9 de agosto de 2020

HISTORIA DO CINEMA BRASILEIRO

 

Introdução


A crise gerada pelo desinteresse dos exibidores por filmes brasileiros, criando um distanciamento entre a produção e a exibição em 1912, não foi uma questão superficial, nem momentânea. Os circuitos de exibição, que começavam a se formar na época, foram seduzidos por perspectivas de melhores negócios com a produção estrangeira e assim acabaram por abraçar definitivamente o produto de fora, principalmente o norte-americano. Tal fato colocou o cinema brasileiro na marginalidade por tempo indeterminado.

Essa ligação dos exibidores com o cinema estrangeiro estabeleceu uma ida sem volta, pois transformou-se num processo de desenvolvimento comercial de tal magnitude, controlado pelas empresas de distribuição norte-americana, que até hoje o nosso cinema se mantém preso a uma situação anômala de comercialização.
Daí em diante a produção de filmes brasileiros passou a ser precária. Até os anos vinte a quantidade de filmes ficcionais ficou numa média de seis filmes anuais, às vezes com apenas dois ou três ao ano, sendo que uma boa parte destes era de curta duração.

Encerrada a fase de produção regular de filmes, quem fazia cinema foi procurar trabalho na área documental (documentário ou cine-jornal), único campo cinematográfico que restara com demanda. Este tipo de atividade permitiu certa continuidade ao cinema brasileiro.
Veteranos, como Antônio Leal e os irmãos Botelho, voltaram-se para esse campo, só conseguindo realizar filmes de enredo esporadicamente, com investimentos próprios. Foi o caso de O Crime de Paula Matos, de 1913, um filme longo, de 40 minutos, que seguia o já bem sucedido filão policial.


 Apesar das dificuldades, mesmo marginalizada, essa atividade sobreviveu. Entre os anos 1915 e 1918, Leal desenvolveu intenso trabalho. Além de outras iniciativas, produziu, dirigiu e fotografou A Moreninha, de Macedo; construiu um estúdio de vidro onde produziu e fotografou Lucíola; produziu Pátria e Bandeira. No muito bem sucedido filme Lucíola lançou a atriz Aurora Fúlgida. Muito elogiada pela primeira geração de espectadores e comentaristas, foi a primeira atriz a causar impacto no nosso cinema .


Nessa época, um fenômeno que começou a dar mais vida ao cinema brasileiro foi a sua regionalização. Em alguns casos, com o próprio dono do cinema produzindo os filmes, formando assim a conjunção de interesses entre produção e exibição, seguindo o mesmo caminho que, por um tempo, dera certo no Rio e São Paulo.

 

Aurora Fúlgida:
primeira atriz a causar
impacto no cinema brasileiro

 

Tal regionalização levou os estudiosos de cinema a classificar cada movimento isolado como um ciclo. Considerando que a origem de cada ciclo regional foi circunstancial, nunca tendo tido relações entre si e ainda tendo seu perfil próprio, tal denominação não representa uma situação histórica ou um valor definido, torna-se válida apenas para efeito indicativo ou didático.



Paulo Benedetti:
Produtor e técnico de
extensa filmografia

 

Por isso mesmo, o ciclo regional é definido na historiografia cinematográfica brasileira com alguma desigualdade. Em princípio trata-se da produção de filmes de ficção em cidades fora do eixo Rio/São Paulo, no período do cinema mudo. No entanto, alguns historiadores tem usado o termo para cidades que tiveram uma produção de documentários mais intensa ou iniciativas pequenas, porém relevantes, como no caso da passagem de Paulo Benedetti em Barbacena

  

Mais do que ciclo, este é um caso curioso. Benedetti, que fazia exibições itinerantes, fixou-se na cidade mineira de Barbacena, entre os anos 1910 e 1915, onde instalou o primeiro cinema local e realizou alguns documentários. Conhecendo mecânica e engenharia, dedicava-se a inventar aparelhos para aperfeiçoar a técnica de cinema sonorizado. Um de seus inventos bem sucedido foi o Cinemetrófono. Aperfeiçoando esse aparelho, obteve um bom sincronismo do som do gramofone com as imagens da tela. Assim, acabou constituindo com investidores locais a produtora Ópera Filme, para realizar filmes cantados.



Os Óculos do Vovô,
Acervo Cinemateca Brasileira

 

Cena de O Guarani (1920), da Botelho Film. Da esquerda para a direita, Abigail Maia, Pedro Dias, Josefina Barco e João de Deus, também diretor do filme

 

Fez alguns pequenos filmes experimentais, depois encenou um trecho da ópera O Guarani e por último o mais interessante, Um Transformista Original, uma opereta em cinco partes que, além das atrações musicais, utilizava trucagens cinematográficas tipo Méliès. Tendo perdido o apoio dos capitalistas, foi para o Rio de Janeiro, onde prosseguiu suas atividades.

Outro desses pequenos e primeiros surtos regionais foi o de Pelotas, no Rio Grande do Sul, cuja figura principal foi a do português Francisco Santos. Ator, jornalista, fotógrafo e autor de cine-reportagem em seu país, quando veio ao Brasil se instalou em Pelotas. Inicialmente dedicou-se ao teatro, formando uma companhia dramática que excursionava pelo país. A seguir, abriu cinemas em Bagé e Pelotas, onde constituiu a produtora Guarany Film, na qual realizou, em 1913, Os Óculos do Vovô, uma pequena comédia, cujos fragmentos são hoje os mais antigos dos filmes ficcionais brasileiros preservados.

 

Em 1914, Santos realizou O Crime dos Banhados, que marcou época pelo estrondoso sucesso que fez em Porto Alegre e por ter sido na ocasião uma superprodução, pois tinha uma duração incomum de duas horas. O filme era inspirado num rumoroso massacre de toda uma família, motivado por questões políticas. Santos fez mais dois filmes e, não conseguindo terminar o último, Amor e Perdição, pela falta de película virgem que não chegava devido à I Guerra Mundial, resolveu encerrar suas atividades como produtor

 

Na mesma ocasião, São Paulo também dava sinais de vida cinematográfica. Vittorio Capellaro, chegando ao Brasil após uma experiência teatral e cinematográfica na Itália, estabeleceu-se em São Paulo. Associando-se com Antônio Campos, produziu em 1915 uma adaptação do romance de Taunay, Inocência, ficando para Capellaro a direção e a interpretação e para Campos a fotografia. O imigrante prosseguiu sua carreira nesse período realizando documentários e filmes de ficção, principalmente baseados em temas brasileiros: O Guarani (1916), O Cruzeiro do Sul (1917), Iracema (1919), O Garimpeiro (1920).

Muitos filmes do período mudo foram baseados na literatura brasileira. Taunay, Bilac, Macedo, Bernardo Guimarães, Aluísio Azevedo e, principalmente, a obra de José de Alencar, que serviu de ponto de partida para inúmeros filmes. O fato singular é ser um italiano, Vittorio Capellaro, o cineasta que mais se interessou e investiu nas adaptações da nossa literatura.

 

É extraordinária a participação dos imigrantes europeus na história do cinema mudo brasileiro. Geralmente com pouca qualificação profissional, mas com habilidade no manuseio de aparelhos mecânicos, tinham facilidade em entrar para o ramo fotográfico e depois no cinematográfico. Havia também aqueles que traziam consigo experiências das artes cênicas ou mesmo do próprio cinema.
O pioneiro pesquisador Peri Ribas aponta doze produtoras estabelecidas no Rio e São Paulo durante os anos da Guerra, 14 a 18. A maioria criadas por imigrantes, principalmente italianos, mas também algumas por brasileiros. Uma destas é a Guanabara, de Luís de Barros, cineasta de interessante biografia, que realizou a mais longa carreira do cinema brasileiro.

 

Com o passar do tempo, tornou-se um especialista em filmes rápidos, baratos e populares, dos mais diversos gêneros, sobretudo da comédia musical. Luís de Barros realizou, entre 1915 e 1930, cerca de vinte filmes, sendo os primeiros, Perdida, Vivo ou Morto, Zero Treze, Alma Sertaneja, Ubirajara, Coração de Gaúcho, Jóia Maldita. "Para o leitor de hoje, a maior parte dos filmes velhos de Luís de Barros não passa de simples título com alguns nomes de intérpretes e uma ou outra foto. Mas sempre que se aprofundam as investigações a respeito dos trabalhos que realizou aproximadamente até 1920, avulta a importância de sua contribuição ao cinema brasileiro" já observavam os historiadores Paulo Emílio e Adhemar Gonzaga em meados dos anos 60.

 Perdida (1916), filme de Luiz de Barros

 

 A entrada do Brasil na Guerra de 14, embora simbólica, estimulou a realização de uma série de filmes patrióticos, geralmente bastante ingênuos, algumas vezes contando com a cooperação das Forças Armadas. Enquanto no Rio fazia-se Pátria e Bandeira, que focalizava a espionagem alemã em nosso território, em São Paulo era a vez de Pátria Brasileira, que, além de contar com o exército, era reforçado com a participação de Olavo Bilac. Entre eles surge uma curiosidade: um filme bem brasileiro que foi lançado com o título em francês, Le Film du Diable. Tinha a ação situada no Rio e na Bélgica invadida pelos alemães, e ainda acrescentava cenas de nudez. Ainda nessa linha surgiram outros, como O Castigo do Kaiser e o primeiro desenho animado brasileiro, O Kaiser. Para completar o quadro não faltaram os filmes cívicos, como Tiradentes e O Grito do Ipiranga. 


Essa tendência não eliminou outros gêneros, como o policial, que vez ou outra aparecia novamente. O produtor Irineu Marinho fez em 1919, Os Mistérios do Rio de Janeiro (O Tesouro Viking - 1a parte). Em 1920, Arturo Carrari e Gilberto Rossi realizaram O Crime de Cravinhos, reconstituindo o chamado "crime da rainha do café". Surgiram também O Furto dos 500 Milhões, A Quadrilha do Esqueleto e, mais tarde, O Mistério do Dominó Negro.

 


Exemplo Regenerador (1919)
filme de estréia do
diretor José Medina

 

Além de cineasta, José Medina também era um homem de laboratório

 

O filme foi exibido durante uma semana com sucesso. Em seguida organizaram a Rossi Filme e, com o resultado financeiro de Exemplo, realizaram Perversidade, seu primeiro longa-metragem. Rossi, no entanto, não abandonara o documentário, ao contrário, desenvolvera essa atividade, inclusive criando um cine-jornal quinzenal, Rossi Atualidades, e além disso fotografava filmes para outros diretores. Depois enfrentaram um projeto de maior envergadura, com argumento de Canuto Mendes de Almeida, Do Rio a São Paulo para Casar e mais tarde, também com a colaboração de Canuto, Gigi, todos com a direção de Medina. Esses filmes foram bem sucedidos e infelizmente destruídos num incêndio que a Rossi Filme sofreu, sobrando apenas Exemplo Regenerador. No final dos anos 20, Medina realizou seu último filme, Fragmentos da Vida, uma bela obra de feição naturalista, com um tratamento simples e harmonioso. Foi saudado na época por Guilherme de Almeida, que escreveu: "Como diretor, José Medina é, indiscutivelmente por enquanto, o nosso único diretor de verdade. Pela primeira vez senti... essa ligação suave, espécie de traço-de-união que das partes várias de um filme faz um todo" . Exibido no circuito Serrador, o filme foi muito bem sucedido, tendo rendido 100 contos quando custara apenas 28. Apesar disso, Medina abandonou aí o cinema, para abraçar o rádio.

 

Nos anos vinte, cresce a produção e a qualidade dos filmes é aprimorada. Surgem as idéias e o cinema brasileiro começa a ser discutido. Algumas revistas dão cobertura, especialmente Cinearte. Também começam a surgir com maior relevo as estrelas e os astros. O vigor que o cinema brasileiro começa a demonstrar estimula a produção de filmes fora do eixo Rio/São Paulo.

 

 

Filmes "ousados" também surgiram na década de vinte, tais como Depravação, de Luís de Barros, com cenas apelativas e que teve a sua estréia em São Paulo com sessão exclusiva para homens, fazendo em seguida grande sucesso de bilheteria. Vício e Beleza,dirigido por Antônio Tibiriçá, com argumento de Menotti del Picchia, tratava das drogas e ilusões com as óbvias conseqüências trágicas. Morfina seguia a mesma linha. A crítica mais exigente da época não aprovou tais filmes: a revista Fan, em seu primeiro número, sentenciava "Morfina é morfina para o cinema nacional".

Filmes de cunho religioso também foram produzidos desde cedo, entre os quais Os Milagres de Nossa Senhora da Aparecida, em 1916, e no fim do cinema silencioso, As Rosas de Nossa Senhora, de 1930.

 

Vício e Beleza- um filme "ousado" de Antônio Tibiriçá

 

Apesar da pequena filmografia, é fundamental uma referência a Alberto Traversa, que iniciou sua carreira na Itália e prosseguiu na Argentina. Vindo ao Brasil, em 1924 realizou O Segredo do Corcunda e, em 1926, Risos e Lágrimas. O Segredo, um dos filmes preservados até hoje, revela um apurado conhecimento da técnica cinematográfica e um bom diretor de atores. Traversa conseguiu naquela ocasião uma fluência narrativa rara entre nós. O filme não esconde certas influências de grandes mestres do cinema norte-americano, como Griffith e Ince.

Na mesma ocasião, Vittorio Cappelaro realizou sua segunda versão de O Guarani, confirmando seu interesse pela nossa literatura e contando com a parceria da Paramount Pictures, fato inédito até então no cinema brasileiro.
Rodolpho Rex Lustig e Adalberto Kemeny, cinegrafistas húngaros que vieram ao Brasil na década 20 após uma estada na Alemanha, fixaram-se em São Paulo e acabaram comprando de Armando Pamplona a empresa e laboratório onde trabalhavam, transformando-a na Rex Filme, que ganhou fama com o tempo.

 

 



São Paulo, Sinfonia de uma Metrópole

 

Inspirados no filme alemão de Walter Ruthmann, Berlim Sinfonia da Metrópole, resolveram realizar, em 1929, São Paulo, Sinfonia de uma Metrópole, um filme singular. Retrata com muita sensibilidade um dia da cidade de São Paulo, de uma forma livre, utilizando efeitos visuais, trucagens e ritmos, para chegarem a uma obra diferente de tudo o que se fazia por aqui, lembrando alguns momentos da avant-garde francesa. O filme permanece como um dos melhores documentos da cidade de São Paulo antiga. Recentemente, o filme recebeu um acompanhamento musical especial composto por Lívio Tratemberg.
A regionalização do cinema ampliou-se e tornou-se mais consistente na década de 20.

 

 

No Estado de São Paulo surgiu um importante ciclo de filmes produzidos em Campinas, cidade que rivalizava com São Paulo. O primeiro foi João da Mata, de 1923, produzido e dirigido pelo dramaturgo e jornalista Amilar Alves, que havia fundado com outros a Fênix Filme para tal empreendimento. Este filme, apesar da precária distribuição mais direcionada à própria região, teve grande êxito, conseguindo o retorno do capital investido. Houve também exibições em São Paulo e Rio, com boa receptividade da imprensa. A soma desses fatos causou animação para o prosseguimento da produção local que acabou fazendo mais quatro películas "posadas". Entretanto, o êxito de João da Mata não se repetiria.


Filmagem de Sofrer para gozar (1923), de Eugênio Kerrigan

 O ciclo campineiro seguia duas das linhas do cinema brasileiro, uma voltada para a tendência nacionalista e a outra aderindo à vocação americanizada. Às vezes, as duas articuladas, como no caso de João da Mata, que mostrava um drama rural tipicamente brasileiro, com influência do filme western.

Alma Gentil é feito por Dardes Neto e a dupla Felipe Ricci e Tomás de Túlio produzem Sofrer para Gozar, um melodrama rural em parte encenado num saloon munido de roleta com um croupier chinês. Este filme foi proposto e dirigido pelo cineasta ambulante E.C.Kerrigan, que já tinha seu roteiro pronto.

O genovês E.C. Kerrigan, cujo nome verdadeiro seria Eugênio Centenaro, foi um dos mais pitorescos cineastas que tivemos. Chegando a São Paulo, fazia-se passar pelo conde Eugênio Maria Piglione Rossiglione de Farnet. Constatando o sucesso de João da Mata, transferiu-se para Campinas, onde apresentou-se como o norte-americano E.C. Kerrigan, ex-diretor de filmes produzidos pela Vitagraph e Paramount. Ali fundou a Escola Cinematográfica Campineira, na qual ensinava aos alunos como representar diante da câmera. Foi quando convenceu Tomás de Túlio a participar de sua empreitada, fundando com ele e alguns alunos a Apa Filme. Antes de terminar Sofrer para Gozar, confrontado com um americano verdadeiro, foi desmascarado, sendo obrigado a sair da cidade em busca de novas aventuras cinematográficas. Mais tarde, quando deixou de trabalhar em cinema, foi acusado de tráfico de escravas brancas e de passar-se por hindu capacitado para ler bolas de cristal.

 

Apesar das confusões com Kerrigan, Sofrer para Gozar teve um relativo sucesso, levando Ricci e Túlio a aventurarem-se numa complexa adaptação do romance de Júlio Ribeiro, A Carne, para posteriormente encerrarem esse ciclo campineiro, em 1927, com Mocidade Louca.

 

A carne, do Ciclo de Campinas

 

Em Minas, houve um evento na cidade de Guaranésia, onde os irmãos Carlos e Américo Masotti já produziam documentários nos anos vinte. Chegando na cidade, o ambulante E.C.Kerrigan, que parava onde conseguisse fazer cinema, convenceu os Masotti a produzirem um filme de enredo. A pequena cidade, que passava por um surto industrial, recebeu a notícia com emoção e, diante da expectativa de que Guaranésia poderia se tornar um centro de produção cinematográfica, houve uma grande mobilização. Fizeram Corações em Suplício (1925), dirigido pelo próprio Kerrigan e produzido e fotografado pelos Masotti. Diante do fracasso financeiro, sobrou apenas o sonho para Guaranésia.

Ainda neste Estado, encontramos o cinema em Pouso Alegre, onde em 1921 haviam sido ensaiadas fitas de enredo. Aqui, a figura de destaque foi Almeida Fleming, que tomou gosto pelo filme gerenciando o cinema Iris, um dos cinemas de sua família. Em 1918 comprou um laboratório e fez o documentário Pouso Alegre. Após algumas tentativas, fundou a produtora América Filme e produziu, além de documentários, Paulo e Virgínia e O Vale dos Martírios, este último introduzindo na história questões psicológicas complexas, envolvendo um amor entre irmãos. Mais tarde Fleming mudou-se para o Rio, onde instalou seu laboratório, e em seguida acabou indo a São Paulo, onde continuou trabalhando em cinema.

 


 

 

Em Belo Horizonte, o pioneiro Igino Bonfiogli, um hábil artesão, iniciou sua carreira em 1920 fazendo documentários e em 1923 co-produziu e fotografou Canção da Primavera (A Primavera da Vida), dividindo a direção do filme com o francês Cyprien Ségur. Com o pouco retorno financeiro das exibições do filme, Bonfiogli concentrou-se no documentário, principalmente em filmes que destacavam políticos. Financiado por um destes, conseguiu realizar o longa Minas Antiga. Com a Revolução de 30, as encomendas de Bonfiogli diminuíram muito, pois seus clientes eram os políticos da República Velha.

 No Rio Grande do Sul, após a experiência de Francisco Santos, voltou a haver uma certa movimentação cinematográfica na década de vinte. O fotógrafo José Picoral realiza um importante documentário, Torres, que retrata, talvez pela primeira vez, o trabalho do homem.


No campo ficcional, o destaque vai para Eduardo Abelim, que, após realizar um filme de enredo curto em 1926, funda a sua Gaúcha Filme para fazer dois filmes de longa-metragem interessantes, Castigo do Orgulho e O Pecado da Vaidade. O lado curioso deste cineasta é que percorria o Estado levando seus filmes para exibir e quando chegava às cidades, afim de atrair o público, realizava shows, fazendo arriscadas proezas automobilísticas. Em 1985, Lauro Escorel retratou essa figura singular em seu filme Sonho Sem Fim.
Ainda em Porto Alegre, nesses mesmos anos vinte, não poderia faltar o aventureiro Kerrigan, que acabou dirigindo dois filmes de enredo, Amor que Redime e Revelação.

 O mais produtivo dos ciclos foi o de Recife, com um total de treze filmes e vários documentários, realizados entre 1922 e 1931. Edson Chagas foi a figura chave desse movimento. Voltando do Rio de Janeiro, chegou entusiasmado com a idéia de fazer cinema. Juntando-se a Gentil Roiz, que possuía uma câmera, fundaram a Aurora Filmes. Em torno da produtora formou-se um grupo de jovens de diversas atividades, todos fãs de cinema, com pretensões de passarem a ser técnicos ou atores. Superando as dificuldades e a inexperiência, e com os tostões do próprio grupo e dos próprios bolsos, realizaram o primeiro filme, Retribuição, escrito e dirigido por Roiz e fotografado por Chagas. Era um filme de aventura, calcado nos chavões americanos tão admirados por Roiz. O filme que levou mais de um ano para ser concluído, sendo realizado apenas nos fins de semana, teve sua estréia em 1925, numa sala de segunda categoria, o cine Royal. Este cinema teve grande importância durante todo o ciclo de Recife, graças ao co-proprietário, o português Joaquim Matos, que sempre garantiu as exibições dos filmes locais acompanhadas de grandes festas com banda de música, rua iluminada, fachada coberta de flores e bandeiras e até folhas de canela colocadas no chão da sala

 Cinema Royal em Recife

 Publicidade da Aurora Film,

uma das empresas de Recife

  

O sucesso do filme, que ficou oito dias em cartaz, permitiu à Aurora Filmes comprar o patrimônio da Pernambuco Filmes, produtora de documentários que falira. O segundo filme da Aurora foi um curta-metragem de ficção, Um Ato de Humanidade, que fazia propaganda de um remédio contra a sífilis.
Ainda em 1925, são produzidos Jurando Vingar, com roteiro de Roriz e direção de Ary Severo, e Aitaré da Praia, agora com funções invertidas, Severo escrevendo e Roriz dirigindo. Contraditoriamente, Aitaré tem grande êxito e a Aurora Filmes vai à falência. No entanto volta às atividades um ano depois, produzindo Herói do Século XX e A filha do Advogado, para depois novamente falir.

 

Surgem outras produtoras em Recife: Vera Cruz, Planeta, Veneza, Olinda, Goiana, Liberdade, Spia e Iate, todas realizando um ou alguns filmes, entre os quais destacam-se Sangue de Irmão, Reveses, Dança Amor e Ventura, História de uma Alma, esta narrando a vida de Santa Tereza de Lisieux.
Alguns atores, como Almeri Esteves, Rildo Fernandes e Jota Soares, se destacaram em vários filmes. Alguns dos filmes, a exemplo de Retribuição e Jurando Vingar, eram aventuras com alguns personagens que lembravam os dos westerns americanos. Outros atinham-se ao tema regional, como Aitaré da Praia, com suas jangadas e jangadeiros, ou com os coronéis da cultura de cana, que aparecem em Revezes e Sangue de Irmão.

 Herói do século XX (1926). Pedro Neves e Jota Soares

 

As condições técnicas, artísticas e econômicas dessas produções pernambucanas eram muito precárias. Só o fervor juvenil e o orgulho regional de fazer cinema explicam a continuidade do ciclo, que acabara dando alguns bons resultados. Com raras exceções, os filmes só eram exibidos na região e o custo de algumas produções eram cobertos com as estréias festivas no Royal. O aparecimento do cinema sonoro fez com que a produção pernambucana se encerrasse.

Esses movimentos, surtos ou ciclos regionais, eram frágeis e geralmente não sustentáveis, principalmente por terem as exibições de seus produtos restritas às suas próprias regiões. Com o advento do cinema falado a feitura dos filmes ficara tecnicamente muito mais complexa e os custos das produções aumentaram consideravelmente, tornando os ciclos regionais inviáveis. Dessa forma, a produção voltou a concentrar-se no eixo Rio/São Paulo.
Em três localidades surgiram importantes produções no campo do documentário. Foram estas Curitiba, João Pessoa e Manaus.

Em Curitiba, na década 20, a produção cinematográfica tem à frente Arthur Rogge e João Batista Groff. O documentário mais importante é Pátria Redimida, de Groff, que mostra o trajeto das tropas revolucionárias de 1930, de Curitiba ao Rio de Janeiro.
Em João Pessoa, o pioneiro local é Walfredo Rodrigues. Aprendeu a filmar no Rio de Janeiro e voltou a Paraíba, onde fez uma série de documentários curtos, além de dois longos: O Carnaval Paraibano e Pernambucano, e Sob o Céu Nordestino, que focaliza aspectos geográficos, econômicos e humanos do Estado.

Em Manaus, a atividade cinematográfica pioneira concentra-se em Silvino Santos, uma personalidade interessante e portador de rica biografia. Nascido em Portugal em 1886, chega ao Brasil aos treze anos. Filho de abastados agricultores, dedicou-se à fotografia e à pintura. Em 1910 instalou-se em Manaus, encantou-se com a floresta, os rios e as lendas que lhe despertaram o espírito aventureiro. Convidado pelo cônsul peruano, realizou um estudo fotográfico sobre os índios, na fronteira entre o Peru e a Colômbia. Para transformar este estudo em imagens em movimento, foi à França afim de estudar cinema e pesquisar formas de preservar os negativos no clima tropical. Voltou à selva amazônica, na fronteira que estivera fazendo as fotos, e realizou o tal documentário, passando pelo sacrifício e dificuldades que um empreendimento desse exige. Lamentavelmente acabou perdendo os negativos do filme, com o naufrágio do navio que os levava à Europa.

Voltando a Manaus, continuou fazendo fotografias e documentários registrando fatos políticos, esportivos e sociais, além de passar três anos realizando o filme dos seus sonhos, Amazonas, o Maior rio do Mundo. Este, como o primeiro, também teve fim trágico, quando os negativos foram roubados a caminho de Londres para copiagem.
Filmou No País das Amazonas para a exposição do Centenário da Independência no Rio de Janeiro, em 1922. Este longa-metragem foi um filme revelação que conquistou as platéias do Rio e São Paulo e de quase todas as capitais brasileiras. O documentário ganhou a medalha de ouro na exposição e teve versões em línguas estrangeiras para ser exibido na Europa e Estados Unidos. Já no Rio, filmou outro longa metragem, Terra Encantada, sobre a cidade e a exposição. Fez mais um longa em Roraima e, passando dois anos em Portugal no fim dos anos vinte, realizou uma série grande de documentários naquele país.

 

Humberto Mauro foi o primeiro vulto do cinema brasileiro. Venerado por boa parte de nossos críticos, por historiadores e por muitos cineastas, particularmente por aqueles do Cinema Novo, é figura central do nosso cinema mudo, tendo também participação marcante no período do falado.
Nascido em Volta Grande (MG) em 1897, aos treze anos mudou-se para Cataguazes, onde participou de um grupo teatral. Na década vinte, tendo uma natural atração pela técnica, apaixonou-se pelo radioamadorismo. Interessou-se pelo cinema, atraído por grandes mestres do cinema americano, como Henry King, Vidor e Lubitsch. Com uma câmera de 9,5 mm. partiu para a prática filmando Valadião, o Cratera, uma experiência amadora que misturava aventura e comédia.

 Humberto Mauro era um "rapaz

cheio de talentos, de uma beleza
rude", escreve Paulo Emílio
Sales Gomes

 Brasa Dormida, de Humberto Mauro

  Com o italiano Pedro Comello e apoiado em comerciantes locais, fundaram a Phebo Filme para realizar seu primeiro longa-metragem, Na Primavera da Vida. O segundo filme de Mauro, Tesouro Perdido, foi recebido com elogios pela critica e recebeu o Medalhão de Bronze da revista Cinearte, como melhor filme de 1927. Seu próximo filme é Brasa Dormida,uma trama romântica que mistura acontecimentos urbanos com rurais. Nesta altura, Humberto Mauro já era respeitado como grande realizador pela crítica e intelectuais cariocas. Sangue Mineiro é o último filme que realiza em Cataguazes. Neste, teve a participação da atriz Carmen Santos, inclusive como co-produtora. Carmen, já muito conhecida na época mais pelas fotos publicadas do que por filmes feitos anteriormente que nunca chegaram a ser exibidos, teve mais tarde significativa participação no desenrolar do nosso cinema.

 A convite de Adhemar Gonzaga, Mauro mudou-se para o Rio de Janeiro, onde dirigiu a primeira produção dos estúdios da Cinédia, Lábios Sem Beijos, substituindo o próprio Gonzaga, que iniciara a direção dessa comédia carioca.

Seu primeiro filme sonoro foi Ganga Bruta, que manteve as características narrativas do cinema mudo, tendo nos discos que o seguia um acompanhamento musical e apenas algumas falas. Esta foi a sua obra prima. Suas imagens tem o dom de refletir as situações psicológicas dos personagens e os seus sentimentos. Essas mesmas imagens são trabalhadas em função da integração com as situações dramáticas e, para tanto, Mauro ainda utiliza-se com freqüência de eficientes metáforas. Além das qualidades gerais, Ganga Bruta tem uma seqüência inicial antológica, digna de qualquer mestre do cinema universal.

 Eva Nil e Carlos Modesto em Barro Humano (1928)

 

Apesar de todas essas virtudes, que hoje são indiscutíveis aos olhos da crítica, na ocasião o filme foi pouco compreendido e recusado pelo público. Apenas vinte anos depois, em 1952, o filme foi consagrado, na 1a Retrospectiva do Cinema Brasileiro realizado pela Cinemateca Brasileira, então denominada Filmoteca do Museu de Arte Moderna.
Os filmes de Mauro realizados em Cataguazes não são os únicos produzidos na cidade. Além dos filmes que foram feitos, esse ciclo propiciou o aparecimento de duas figuras relevantes. Uma é Edgar Brasil, um dos maiores fotógrafos brasileiros, que fotografou dois dos filmes de Mauro. Outra é a atriz Eva Nill, filha de Pedro Comello, mito estelar que se forjou na época e musa do final do cinema mudo, revelada por Humberto Mauro em três de seus filmes.

 

Paolo Benedetti, que de Barbacena foi parar no Rio, continuou se dedicando a pesquisas e desde 1917 instalara um laboratório cinematográfico nessa cidade. Em 1924, justamente quando a produção carioca sofreu um declínio quantitativo, inclusive com a saída de Luiz de Barros, que foi para São Paulo, fundou a Benedetti Filme. Logo no primeiro ano realizou dois filmes que impressionaram a crítica: A Gigoleti e Dever de Amar.

 Associando-se a um produtor italiano que se fixara na Argentina, realizou A Esposa do Solteiro, a primeira co-produção internacional do cinema brasilerio. Ligando-se a um grupo de pequenos exibidores de cinemas marginalizados da cidade, instituiu uma cooperativa de produção, o Circuito Nacional de Exibição. Não obtendo êxito neste empreendimento, desanimado, Benedetti resolveu abandonar o cinema e voltar ao seu laboratório e invenções. No entanto, Adhemar Gonzaga, Pedro Lima e redatores da revista Cinearte conseguiram convencê-lo a voltar atrás, garantindo-lhe realizar o filme da cooperativa, desde que ele assumisse a responsabilidade técnica. O resultado foi Barro Humano, realizado entre 27 e 29, que se tornou um dos maiores clássicos do cinema mudo brasileiro, com enorme sucesso de crítica e público. Foi tamanho o impacto, que Adhemar Gonzaga resolveu fundar a Cinédia em 1930.

  A esposa do solteiro, de Paolo Benedetti

 

Após outras tentativas que não foram bem sucedidas, Benedetti acabou voltando aos seus inventos. Chegou a realizar alguns curtas musicais com cantores populares, para testar os sistemas de sonorização que vinha aperfeiçoando.
Recentemente foi encontrado um destes filmes com o Bando dos Tangarás, no qual se pode ver e ouvir. tocando e cantando, Almirante, Braguinha, Noel Rosa, uma saborosa raridade de nossa história.
Adhemar Gonzaga é um dos grandes nomes do cinema brasileiro. Jornalista, após colaborar em várias revistas escrevendo sobre cinema, fundou a revista Cinearte, exercendo um tipo de crítica muito simpática ao cinema brasileiro e divulgando o quanto fosse possível a nossa cinematografia, seus técnicos, seus atores. Cinearte foi uma lanterna que sinalizava o que se fazia, para iluminar e integrar os cineastas brasileiros do Norte ao Sul.

Fundando a Cinédia, sob o impacto de Barro Humano, entrou na produção encontrando várias dificuldades para realizar seu primeiro filme. Após enveredar por vários caminhos, foi superando os obstáculos e chegou ao primeiro filme da Cinédia pronto: Lábios Sem Beijos, dirigido por Humberto Mauro. Mulher, por Otávio Gabus Mendes e Ganga Bruta, novamente de Mauro, foram os próximos filmes dessa companhia. A história da Cinédia apenas começava, para se desenvolver posteriormente com o cinema sonoro.

 

 

Limite é o mito do nosso cinema. Um filme que se isola na filmografia brasileira. Não é à-toa que a Cinédia no seu início de 1930 não se interessou pelo projeto. No entanto, Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga devem ter estimulado o jovem Mário Peixoto a fazer o filme, indicando atores da Cinédia e Edgar Brasil para fotografá-lo.
Peixoto, ligado a intelectuais que se interessavam pelo cinema arte, principalmente aqueles que fundaram o Chaplin Clube e a revista Fan, conhecia as tendências mais avançadas do experimentalismo cinematográfico. Realizou uma obra cujo sentido plástico e rítmico predominam. É um filme modernista e reflete o espírito que reinou na avant-garde francesa de dez anos antes. O ritmo e a plasticidade suplantam a própria história do filme, que se resume na situação de três pessoas perdidas no oceano. São três personagens, um homem e duas mulheres, que vagam num pequeno barco e cada uma delas conta uma passagem de sua vida. O infinito do mar representa seus sentimentos, seus destinos

 Limite, de Mário Peixoto

 Plínio Sussekind Rocha, pertinaz admirador de Limite, em entrevista à revista Láge du Cinéma, manifestou-se sobre o filme dizendo: "É preciso ressaltar que é compromisso sério contar com palavras alguma coisa que foi concebida e realizada com imagens... O tema geral é o do infinito do homem, sempre insatisfeito e cujo impulso é impedido pelas limitações de toda espécie, desde as mais ínfimas até aquelas que emanam de uma contemplação quase metafísica do universo. Exprimir porém com palavras o tema central de Limite é correr o risco de passar por uma elocubração estéril e barata, ao passo que nas imagens é vivo ou terrivelmente concreto ou largamente transposto para um plano poético".


Para o contentamento dos velhos intelectuais da revista Fan, Morfina pode ter sido a morfina do cinema brasileiro; Limite sem ter sido o último dos filmes silenciosos foi um glorioso ponto final do cinema mudo; Os Estranguladores, um dos nossos primeiros filmes "posados" pode simbolizar os distribuidores americanos que sempre tentaram estrangular o cinema brasileiro. No entanto, a trajetória do nosso cinema mudo com seus heróis, sua diversificação, seus registros documentais, com os imigrantes, com Humberto Mauro e Ganga Bruta, mostrou-nos os caminhos possíveis e a vitalidade cultural do cinema brasileiro que, aos trancos e barrancos, não terminaria aí.


Textos de Rudá de Andrade e Guilherme Lisboa
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