias geralmente criam animais, como galinhas, bode, porco e jumento. Na cidade, criar animais de pequeno
e médio portes é, basicamente, tarefa feminina. Criam também gado, porém em escala bem reduzida, já que, na
estação da seca, falta-lhe alimento, devido aos pastos ficarem ressequidos. É considerado um bom negócio criar
o gado no inverno (estação das chuvas) e vendê-lo ainda gordo quando estas começam a escassear, no início
do verão (estação da seca). Na seca, o preço do gado cai drasticamente, assim como seu peso.
Na cidade, as famílias vivem basicamente dos benefícios do governo federal (bolsas e aposentadorias),
de alguma plantação ou criação de seu roçado ou muro (terreiro, quintal) ou, quando possuem, de um emprego
na prefeitura. Comenta-se na cidade que hoje em dia ninguém mais quer trabalhar nas roças, porque o serviço
é considerado pesado e difícil. Com isso, cada dia mais famílias vão morar na cidade, criando um problema
econômico e social, dado o enorme déficit de empregos. O raciocínio é o seguinte: ‘Bem ou mal, no sítio a pessoa
pode plantar um feijãozinho e a alimentação da família fica garantida. Na cidade, a pessoa não encontra trabalho
e não tem nem como alimentar os filhos’. Infelizmente, não posso confirmar com dados estatísticos este êxodo
rural. Porém, “conseguir” um emprego na prefeitura é uma grande aspiração da maior parte da população. O
emprego na prefeitura é altamente valorizado pela estabilidade que implica. Estabilidade é entendida como a
certeza de receber aquele salário no final do mês, o que possibilita, por exemplo, o planejamento da compra
de bens duráveis. Mas é interessante constatar que esta reconhecida estabilidade é compatível com o fato de
que a cada novo prefeito ocorrem mudanças drásticas no quadro de funcionários, os quais são substituídos em
função dos laços de amizade ou parentesco com o candidato a prefeito vitorioso. A necessidade de trabalhar na
prefeitura, já que não há na cidade outros empregadores – senão as vendas e os bares (que geralmente utilizam
mão de obra familiar) – cria relações de co-dependência entre os políticos e a população9. A prefeitura, por sua
vez, sustenta-se financeiramente através do dinheiro do Fundo de Participação dos Municípios e do Imposto
Territorial Rural. Na cidade, não há fábricas ou indústrias.
Alguns meninos complementam o orçamento familiar fazendo pequenos serviços, como capinagem de
terrenos, venda de picolé (conhecido alhures como sacolé ou chup-chup) ou costurando bolas (para uma fábrica
em Patos que paga R$ 1,50 por unidade costurada – julho de 2004). As meninas geralmente não são pagas pelos
serviços que executam, uma vez que estes estão inseridos nas atividades domésticas cotidianas.

Quanto aos benefícios do governo federal, a Bolsa Família compreende o Fome Zero, no valor de R$ 50; a
Bolsa Escola, no valor de R$ 15 por criança cadastrada e o Vale Gás, de R$ 15. Além destes benefícios, Catingueira
conta com o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), com duzentas crianças cadastradas recebendo
mensalmente R$ 25, e com o Agente Jovem, com vinte e cinco jovens cadastrados, recebendo mensalmente R$
65. Há ainda o Programa Leite da Paraíba, com cento e cinqüenta famílias cadastradas, que recebem diariamente
um litro de leite. E, por fim, o Auxílio à Natalidade no valor de R$ 1.400 por nascituro. Já em 2002, os benefícios
do governo federal geravam discussões substanciais na comunidade (Pires 2003:99-100). As aposentadorias
como trabalhador rural levantam uma questão sociológica interessante, na medida em que se entende que o
indivíduo que não possui sua própria terra depende de um “patrão” para assinar os papéis da sua aposentadoria.
Entre o proprietário de terras que assina a papelada e o trabalhador será estabelecido um vínculo, que pode ser
reavivado, por exemplo, em momentos de eleições, ou quando o proprietário de terras precisa de uma “ajuda”
de qualquer natureza (capinar um terreno, limpar a casa etc.), ficando aquele trabalhador e a sua família para
sempre “endividados”. O ato de assinar os papéis é tido como prova da bondade do proprietário de terras – à
qual o trabalhador responde com gratidão (Mauss 1974 [1923-24]). No entanto, ultimamente algumas pessoas têm
conseguido a aposentadoria através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais sediado na cidade de Catingueira.
Segundo dados do Censo do ano de 2007, Catingueira conta com 4.849 habitantes em uma área territorial
de 529,46 Km². Aproximadamente metade da população vive na área rural, enquanto a outra metade vive na
cidade. A faixa etária com o maior número de habitante está concentrada dos dez aos catorze anos, com 667
habitantes. Dentre as pessoas residentes com dez anos ou mais de idade, 2.222 habitantes não contam com
nenhum rendimento (rendimento nominal mensal), sendo o rendimento nominal mensal médio R$ 220,85 entre
as pessoas residentes com dez anos ou mais de idade, com rendimento.
O Produto Interno Bruto (PIB) no ano de 2003 foi de R$ 12.662.829, contabilizando um PIB per capita de
R$ 2.772,07 de acordo com o IBGE. Ainda, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de acordo com o PNUD
2000 era de 0,555. Sobre as finanças públicas, em 2003, as receitas orçamentárias realizadas computavam R$
2.611.909,84. Destes R$ 2.012.508,34 eram oriundos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e R$ 4.159,56
oriundos do Imposto Territorial Rural (ITR). Em 2004, houve 1.180 matrículas no ensino fundamental, e em 2004
havia 56 docentes no ensino fundamental. Em 2006, Catingueira contava com 3.566 eleitores10.
Os dados estatísticos podem auxiliar o leitor a imaginar a realidade social da Catingueira; no entanto, é
preciso ressaltar que os dados aqui expostos só podem ser completamente entendidos quando referidos às
especificidades locais como, por exemplo, o alto poder de compra do salário mínimo. Em outra oportunidade,
escrevi que as famílias que contam com dois salários mínimos são consideradas ricas, o que se evidencia, por
exemplo, no fato de que podem se dar ao luxo de comer carne (ou a “mistura”, ou seja, ovos e carne) todos os
dias, no almoço e no jantar (Pires 2003: 99).
Para descrever como a vida em Catingueira se move no tempo e no espaço, não poderia deixar de incluir
o calendário das festas e de descrever os horários seguidos pela população. A festa do Padroeiro em janeiro e
a festa de João Pedro (São João e São Pedro comemorados simultaneamente), em junho, são eventos muito
significativos. Em grande medida, a cidade vive da memória destas festas. Os comentários das festas passadas duram até que chegue a próxima. A festa é o momento de criar ou reavivar os laços sociais, entre eles os de
parentesco e os de amizade. Também é o tempo das alianças políticas e econômicas. As festas são, em princípio,
religiosas, mas ultrapassam as comemorações estritamente religiosas, apesar de nunca prescindirem delas11.
Há, geralmente, bandas de forró que tocam em praça pública ou bailes na quadra de esportes, onde se cobra um
ingresso na entrada12. Freqüentam as festas tanto a população local e das cidades vizinhas, quanto os chamados
“filhos-ausentes”, isto é, pessoas que nasceram na cidade, emigraram por razões econômicas e, segundo os
catingueirenses, acabaram por “enricar” (Pires 2003, 2004).
Catingueira acorda cedo, ao raiar do sol, entre as quatro e seis horas da manhã. Quem levanta tarde
(depois das sete horas) é considerado preguiçoso. A partir das cinco horas, as pessoas que vão fazer compras
em Patos ou viajar aparecem na praça para conseguir lugar nas primeiras viagens das caminhonetas – que fazem
o transporte de passageiros pelas cidades vizinhas13. Das cinco até as sete horas da manhã, pequenos grupos
de três ou quatro homens sentam-se na praça, batendo papo, enquanto suas mulheres varrem a calçada ou
preparam o café. A cidade vive uma espécie de efervescência às oito horas da manhã, quando a agência dos
Correios e a casa lotérica abrem suas portas. Entretanto, entre as onze e quinze horas, a cidade é quase deserta.
Só se movem os grupos de estudantes indo e voltando dos colégios. O restante da população está dentro de
casa, almoçando, descansando, tirando uma soneca ou vendo TV. Só depois das dezesseis horas, quando o
sol abranda seu calor, a cidade movimenta-se novamente. Ao cair da noite, salpicam cadeiras de balanço nas
calçadas. A praça movimenta-se outra vez com grupos de jovens conversando e casais namorando. Por volta das
vinte e uma horas, a praça começa a esvaziar, mas perto das vinte e duas horas e trinta minutos se movimenta
novamente, com os estudantes que deixam o colégio. Exceto por alguns bares que ainda estão abertos, à meia
noite parece que toda a cidade dorme.
Faz parte dos ritmos sociais catingueirenses o localmente chamado “tempo da política”, sobre o qual
Moacir Palmeira (1996, 2001) e Palmeira & Heredia (1995, 1997) discorreram demoradamente. “A política está
chegando” é frase que remete ao tempo social em que todas as conversas começam ou terminam falando dos
candidatos, em que não há silêncio possível devido aos carros de propaganda, em que, enfim, todas as pessoas
estão envolvidas no reavivamento, destruição ou construção de novas alianças políticas. Gostaria de assinalar
que as crianças também estão incluídas no “tempo da política” de maneira ativa e efetiva.
Em 2005, durante o meu trabalho de campo, subi a Serra da Catingueira, com mais ou menos umas
quinze crianças. A subida da Serra pode ser levada a cabo basicamente com o intuito de pagar promessa ou por
diversão (mais informações sobre a Serra serão fornecidas adiante). Naquele dia, na descida da Serra, não me
senti bem. As crianças perceberam que algo estava errado, mas não sabiam o quê. De minha parte, não queria
compartilhar a causa da minha “fraqueza” porque, naquele momento, eu era a responsável por elas. Coincidiu que,
na descida da Serra, elas vinham cantando as músicas dos seus candidatos prediletos. Havia ‘eleitor’ para todos
os candidatos, o que incentivava a competição entre as crianças na forma de brincadeiras jocosas. Aconteceu
que, um dia depois da subida da Serra, um grupo de crianças – as que cantavam mais exaltadas as músicas da
“política” – veio até a minha casa pedir-me desculpas. Meu mau humor, pensavam elas, era devido à cantoria
entusiasmada da música de um determinado candidato a prefeito que, por sua vez, não correspondia, segundo elas, à minha opção de voto! Com isso, vê-se que as crianças também estão fazendo suas escolhas políticas e,
ao mesmo tempo, têm um aguçado faro para as opções alheias. Para mais um exemplo de como as crianças
envolvem-se na política, R., menina de treze anos, cujo padrinho “Zé Pelado” era candidato a vereador, inventou
o seguinte lema para incentivar a sua campanha: “Rim por rim vote no meu padim!”. “Rim” é a expressão oral de
“ruim”, assim como “padim” corresponde a “padrinho”. O lema da menina, para além de seu sentido humorístico,
tece uma crítica social aos políticos de modo geral. Para ela, todos os políticos são ruins. Ela adverte: se é assim,
opte por alguém que você conheça. Sua mensagem é clara: dada a atual conjuntura, em que nenhum político é
confiável, vote no meu padrinho, porque este, eu conheço.
De todas as crianças que desenharam14 em quem elas votariam, apenas uma delas, de seis anos de idade,
relutou entre dois candidatos a prefeito. Todas as outras crianças tinham feito previamente as suas opções entre os
candidatos daquele ano e as sustentavam com energia. Estas opções geralmente coincidem com as dos seus pais,
mas nem sempre. Quando perguntadas as razões para votar em determinado candidato, as crianças enfatizavam, em
primeiro lugar, algum grau de parentesco. Se não há nenhum grau de parentesco, um bom candidato é aquele que “dá
as coisas ao povo”; em outras palavras, aquele que não nega ajuda. A ajuda pode ser endereçada à comunidade de
modo geral, como na redação de L.12.F15: “Eu gosto da dona Zuila porque ela dá muitas coisas aos pobres, dá ajuda
a quem precisa (...) Ela dá feira de material escolar, dá material de construção de casa”. Mas, muito constantemente, a
ajuda é pessoal e especificamente direcionada à família daquela criança. R.12.F escreve: “Se eu fosse votar, eu votaria
em Edivan. Porque ele vai fazer a casa da minha mãe. Se eu fosse votar para vereador, eu votaria em Dr. Humberto,
porque ele conseguiu a aposentadoria da minha mãe”. A.11.F sintetiza bem as duas grandes razões para se votar em
um candidato, quais sejam, ligação de parentesco e generosidade por parte do candidato: “Para prefeito (...) eu voto
em Edivan porque, a primeira coisa (...) ele é nosso primo e já ajudou muito a nossa família”.
Razões para não votar em um candidato vão de uma simples antipatia pessoal a promessas não cumpridas,
mas a principal razão é a falta de “generosidade” para com o povo. S.12.F escreveu: “Eu não gosto dela [uma
candidata à prefeitura] porque um dia vó foi pedir não sei o quê, aí ela disse que não dava. Aí vó e mãe não votam
nela. Ela é muito falsa. Como ela quer que alguém vote nela? Ela não fez nada para ninguém. Eu acho que quando
ela era do lado do Dão [ex-prefeito], não dava nada para ninguém, nem um centavo”. Esclareço que os bens que
os candidatos distribuem através de critérios seletivos são, na verdade, bens de natureza pública – dentre os
quais podem estar incluídos uma viagem da ambulância da prefeitura para levar uma criança doente até o hospital
em Patos, a inscrição em um programa de benefício do governo federal como o Bolsa Escola ou, inclusive, a
facilitação da aposentadoria como trabalhador da agricultura. G.7.F escreveu: “Eu voto nele porque foi ele que
deu óculos de mãe, e porque ele deu a chapa de mãe” (chapa é o mesmo que dentadura). Ou ainda T.9.F: “Eu não
gosto do Edivan porque ele, em vez de dá o dinheiro aos pobres, ele faz festa”. Parece-me que o político bom
é político da família e, além disso, é aquele que distribui dinheiro ao povo. Isso até uma criança de seis anos de
idade já sabe. C.6.F., ainda elaborando que tipo de bem participa neste “jogo da generosidade”, escreveu: “Eu
votaria nele porque ele é meu pai. E também quando ele recebe dinheiro, ele me dá um real. Quando ele promete
que dá qualquer coisa a mim, ele cumpre”. Interessante ressaltar, por último, que as razões para a escolha de um
determinado candidato político, segundo as crianças, parecem não diferir daquelas dos adultos.

Quanto à geografia interna, a Rua da Cerâmica é o lado escuro e, podemos assim dizer, criminoso da cidade.
Curiosamente, é a rua tida como a mais pobre, com o maior número de casas de taipa. Ali não há iluminação
pública, calçamento ou rede de esgoto. Em geral, as pessoas têm vergonha ao dizer que moram naquela rua.
Como as casas são distantes uma das outras, na escuridão da noite, a Rua da Cerâmica torna-se “perigosa”. Certa
noite, passei naquela rua com um jovem amigo e vimos um carro com o porta-malas aberto estacionado um
pouco além da estrada de terra, dentro do “mato”. Meu amigo ficou muito preocupado e pediu que acelerasse o
carro, com medo de que se tratasse de assaltantes ou vendedores/consumidores de drogas. Quando chegamos à
cidade, ele foi direto para a delegacia avisar aos policiais do fato. Os policiais checaram o que estava acontecendo,
reportando ao meu amigo, com um sorriso malicioso nos lábios, tratar-se de um morador da Rua da Cerâmica
com a sua namorada. O porta-malas aberto tinha como objetivo simular uma pane mecânica do carro16.
A Rua do Açude é também tida como pobre, mas goza de reputação festeira – talvez por sua proximidade
com o açude, ponto de lazer para rapazes e moças mais “atiradas”. Ali, beber é uma constante, e namorar, também.
A Rua do Olho d´Água já foi considerada o “fim do mundo”, mas hoje, com a construção de várias “casas boas”
(julgamento êmico que se refere, dentre outras coisas, ao fato de ter sido usado tijolo na sua construção), é tida
como um lugar bom de se morar. Apesar de não ser central, é perto do olho d´água. Uma rua silenciosa não é
uma rua considerada boa de se morar, porque ela seria uma rua “esquisita”. Em Catingueira, quando a cidade
está parada, isto é, quando não há nenhum tipo de som ligado, diz-se que a cidade ou o dia está “esquisita(o)”.
Estar esquisito significa estar silencioso, o que não é considerado agradável. Muitas pessoas reclamam de morar
no sítio justamente porque “no sítio é muito esquisito”. Com isso, podemos começar a entender o que sempre
me causou muita estranheza durante os meses em que vivi na cidade. O volume da música que se ouve em
Catingueira, seja nos bares, casas ou alto-falantes dos carros é altíssimo, especialmente nas festas. No entanto,
as pessoas não parecem se incomodar em absoluto. É natural que os jovens gostem do barulho, mas nunca
consegui encontrar ninguém da cidade, por mais idoso que fosse, que preferisse o som desligado. As pessoas
parecem simplesmente não se incomodar ou, eu diria, parecem até mesmo gostar do som alto. Isso só pode ser
entendido, mesmo que parcialmente, se pensarmos na categoria nativa “esquisito”, que foi apresentada acima.
O silêncio é esquisito e indica alguma coisa que está parada no tempo e no espaço. Não se desenvolve, não
cresce, não gera dinheiro. Parece que a música – e quanto mais alta melhor – é um signo do progresso, que vem
em forma de alegria e conseqüente bebedeira, festa, dança. Posso dar um exemplo: o Coreto, um bar na região
central, geralmente fica com as portas fechadas em dias de semana. Mas quando a prefeitura faz o pagamento, ou
quando os rapazes que vendem sapatos pelas cidades voltam a Catingueira, o Coreto sempre abre suas portas.
Não importa qual seja o dia da semana. E, de Coreto aberto, subentende-se música tocando17.

O Alto é um conjunto de ruas sem urbanização, iluminação ou rede de esgoto. Como a Rua da Cerâmica,
é tido como lugar de gente pobre, mas sua particularidade é ser lugar de muita confusão e brigas. No entanto, é
preferível morar no Alto que na Rua da Cerâmica – considerada erma e, por isso, como já afirmei, perigosa. Ali, ao
contrário da Rua da Cerâmica, há uma grande concentração de casas, o que desestimula as atividades ilícitas, ao
mesmo tempo em que estimula as brigas familiares e entre os vizinhos. A Pista é o lugar onde está a prefeitura,
os postos de saúde, a padaria e os maiores bares. É por onde passam o ônibus e as caminhonetas que fazem o
transporte de passageiros e cargas. Pela Pista, a cidade recebe os visitantes – entre eles, os “filhos-ausentes”. É
perto do Coreto, na região central, que acontecem as festas públicas. No centro da cidade (também chamado “a
rua” – ver nota 16 – ou “a cidade”) está a igreja Católica e, à sua volta, uma praça. O prestígio da localização das
residências é medido, em parte, pela sua distância em relação à igreja Católica. O Centro Espírita está localizado
em uma rua periférica próxima ao centro. A igreja Assembléia de Deus está localizada no caminho para o Açude
do Prefeito, distante do centro, enquanto a igreja do Evangelho do Amor de Deus fica na mesma rua da igreja
Católica. E, finalmente, a igreja Seguidores de Cristo fica localizada na Rua da Cerâmica.
O Açude dos Cegos abastece a cidade de Catingueira e todas as cidades vizinhas. Além disso, é usado
para lazer, pescaria e irrigação das terras próximas. O Açude do Prefeito, por sua proximidade com a cidade,
é usado para lavar roupa, cavalos, jegues, carros e para o lazer masculino, especialmente infantil. Catingueira
conta com quatrocentas e vinte propriedades rurais chamadas de “sítios” (informação do Incra com base em
Catingueira referente ao ano de 2005). “Ser do sítio” – não importa qual –, em oposição a morar na cidade, é tido
como marca indelével e justificativa para o fracasso ou a estupidez. Se um menino do sítio tem dificuldades em
aprender a ler, sua professora dirá: “Ah, é do sítio”, lavando suas mãos.
A Serra da Catingueira também faz parte do painel geográfico da cidade. Ela é cantada nos versões de
Inácio da Catingueira, nas músicas do grupo O Cordel do Fogo Encantado18 e na saudade dos catingueirenses.
Inácio da Catingueira é considerado um dos maiores repentistas de toda a história. Ele nasceu em uma fazenda
na região onde hoje fica Catingueira. Era negro, escravo e analfabeto mas, com sua astúcia e inteligência, foi
capaz de derrotar Romano do Teixeira, repentista também afamado, porém branco, livre e formalmente educado.
A peleja entre os dois cantadores teria durado oito dias e oito noites sem intervalos (Nunes 1979:19; Sátyro
1979:129). O “gênio negro do sertão” morreu no ano de 1879 (Nunes 1979:15). Os catingueirenses exaltam o
nome de Inácio e a sua ligação com aquela terra sempre que é preciso afirmar as particularidades da sua gente.
Na praça da cidade, há uma estátua de Inácio em tamanho natural com o seu pandeiro na mão – instrumento
pouco usual nos repentes naqueles tempos.
Na Serra, foram instalados dois cruzeiros. Um em homenagem a São Sebastião, no alto da Serra, e outro,
no meio, em homenagem a Santo Antônio. No Cruzeiro de São Sebastião há uma “casinha” de tijolos, onde são
deixados ex-votos e acendem-se velas. Subir a Serra é um divertimento para a população jovem, principalmente
na época da festa do padroeiro. Os grupos geralmente sobem a Serra ao nascer do dia, por volta das quatro ou
cinco horas, para não se expor ao sol muito forte. Geralmente, vão munidos de bebida alcoólica e comida – a
farofa/cuscuz com galinha é altamente apreciada. Os rapazes e as moças, muitas vezes, depois de passarem a
noite no baile, sobem a Serra quando a “barra do dia” começa a aparecer. Cansados, descansam tirando uma
soneca no alto da Serra, onde é sempre “frio”, em virtude do vento. Nos meses de chuva, a chamada Cachoeira
da Mãe Luzia fica cheia de água, propiciando deliciosos banhos em dias quentes. A chamada “Mãe Luzia” é um
poço de pedras que fica desoladamente vazio em tempo de seca. Mas quando chove, todos os pocinhos se
enchem, fazendo a festa de quem sobe a Serra. Quando o poço da Mãe Luzia está muito cheio, ele “sangra”, ou
transborda, donde o nome de cachoeira. Diz-se que Mãe Luzia era uma mulher que morava no alto da Serra e,
um dia, estava lavando roupa naquele poço quando foi comida por uma onça19.

Os locais, muito constantemente, quando sobem a Serra, levam fogos de artifício para soltar quando
alcançam o seu cume. Os fogos de artifício atestam o grande feito e, ao mesmo tempo, dão graças a São
Sebastião. Se as pessoas escutam fogos de artifício pela manhã, elas dirigem o olhar para o alto da Serra,
tentando identificar quem está a soltar aqueles “foquetões” para santo. Muitas vezes, elas sabem quem está lá
em cima porque a notícia de que um grupo vai subir a Serra na manhã seguinte corre ligeira. Também sobem
constantemente a Serra, com seus cachorros bravios, os caçadores. Nela, encontram alimento para o consumo
familiar ou para o comércio. Há ainda famílias que moram na Serra, vivendo da extração e venda de pedras e,
durante o inverno, da agricultura. Os membros destas famílias são acostumados a subir a Serra com rapidez
e, mesmo com a dificuldade, geralmente as crianças não deixam de freqüentar a escola. Demora-se em média
uma hora e trinta minutos para a subida e uma hora para a descida, em ritmo moderado. Subir a Serra, enfim, é
tido como um grande feito, recordação para a vida toda, atividade para jovens ou para quem se endividou com o
santo e precisa pagar promessa. Na Serra também está localizada a Furna, uma caverna da qual nunca ninguém
conseguiu alcançar o fim; os que tentaram, diz-se que ou desistiram, ou nunca mais voltaram. Para entrar na
Furna, o sujeito deve estar sem pecado, e levar consigo uma vela benta, que será a única fonte de luz capaz de
iluminar a escuridão da mesma. Lanternas, por mais que já tenham sido experimentadas, nunca resistem e se
queimam inexplicavelmente. O sujeito que quiser atingir o fundo da Furna, lugar onde o aguardará uma série de
surpresas − inclusive, possivelmente, o Carneiro de Ouro20 (ver Pires 2007) −, deve usar uma corda de grande
extensão a fim de não se perder no interior da caverna. Um grupo de amigos deve ficar na parte exterior segurando
a corda, a fim de puxá-la, em caso de necessidade. Além disso, a Furna é habitada por imensas quantidades de
morcegos e outras criaturas que se valem da escuridão, como os mal-assombros, cobras e onças − sem falar
que, à medida que o sujeito vai adentrando, a Furna vai se tornando cada vez mais estreita, chegando ao ponto
de o sujeito ter que se locomover arrastando-se.

CONCLUSÕES

Neste artigo descrevi brevemente alguns aspectos relevantes da vida social de Catingueira. Esta cidade é
tida aqui como um lócus de observação científica. O Nordeste Brasileiro, quiçá o país, é formado por muitas
“catingueiras”: cidades tradicionalmente campesinas, mas cuja população divide-se entre as áreas rural e urbana,
entre o desejo de emigrar para as grandes cidades e o desejo de possuir o seu pedaço de terra. Cidades pequenas
que dependem economicamente do Fundo de Participação dos Municípios para arcar com as suas despesas
básicas, como a folha de pagamento da prefeitura. Cidades que sofrem com a estiagem. Lutam contra altas taxas
de analfabetismo, contra a desnutrição e a subnutrição, e toda sorte de problemas decorrentes destas. Cidades
que oferecem poucas perspectivas de crescimento econômico aos seus habitantes, que muitas vezes optam
por emigrar para conseguirem melhorar de vida. Como se não bastasse, cidades que, como Catingueira, têm os
seus políticos envolvidos em escândalos de corrupção de nível nacional.
Cidade, Casa e Igreja



Conhecer os ritmos e as instituições sociais da cidade pesquisada e ser capaz de descrevê-los faz parte
do ofício do antropólogo. Neste pequeno artigo, talvez por demais descritivo, tenho como objetivo compartilhar
algumas observações feitas ao longo dos anos de pesquisa nesta cidadezinha do sertão paraibano. O artigo pode
servir de ponto de partida para o desenvolvimento de outras pesquisas: como mapeamento geral de uma região
no cenário brasileiro e como incentivo para futuros desdobramentos teóricos e pragmáticos. Como vimos, o que
não falta é tema a ser aprofundado. Alguns deles podem ser enumerados: a política local e suas implicações com
o chamado coronelismo; a geografia social da cidade e suas implicações sócio-econômicas; o lugar da igreja
católica e a dinâmica do sagrado; as festas e sua capacidade de deflagrar conflitos e soluções para problemas
de toda sorte; e a recepção e os desdobramentos trazidos pela introdução de políticas de distribuição de renda
na região.

Notas

1 Este artigo é uma reelaboração do segundo capítulo da minha tese de doutorado defendida em 2007 no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, cujo título é “Quem tem Medo de Mal-Assombro? Religião e infância no semiárido
nordestino”. Agradeço aos membros da banca pelas suas preciosas considerações.
2 Caesalpinia pyramidalis Tul. “É uma arvoreta com até 4 m de altura. Folhas bipinadas com 5-11 folíolos, sésseis, alternos, obtusos, oblongos.
Flores amarelas dispostas em racemos pouco maiores ou tão longos quanto as folhas. Vagem achatada de cor escura. Madeira para
lenha, carvão e estacas. É uma das plantas sertanejas cujas gemas brotam às primeiras manifestações de umidade anunciadoras do
período das chuvas. Então o gado procura as suas folhinhas com avidez, para pouco depois desprezá-las devido ao cheiro desagradável
que adquirem ao crescer. As folhas, as flores e a casca são usadas no tratamento das infecções catarrais e nas diarréias e disenterias. É
uma planta característica das catingas” (http://www.esam.br/zoobotanico/vegetais/catingueira.htm. Acesso em 21 de julho de 2005).
3 São Sebastiãozinho é o nome dado à pequena imagem adquirida como primeira imagem do santo padroeiro na época da promessa
inicial. Ela ainda hoje permanece na igreja. Durante a festa do padroeiro, esta imagem peregrina pelas casas dos fiéis, pernoitando a
cada noite na casa de um devoto. Durante as celebrações das missas, ela fica em um lugar privilegiado. Além disso, nas procissões
é ela que trafega pelas ruas, sustentada pelo povo. Esta imagem, por estar tão presente na vida daqueles que participam da festa
religiosa, adquiriu uma conotação humana. Mesmo tendo sido feita de um material perecível, ela é tida como um ente poderoso,
capaz de realizar milagres. Por isso, ao se referir a ela, não se diz a imagem de São Sebastião, se diz o próprio São Sebastião. E em
se tratando da primeira imagem adquirida, “São Sebastiãozinho”, não se trata da encarnação no barro de uma entidade exterior a
ele, mas de um barro tornado santo. O hino de São Sebastião, cantado nas missas e novenas durante a festa de janeiro, revela a
esperança no santo, já testada e comprovada na promessa inicial: “Livrai-nos da peste, São Sebastião” (Pires 2003:24). A imagem
do santo pode ser entendida como um “feitiche”, no termos de Latour (2000, 2002 [1996]; vide também Velho 2005).
4 A Serra da Catingueira, chamada localmente apenas de “Serra”, é local de pagamento de promessas e é tida como embelezadora
da paisagem da cidade; abriga dois cruzeiros, moradores e plantações. Falaremos mais sobre a Serra e sua importância para a
cidade no decorrer deste artigo.
5 A cidade mudou de nome várias vezes. Este processo parece ter se verificado também em outras cidades, como analisa Otávio
Velho (1981 [1972]). Pela lei n.º 836, de 9 setembro de 1887, o lugarejo que se constituía recebeu o nome de São Sebastião da
Catingueira, em virtude do milagre alcançado. Pelo decreto n.º 27, de 23 de julho de 1890, o lugarejo se tornou Jucá. Em 1933, pelo
decreto n.º 400, o povoado se transformou em distrito, também sob o nome de Jucá. Em 15 de novembro de 1938, o distrito teve
sua mais antiga denominação reimplantada. Tornou-se município pela lei n.º 2144, de 15 de julho de 1959.
6 Veja extrato de entrevista com uma moradora no ano de 2002 sobre a promessa inicial (Pires 2003: 26):
“- F.P. (Flávia Pires): Aqui eles falam que a cidade nasceu de uma promessa, a senhora sabe contar? (...)
- Sebastiana: (...) conta assim, né, que foi uma doença que houve na Catingueira aqui, né, parece que o nome era cólera... É, eu sei que deu
essa doença, e inventaram de fazer essa promessa, que São Sebastião protegesse pra num chegar até a Catingueira e diz-se que trocava
São Sebastião e fazia uma capela, e de fato, fizeram mesmo. E num chegou aqui não, veio até a Mina do Ouro, e o povo contava, né”.
Veja também extrato de entrevista com dois senhores no ano de 2002 sobre o proprietário dos terrenos da cidade (Pires
2003:25):
“- Sebastião: Quer dizer que é o seguinte, a cidade, toda a cidade tem um padroeiro dela, né? Aí quem manda é o padroeiro, aí a
festa é do Padroeiro.
- F.P.: Mas o padroeiro manda em quê?
- Sebastião: Em tudo, nos terrenos....
- José: Essa Serra toda é dele. Aqui, até acolá no açude...
- Sebastião: Se você quer comprar um chão aí você tem que falar com o padre.

ARTIGOS

- José: Com o bispo.
- Sebastião: Fala com o padre aí o padre vai ver e o bispo libera. Senão....
- José: Não compra não.
- F.P.: Nada com a prefeitura não?
- Sebastião: Não, a prefeitura num tem nada. Nada, nada.
- José: Nada com a prefeitura não. A prefeitura só tem o local dela”.
7 Nos anos anteriores a 2005, no lugar onde hoje funciona a Igreja Pentecostal do Evangelho Amor de Deus, funcionava a Igreja
Congregacional. Infelizmente, não observei detalhadamente o processo que culminou com o fim de uma igreja e o estabelecimento
da outra.
8 Além destes templos religiosos, existem na cidade algumas capelas. Uma delas, a Capela do Vaqueiro, é conhecida como malassombrada
(Pires 2007).
9 Há uma vasta literatura que trata do chamado “coronelismo”. Entre os clássicos, ver Leal (1975), Queiroz (1976).
10 “Uma revisão eleitoral feita pelo TRE no município de Catingueira, no sertão paraibano, resultou no cancelamento de 706 títulos
de eleitores fantasmas. No universo de 3.566 eleitores, 2.860 participaram do recadastramento e tiveram os domicílios eleitorais
homologados. A população de Catingueira é de 4.465 habitantes – LKA.” (Fonte: http://jornaldaparaiba.globo.com/poli-4-180606.
html, em 18 de junho de 2006).
Em maio do ano de 2006, o ex-prefeito de Catingueira João Felix de Souza teve a sua prestação de contas do ano de 2004 reprovada
pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, sendo intimado a devolver o valor de R$ 47.800,00 para os cofres públicos. O valor, na
sua maior parte, é referente a despesas não comprovados do INSS (Fonte: http://www.jornalonorte.com.br/noticias/?63304, acesso
em maio de 2006). O mesmo ex-prefeito está sendo investigado pela sua participação na chamada Máfia dos Sanguessugas, no que
se refere ao escândalo das ambulâncias, considerado uma dos maiores esquemas de corrupção já planejados pelos parlamentares
do país. (http://wscom.digivox.com.br/noticias.jsp?pagina=noticia&id=75810&categoria=29, acesso em 26 de julho de 2006).
11 Vide Pierre Sanchis (1983), assim como Lea Perez (1994, 1996, 2002), para belas análises sobre as festas.
12 Existem em funcionamento duas quadras de esportes na cidade. Uma quadra coberta, que fica dentro do colégio municipal, e outra
recentemente construída pela prefeitura, que fica na chamada “pista”, ou seja, na estrada que faz a ligação de Catingueira com
Patos (BR 361). Além disso, há também o campo de futebol (não coberto, não gramado) que faz a diversão da cidade quando há
campeonatos nas tardes de domingo. O futebol é o esporte mais popular na cidade. Com os torneios organizados pela prefeitura,
incentivou-se a organização dos moradores em times, dentre os quais dois são femininos.
13 O transporte, feito de maneira ilegal, utiliza caminhonetas, geralmente compradas com o benefício de isenção de impostos para o
proprietário rural. Na carroceria, são improvisados bancos de madeira para os viajantes. As caminhonetas são, na minha opinião,
uma versão atual do “pau de arara”, afirmação com a qual meus informantes não concordariam, porque vêem neste transporte
algo de moderno e eficiente. Na parte da frente da caminhoneta – onde se viaja com mais conforto – viajam, em princípio, as
pessoas que têm acesso à caminhoneta em primeiro lugar. No entanto, as mulheres e os idosos têm certa preferência. Parece-me,
entretanto, que a possibilidade de viajar nos bancos da frente depende mais da relação que se estabelece com o motorista ou dono
da caminhoneta (que nem sempre coincidem) e, principalmente, do status social daquela pessoa. Entre uma jovem professora da
cidade e um idoso do sítio, a professora sentar-se-ia na frente e o(a) idoso(a) subiria na parte de trás. É preciso acrescentar que
mesmo os que viajam na parte da frente não usam cinto de segurança. Algumas vezes vi as caminhonetas pararem de rodar por
algumas horas em função do conhecimento de uma blitz da Polícia Rodoviária. Para a população, por sua vez, a proliferação das
caminhonetas representa conforto, uma vez que o ônibus (transporte legal) só passa pela cidade de duas a três vezes por dia, em
horários inconvenientes.
14 Na pesquisa que culminou com o meu doutorado trabalhei com técnicas de pesquisa complementares, como os desenhos aqui
citados e as redações citadas adiante. Para maiores informações ver Pires (2007 e em preparação).

ARTIGOS

15 Os informantes são identificados da seguinte forma: iniciais do nome, idade, sexo.
16 Veja o que D. C., uma senhora de aproximadamente sessenta anos, moradora da Rua da Cerâmica, disse: “Às vezes eu num vou
pra igreja porque aí num tem luz, é no escuro, mas o menino botou lâmpada. Tava jogando umas pedras... [Quem?] Quem sabe?
Um malfazejo ruim. Num tá vendo, minha fia, como essa rua aqui como é. Aqui é esquisito, tu num tá vendo não, que é esquisito? É
mesmo que um sítio, menina! Olhe, de primeiro eu falava os povo: ‘Vocês vende tanta as coisas aqui na rua. Na rua da Cerâmica que
a gente é pobre, mas às vezes a gente compra umas coisa. Às vezes passa uma pessoa, tá com precisão a gente compra’. Pense,
menina, aqui num andava ninguém. Aí, agora eles passa” (Pires 2003: 16). Sobre o conceito de “esquisito” ver a nota a seguir.
17 A título de informação, a música que se escuta em Catingueira é, basicamente, o chamado “forró brega”, com o qual as bandas
Calcinha Preta, Cheiro de Menina, Kalipso, Gaviões do Forró, Magníficos, Limão com Mel etc. fazem grande sucesso. Resta dizer
que os carros de som dos candidatos, na época da política, não fugiam à regra do volume excessivo.
18 Ver como exemplo a música “Cordel Estradeiro”.
19 Existe até uma comunidade no site orkut chamada “Já subi a Serra de Catingueira”, atestando a popularidade do passeio.
20 O Carneiro de Ouro é um encantado, que mora na Serra, e que trará riqueza a quem o vir. Alguns dizem que ele mora na Furna, mas
que pode ser visto em todo o alto da Serra pelo reluzir do seu corpo de ouro. Segundo Cascudo (1984: 199), o Carneiro de Ouro é
uma versão do Carneiro Encantado. A lenda do Carneiro Encantado acontecera em Passagem de Santo Antônio, na divisa do Piauí
com o Maranhão, às margens no rio Parnaíba. Um monge missionário que voltava com um saco de esmolas para o convento foi
assassinado. Os ladrões assassinos, arrependidos do sacrilégio, trataram de enterrar ali mesmo o monge junto a todo o dinheiro
roubado. Neste local do enterro, é visto um grande carneiro branco com uma estrela radiante na testa, sinal de que ali se encontra
toda a riqueza. Sá (1913) conta história parecida, que se passa em Campo Maior, no Piauí, na Serra de São Antônio, e que dá origem
ao Carneiro de Ouro. Um grande carneiro de ouro, todo vestido de luz e com uma estrela na testa, tem-se apresentado a algumas
pessoas, às vezes durante o dia, às vezes durante a noite. Dizem que ele berra junto a uma enorme corrente de ferro, como que
indicando que naquele local existem grandes riquezas e grandes encantos. Mas, como uma só pessoa, ou mesmo duas ou três,
não são capazes de carregar o achado precioso, quem o vê volta à vila e reúne todo o povo para buscar o velocino. Chegando,
porém, ao lugar, não encontram mais sequer sinal da corrente ou do carneiro. Dantas (s/d:97-100) conta que, em Serra Talhada,
Pernambuco, na Vila Bela, existe um gruta em cuja entrada aparece um carneiro de ouro de brilho lusco-fusco. Dentro da gruta,
mora uma enorme e apavorante jibóia que não deve ser morta por se tratar de uma linda princesa encantada. Para entrar na gruta,
é preciso ter cuidado com os morcegos e com a jibóia (em hipótese alguma matá-la). Além disso, é imprescindível levar consigo
sete velas bentas por Padre Cícero. Essa versão é citada também por Melo (1930). Vê-se semelhanças entre essas versões e aquela
encontrada em Catingueira.


R E F E R Ê N C IAS B I B L I O G R Á F I CAS

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Cidade, Casa e Igreja: sobre Catingueira, seus adultos e suas crianças

RESUMO

Este é um artigo de caráter descritivo e etnográfico que apresenta a vida cotidiana de uma cidade pequena no
semi-árido da Paraíba. O objetivo é situar a cidade de Catingueira e os catingueirenses, abrangendo breves aspectos
sócio-econômicos, políticos, geográficos, religiosos, estatísticos. Além disso, discuto como as crianças estão
presentes neste contexto, dando destaque às idéias infantis, principalmente no que diz respeito à política.
PALAVRAS-CHAVE: crianças, infância, semi-árido, vida cotidiana.
Church, House and Village: children’s lives in semi-arid Northeast Brazil

ABSTRACT

This is an ethnographic descriptive paper that presents the everyday life in a village in the semi-arid region of
Northeast Brazil. The objective is to situate the people and the village, discussing various aspects of the community
life. Additionally, the paper discusses children’s political ideas and day-to-day lives.
KEY WORDS: children, childhood, Northeast Brazil, everyday life.

BIOGRAFIA DE MAYSA


Biografia de Maysa



vasculha diários íntimos 30 anos após sua morte
Nesta segunda-feira (22), completam-se os 30 anos da morte da cantora Maysa. No próximo mês, ela ganha uma alentada biografia --"Maysa: só numa multidão de amores" (Editora Globo)-- escrita pelo jornalista Lira Neto (leia trechos). Durante dois anos, o autor mergulhou no arquivo particular de Maysa, que lhe foi aberto pelo filho da cantora, o diretor de cinema e televisão Jayme Monjardim, atualmente trabalhando em "Páginas da Vida".
Foram pesquisados cerca de 30 kg de material (diários íntimos, cartas, bilhetes, fotografias e 100 mil recortes de jornais e revistas, do Brasil e do exterior). Com 450 páginas, o livro traz uma coleção de fotos raras e inéditas. No meio da montanha de papéis liberados por Monjardim, havia até mesmo um esboço de autobiografia, escrita por Maysa em 1972.Neto fez 200 entrevistas, com pessoas que conviveram direta ou indiretamente com Maysa, desde colegas e professoras de escola a ex-namorados, músicos, cantores, compositores, empresários, amigos e parentes. Vida tumultuada"Jayme Monjardim foi de uma extrema generosidade, e não me pediu absolutamente nada em troca, a não ser que fizesse um livro o mais fiel possível à vida tumultuada e intensa de Maysa, uma mulher que viveu sob o signo da ousadia e da transgressão", diz Neto. "As biografias ditas 'autorizadas' são vistas com certa desconfiança, mas esse não é o caso. Tive completa independência para escrever sobre tudo o que apurei durante a fase de pesquisa para o trabalho.""Maysa: só numa multidão de amores" promete muitas novidades e revelações para os fãs da cantora. "Maysa gostava de plantar pistas falsas sobre sua vida, inventava histórias fantasiosas, que fizeram muita gente que já escreveu sobre ela comer mosca", diz o autor.
Drogas, álcool e suicídioUma das maiores lacunas sobre a vida da cantora, relacionada aos quase oito anos que viveu fora do Brasil, são inteiramente elucidados no livro. A dependência química ao álcool, as internações em clínicas de desintoxicação, as tentativas de suicídio, os inúmeros casos amorosos vividos pela cantora, tudo será tratado com "transparência", afirma o autor. "O livro mostra os bons e maus momentos da personagem, seus instantes de glória e de fracasso. É um retrato de corpo inteiro de Maysa, para que o leitor possa compreender as motivações da artista e da mulher. Afinal, poucos tiveram vida e arte ligadas de forma tão indissociável quanto ela." Maysa morreu em 22 de janeiro de 1977, em uma acidente de carro na ponte Rio-Niterói. Tinha apenas 40 anos. "O que poucos conseguiam entender era como podia ser possível que, quanto mais bebesse, melhor Maysa cantasse", cita o livro.Confira trechos da biografia de Maysa
Confira trechos da biografia "Maysa: só numa multidão de amores" (Editora Globo), escrita pelo jornalista Lira Neto, com lançamento previsto para fevereiro.
Quem se debruçar sobre a coleção de jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo naquele ano de 1958 vai chegar a uma assombrosa constatação: entre 1° de janeiro e 31 de dezembro não houve um único dia --e isso, acredite-se, não é força de expressão-- em que Maysa não tenha sido notícia em pelo menos um órgão da imprensa carioca ou paulista. Quando não estava sendo incensada nas páginas de crítica musical ou torpedeada nas colunas de fofocas, a onipresente Maysa rendia assunto quente até para o noticiário político. Diante da enorme popularidade que desfrutava, surgiram rumores de que ela havia sido sondada pelo diretório do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no Rio, sobre uma possível candidatura a deputada federal. A idéia teria partido de ninguém menos do que João Goulart, o Jango, vice do presidente Juscelino Kubitscheck. Enquanto isso, em São Paulo, informações de bastidores davam conta de que o prefeito Adhemar de Barros havia convidado a cantora para disputar uma cadeira de vereadora, pelo Partido Social Progressista (PSP), na Câmara Municipal paulistana. "Jango e Adhemar convidaram Maysa Matarazzo", trombeteou o Última Hora. Ao ler aquilo, Maysa tratou de convocar uma entrevista coletiva para desmontar a central de boatos: "Não serei candidata nem sou mais Matarazzo", esbravejou.
Separada, Maysa buscava encontrar a felicidade. Mas, ao contrário, enfrentou crises seguidas de depressão, que resultaram em pelo menos dois graves problemas simultâneos e, de certa forma, complementares: passou a comer avidamente e a beber de forma desregrada. Voltou a engordar horrores e a dar pequenos e grandes vexames em público, trocando o dia pela noite. Nos programas de tevê, exigia que só a filmassem do pescoço para cima. Mudou todo o guarda-roupa e só se apresentava com roupa preta, o que além de disfarçar a gordura acentuava a aura dark de sua imagem. "Comecei a viver à noite e, durante o dia, vegetava dentro de casa", revelaria Maysa, ao recordar aquele tempo em que chegou a passar novamente dos 90 quilos. "Só saía de dia para ir à praia nos desertos da Barra da Tijuca: era a única forma de pôr um maiô, pois não havia ninguém por lá. Comprei um terreno, construí uma casa e alimentava ali a minha solidão e a minha falta de perspectivas. Quando era preciso cumprir algum compromisso, bastava aliviar a tensão com alguns drinques".
Os telespectadores logo começaram a perceber que havia algo errado com Maysa. Muitas vezes ela chegou a cambalear diante das câmeras, durante a apresentação de seus programas. Os objetos do cenário --um poste aqui, uma coluna grega acolá-- passaram a funcionar como providenciais pontos de apoio, nos quais ela se segurava para não cair em pleno palco. As duas doses de antes, "pra dar coragem", estavam sendo substituídas agora por litros de vodca e uísque. O rosto de Maysa igualmente denunciava que alguma coisa não ia realmente bem com a estrela. Os raros sorrisos, muitas vezes carregados de amarga ironia, agora acentuavam a característica curvatura que possuía o lábio superior, voltado ligeiramente para baixo, o que lhe atribuía um certo semblante de tristeza até quando ria. Mas o que poucos conseguiam entender era como podia ser possível que, quanto mais bebesse, melhor Maysa cantasse.
"Ela é uma coitada, uma infeliz, uma alcoólatra, uma gorda", censurou-lhe a revista Escândalo. Quando uma atormentada Maysa enfiou seu fusquinha verde na traseira de um caminhão em Copacabana, exatamente naquele final de 1958, a imprensa teve uma das manchetes mais escandalosas de todos os tempos sobre ela. E, dessa vez, Maysa não podia negar, esconder-se atrás de um desmentido. "Maysa, bêbada e ferida, foi atendida em pronto-socorro", noticiou a Folha da Noite. Disseram que era o fim. Previram sua retirada de cena. Falaram que o rosto ficaria deformado para sempre, com uma enorme cicatriz. Era uma vez a Cinderela às avessas. O que poucos podiam prever era que aquela seria apenas a primeira das muitas destruições e reconstruções que Maysa faria de sua vida-- e de si mesma.

"Deusa da fossa", Maysa ganha biografia 30 anos após sua morte
KARINA KLINGERda Folha OnlineO diretor global Jayme Monjardim, 49, deu o aval para a publicação da biografia de sua mãe, a cantora Maysa (1936-1977) --considerada a "rainha da fossa" por cantar a tristeza e a melancolia em clássicos da MPB como "Meu Mundo Caiu" e "Se Todos Fossem Iguais a Você".
Prevista para chegar às livrarias em 2007 --30 anos após sua morte em um acidente de carro na ponte Rio-Niterói--, a obra será escrita pelo jornalista e escritor Lira Neto, 41.Sucesso nas décadas de 60 e 70, a intérprete e compositora Maysa, cujo nome completo era Maysa Figueira Monjardim Matarazzo, ficou conhecida por interpretar clássicos como "Ouça", "Meu Mundo Caiu", "Resposta" e "Felicidade Infeliz", entre outros. Célebre por interpretar músicas de fossa e dor-de-cotovelo, a cantora também foi um ícone da bossa nova, sendo uma das primeiras vozes a levar esse gênero musical para terras estrangeiras. Fã de Maysa, Lira Neto foi autorizado por Monjardim, filho único da cantora, a revirar o baú da família, repleto de correspondência, escritos inéditos e recortes de

jornais e revistas da época. "O primeiro passo foi recuperar a sua discografia, que está fora de catálogo; confesso que não foi fácil, percorri uma série de sebos em São Paulo e, pela internet, contatei lojas que vendem vinis em outras capitais brasileiras", conta o escritor.





Segundo o pesquisador, Maysa era uma intérprete versátil, que com sua voz rouca imortalizou canções brasileiras e também em outros idiomas, como o inglês, o francês e até mesmo o turco. Nos anos 50, ela mostrou coragem ao deixar o marido milionário para dedicar-se exclusivamente à música, já que ele não aceitava a sua carreira.Profissionalmente, argumenta o escritor, a cantora viveu um momento importante na história da música brasileira, a transição do samba-canção dos anos 40 e 50 para a moderna MPB. "Ela foi uma das grandes divas que vieram depois de Dolores Duran e Aracy de Almeida", diz Neto.Apesar do aval da família, permitindo acesso livre ao arquivo daintérprete, Lira Neto tem um desafio pela frente. Afinal, a vida de Maysa sempre foi alvo de fofocas. Na década de 60, além dos problemas que teve com a bebida, a imprensa vivia lhe atribuindo "namoricos" e casos tórridos. "Pretendo mostrar todas as faces de Maysa, seus bons e maus momentos, suas alegrias e suas dores, enfim, traçar um retrato de corpo inteiro de uma mulher que ousou romper com o bom-mocismo e os preconceitos de sua época", diz o autor, que já iniciou a fase de entrevistas para o livro, que deverá ter cerca de 500 páginas.José de AlencarO último trabalho de Neto foi "Castello - A Marcha para a Ditadura", biografia do ex-presidente Castello Branco, um dos finalistas do Prêmio Jabuti deste ano na categoria "reportagem e biografia". A obra recebeu avaliações positivas, como a do jornalista Fernando Morais ("Chatô -O Rei do Brasil" e "Olga"), e de a de Elio Gaspari, autor de uma série de livros sobre o regime militar como "A Ditadura Derrotada" (2003) e "A Ditadura Encurralada" (2004).A biografia sobre Castello chegou no ano passado a ficar entre os mais vendidos em rankings de vendas de algumas livrarias, como a Cultura. Atualmente, o escritor finaliza a biografia do romancista José de Alencar (1829-1877). Antes de se dedicar à carreira de escritor, Neto foi ex-ombudsman do jornal "O Povo", editado no Ceará. Neto estreou como biógrafo em 1999 com o lançamento de "O Poder e a Peste - A Vida de Rodolfo Teófilo" sobre a vida do farmacêutico baiano Rodolfo Teófilo (1853-1932), autor do romance "A Fome" (1890), um clássico da literatura brasileira