8 de agosto de 2020

A resistência da fé

 

A resistência da fé


Recife saúda a restauração da primeira sinagoga
das Américas, recordando a perseguição aos
judeus na Colônia

beco mudou de nome - a antiga Rua dos Judeus chama-se hoje do Bom Jesus. O pacato bairro que acolheu o casario colonial erguido pela comunidade judaica às margens do Rio Capibaribe, no século 17, é agora ponto de efervescência turística no Recife. Moradias que sobreviveram ao tempo e à intolerância anti-semita, algumas reformadas nos últimos anos pela prefeitura, cederam lugar a bares e restaurantes da moda. Em meio a esse burburinho, a tradição judaica resiste e se destaca. Nos números 197 e 203 da Rua do Bom Jesus, dois sobrados geminados simbolizam a força dessa resistência. Os prédios abrigaram a primeira sinagoga das Américas, construída pelos judeus durante a ocupação holandesa, em 1640. Sobreviveram à ira luso-brasileira após a expulsão dos invasores e agora ganham vida nova. Tombado pelo Patrimônio Histórico, o mais antigo marco do povo israelita no Brasil começa a ser restaurado ainda este mês, transformando-se em centro cultural.
Trégua
No Recife dos holandeses, pintado por Franz Post, os judeus podiam assumir sua fé

A sinagoga Zur Israel, "Rochedo de Israel" em hebraico, evoca a saga dos primeiros judeus nas Américas. Pernambuco, como outras capitanias da Colônia, recebeu nos séculos 16 e 17 grandes levas de imigrantes europeus de origem judaica, convertidos à força ao catolicismo durante a Inquisição. Eram os chamados cristãos-novos, judeus batizados na Igreja Católica sob pena de expulsão da Península Ibérica e de suas colônias. Muitos procuraram negócios no Novo Continente e vieram para o Brasil. Em terras pernambucanas, concentraram-se em Olinda. Bons comerciantes com acesso fácil a financiamentos para a produção açucareira, quando não donos de engenhos, conquistaram a simpatia dos governantes

Os primeiros judeus chegaram a Pernambuco na comitiva do donatário Duarte Coelho, o fundador da capitania. Um deles, Diogo Fernandes, ganhou do governante o engenho Camaragibe e dentro da casa-grande mantinha uma sinagoga clandestina, onde os pretensos judeus conversos se reuniam para ler o livro sagrado, a Tora. Em Olinda, os mais corajosos também praticavam o culto no recesso do lar. Um deles percorria a cidade com um lenço vermelho preso ao tornozelo, senha para a realização do culto. Em 1593, quando os inspetores do Santo Ofício chegaram a Olinda, cerca de 100 cristãos-novos foram denunciados.

Hostilidade precoce
A perseguição aos judeus foi a regra na Colônia

O primeiro cristão-novo a pisar em chão brasileiro chegou com Cabral. Gaspar de Lemos, um polonês que viveu em Goa, veio ao Brasil como intérprete. Em 1503, outro judeu, Fernão de Noronha, arrendou as novas terras para explorar riquezas locais, sobretudo pau-brasil. Ao lado de Pernambuco, a Bahia e o Rio foram importantes pólos de fixação dos judeus na Colônia. E cenários de perseguição religiosa após o recrudescimento da Inquisição, que culminou com dezenas de execuções. No século 18, por exemplo, o teatrólogo Antônio José da Silva acabou morrendo na fogueira em Portugal.

Olinda era uma cidade virtual de cristãos-novos, mas na realidade era de judeus", afirma o arquiteto José Luiz Menezes, responsável pelo projeto de restauração da sinagoga. Existiam na época perto de 5 mil judeus em Pernambuco. "É indiscutível a contribuição deles para o desenvolvimento da Colônia e para a consolidação da economia do açúcar", destaca Menezes. Com a invasão holandesa, em 1630, os judeus passaram a desfrutar de liberdade religiosa - a Holanda era uma nação calvinista e recebia sem preconceito religioso grandes contingentes de judeus perseguidos.

Após o incêndio que destruiu parte de Olinda, em 1631, a comunidade judaica passou a construir casas no Recife. Em 1636, já celebrava cultos numa sinagoga provisória, instalada em imóvel alugado. Quatro anos depois, inaugurou a sinagoga permanente nos altos dos sobrados na antiga Rua dos Judeus. No térreo, funcionava uma loja. O primeiro rabino, Isaac Aboab da Fonseca, era interlocutor freqüente do padre Antônio Vieira. Mas a liberdade durou pouco. Expulsos os holandeses, em 1654, 16 navios apinhados de judeus zarparam para Amsterdã. Os sobrados foram doados por Fernandes Vieira, um dos líderes vitoriosos, aos padres oratorianos. Depois, a Santa Casa de Misericórdia herdou o conjunto e nele manteve um orfanato, desativado há tempos. Em julho deste ano, a União desapropriou o imóvel abandonado e o devolveu à comunidade judaica para restauração.

"O governo já reformou milhares de igrejas católicas e até centro de candomblé, faltava uma sinagoga", afirma Boris Berenstein, presidente da Federação Israelita de Pernambuco. O projeto é montar no andar superior uma réplica da antiga Zur Israel. No térreo, além da sala de exposições, será instalado um centro de documentação. A reforma deve custar R$ 700 mil, bancados pelo Banco Safra por meio da lei de incentivo à cultura. Antes das obras, uma prospecção arqueológica rastreará detalhes da arquitetura original e vestígios dos antigos fiéis. "Às vésperas dos 500 anos do Descobrimento, é relevante mostrar como a presença judaica foi importante para a formação da cultura brasileira", ressalta Berenstein.

Sérgi

                                                      

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