15 de junho de 2008

A Casa do Espanto



A Casa do Espanto
Ilustração: "Monte Alentejano" pintura de Rodrigo Pombeiro

I
Era nesta casa que habitava o medo.
Vinham depenadas almas pela chamainé abaixo,
acendendo a lareira de contos e de casos.
Dizia-se que calçavam os sapatos dos vivos e as almas
daqueles que as abrigavam no alvoroço dos sentidos.
A escuridão gritava nomes que não tinham corpo e as paredes
nomeavam cidades desconhecidas no mapa dos sonhos.
II
De manhã éramos cal viva virada ao sol na claridade aflita
das paredes emudecidas. A casa despertava como pão crescendo
no forno, estalando o tecto no seu caniçal ao rés do vento.
Havia sempre um touro no meu olhar investindo contra o mundo.
Este resumia-se ao lagar e ao açude onde erigia barragens
e paisagens desconhecidas.
III
Na imobilidade das coisas surgiam perfis estáticos de lobos.
Alimentavam a planura dos dias expiando-me, espantando
pegas e atouguias que nenhum espantalho arredava das searas
tal como nada arredava a monotonia. Eram pedras verde esmeralda
luzindo no brasido dos dias. Tão persistentes como as raposas
embalsamadas, colhidas em pleno gesto de pilhagem de galinhas.
Ainda povoavam as noites com gritos de gente que caíam a pique
no tecto da noite. E a casa ouvia.
IV
À tarde enfeitava-me com laços de melancolia para me lançar
no colo do sol, na falta do pai que trabalhava rente à noitinha.
Ficava na soleira da porta acompanhando o espanto da passarada
em fuga, levando-me, levando-me para a outra margem da vida.
Não havia crianças, só pássaros e galinhas.
V
Os homens dormiam sestas e apascentavam
dentro de si os rebanhos que lhes nasciam nos braços.
Semeavam alqueires de esperança no coração
e esvaíam-se em sementes no corpo húmido da terra.
Havia mulheres que se doavam nos palheiros num fervilhar
das ancas. Eram férteis investidas silenciando as tardes
no abafar dos gemidos. Nem todas conheciam o lume
que pode arder no silêncio que guarda as sestas. Uma mulher
guardava gansos e descobriu-se um dia que falava como eles,
no fundo da garganta o grito era sempre de espanto.
VI
A casa ainda hoje exala balidos de vento e os chocalhos
das memórias idas. Na caliça que se perde esboroam-se
traços de unhas e vidas que a humidade calcificou.
Uma solidão que saiu para fora da casa e me seguiu em busca
da cidade. Descobri que afinal o outro lado do mundo
era um aglomerado de pessoas a coberto de nenhum beiral.
VII
Sim, era nesta casa que habitava a infância.
As casas brancas do inconsciente são todas feitas de pedra
e apodrecem de pé.
Algumas têm portas que se fecham a cadeados como o esquecimento.
Às vezes são arrombadas por nortadas, outras escancaram-se mesmo sem vento.
Mas esta permanece aberta de par em par e eu lá dentro.

de
SaraComAmor

Nenhum comentário: