15 de junho de 2008

Balada de uma noite de fim de ano


Balada de uma noite de fim de ano


Negras paredes de tugúrio urbano. A cidade fechada na expectativa de uma explosão de luz, recolhe-se nas últimas horas do velho ano embranquecido. Chega a noite e veste-se de negro em sons que são já um tinir de copos e desejos. No seu burel de medo, o espanto dos amantes indefesos rondando o beco sem gente. Ela enroscada no centro íntimo do seu medo. A noite um abraço de silêncio, negros passos no asfalto seco. Negro o som duma balada estripada de um velho clarinete. Agudo o soluçar da noite, nas portadas cerradas para a vida. É a noite última dos tempos, aquela que anuncia um fim e traz um princípio sem no entanto ser mais que uma noite apenas, teimosamente brindando o passar do tempo, como se este se relativizasse e nos fizesse andar atrás nos sonhos, desembrulhando-os intocáveis, puros e serenos.
Lá dentro a noite é filme sem fita, ritual de sombras projectadas à rua do desejo. O vento ruge por entre as frestas e o mundo adquire a dimensão de um buraco negro. Apenas os gestos são claros na sua busca do negro esquecimento. Ela sonha-se no tempo, em noites míticas de calendários irreais. Corpos sedentos, recortados em luares de prata onde brilham olhos de gente. Há ausências com a duração de luas e urgentes como crateras abertas. Uma penumbra nos gestos doces, um sopro de entrega nas sombras projectadas em negras paredes. Húmidos antros, são ninhos se o amor os faz. Só a escuridão dos tempos penetra na noite dos amantes sem tempo, porque a cumplicidade é um carvão incandescente riscando a negro o vinil dos corpos. Não há rosto, nem voz, nem chamamento. O fluir apenas de um rio argênteo sob a negra noite onde se abrigaram os amantes. Lá dentro, despojos de uma guerra intemporal. E porém só o silêncio adivinhado nas paredes.
Ela quer apagar uma a uma as luzes do mundo em festa borbulhante. Quer o silêncio sentado no centro da sua noite. Uma nota pungente que se alongue, cantando só a nostalgia do tempo, de todos os anos passados e vindouros, de todos os desejos explicitados no caudal de cada ano, de tudo que não se fez, não se teve, não se viu, não se ganhou e se desembrulha no clarão dourado do novo ano...
Então ele veio, directamente do tempo em que as noites ainda tinham cor e os anos ainda passavam ornamentados de luz, cintilando na alma como faíscas luminescentes de desejo. A noite ganhou então o espaço lacunar de um instante de paixão suprema. Abraçaram-se sob um luar que só eles viam - o sortilégio último de um velho ano habituado a ver nos homens a escuridão do olhar, a única que enviuva os dias e vela as noites.
Quando chegou o novo ano, em vénias de espuma e sons, música, burburinho e risos, ela deixou-se ir no cintilante caudal da noite, arqueando o corpo uma e outra vez, no instante supremo em que a solidão abandona os corpos por um instante de silêncio e luz. O prazer escorreu pelos móveis reluzentes, num cenário de guerra e celebração, retinindo no seu peito com o som de cristal partindo-se. Cai a taça, ébria de emoção no soalho triste...

Cá fora, um gato apenas vivendo a noite só, do alto do seu beiral no telhado. Indiferente na sua negra silhueta de macho só, místico na sua negra inconsciência, enfrentado felino a exuberância luminosa do mundo. E então, depois de se restaurar o silêncio oco do beco sem gente, de novo se faz tão negra a noite, tão negra e indigente que a manhã será uma crua descoberta das imperfeições na parede.

* * *

Nenhum comentário: