Introdução
A crise gerada pelo desinteresse dos exibidores por filmes brasileiros, criando
um distanciamento entre a produção e a exibição em 1912, não foi uma questão
superficial, nem momentânea. Os circuitos de exibição, que começavam a se
formar na época, foram seduzidos por perspectivas de melhores negócios com a
produção estrangeira e assim acabaram por abraçar definitivamente o produto de
fora, principalmente o norte-americano. Tal fato colocou o cinema brasileiro na
marginalidade por tempo indeterminado.
Essa ligação dos exibidores com o cinema estrangeiro estabeleceu uma ida sem
volta, pois transformou-se num processo de desenvolvimento comercial de tal
magnitude, controlado pelas empresas de distribuição norte-americana, que até
hoje o nosso cinema se mantém preso a uma situação anômala de comercialização.
Daí em diante a produção de filmes brasileiros passou a ser precária. Até os
anos vinte a quantidade de filmes ficcionais ficou numa média de seis filmes anuais,
às vezes com apenas dois ou três ao ano, sendo que uma boa parte destes era de
curta duração.
Encerrada a fase de produção regular de filmes, quem fazia cinema foi procurar
trabalho na área documental (documentário ou cine-jornal), único campo cinematográfico
que restara com demanda. Este tipo de atividade permitiu certa continuidade ao
cinema brasileiro.
Veteranos, como Antônio Leal e os irmãos Botelho, voltaram-se para esse campo,
só conseguindo realizar filmes de enredo esporadicamente, com investimentos
próprios. Foi o caso de O Crime de Paula Matos, de 1913, um filme longo, de 40
minutos, que seguia o já bem sucedido filão policial.
Nessa época, um fenômeno que começou a dar mais vida ao cinema brasileiro foi a
sua regionalização. Em alguns casos, com o próprio dono do cinema produzindo os
filmes, formando assim a conjunção de interesses entre produção e exibição,
seguindo o mesmo caminho que, por um tempo, dera certo no Rio e São Paulo.
Aurora Fúlgida:
primeira atriz a causar
impacto no cinema brasileiro
Tal
regionalização levou os estudiosos de cinema a classificar cada movimento
isolado como um ciclo. Considerando que a origem de cada ciclo regional foi
circunstancial, nunca tendo tido relações entre si e ainda tendo seu perfil
próprio, tal denominação não representa uma situação histórica ou um valor
definido, torna-se válida apenas para efeito indicativo ou didático.
Paulo Benedetti:
Produtor e técnico de
extensa filmografia
Por isso
mesmo, o ciclo regional é definido na historiografia cinematográfica brasileira
com alguma desigualdade. Em princípio trata-se da produção de filmes de ficção
em cidades fora do eixo Rio/São Paulo, no período do cinema mudo. No entanto,
alguns historiadores tem usado o termo para cidades que tiveram uma produção de
documentários mais intensa ou iniciativas pequenas, porém relevantes, como no
caso da passagem de Paulo Benedetti em Barbacena
Mais do que
ciclo, este é um caso curioso. Benedetti, que fazia exibições itinerantes,
fixou-se na cidade mineira de Barbacena, entre os anos 1910 e 1915, onde
instalou o primeiro cinema local e realizou alguns documentários. Conhecendo
mecânica e engenharia, dedicava-se a inventar aparelhos para aperfeiçoar a técnica
de cinema sonorizado. Um de seus inventos bem sucedido foi o Cinemetrófono.
Aperfeiçoando esse aparelho, obteve um bom sincronismo do som do gramofone com
as imagens da tela. Assim, acabou constituindo com investidores locais a
produtora Ópera Filme, para realizar filmes cantados.
Os Óculos do Vovô,
Acervo Cinemateca Brasileira
Cena de O Guarani (1920), da
Botelho Film. Da esquerda para a direita, Abigail Maia, Pedro Dias, Josefina
Barco e João de Deus, também diretor do filme
Fez alguns
pequenos filmes experimentais, depois encenou um trecho da ópera O Guarani e
por último o mais interessante, Um Transformista Original, uma opereta em cinco
partes que, além das atrações musicais, utilizava trucagens cinematográficas
tipo Méliès. Tendo perdido o apoio dos capitalistas, foi para o Rio de Janeiro,
onde prosseguiu suas atividades.
Outro desses pequenos e primeiros surtos regionais foi o de Pelotas, no Rio
Grande do Sul, cuja figura principal foi a do português Francisco Santos. Ator,
jornalista, fotógrafo e autor de cine-reportagem em seu país, quando veio ao
Brasil se instalou
Em 1914,
Santos realizou O Crime dos Banhados, que marcou época pelo estrondoso sucesso
que fez
Na mesma
ocasião, São Paulo também dava sinais de vida cinematográfica. Vittorio
Capellaro, chegando ao Brasil após uma experiência teatral e cinematográfica na
Itália, estabeleceu-se
Muitos filmes do período mudo foram baseados na literatura brasileira. Taunay,
Bilac, Macedo, Bernardo Guimarães, Aluísio Azevedo e, principalmente, a obra de
José de Alencar, que serviu de ponto de partida para inúmeros filmes. O fato
singular é ser um italiano, Vittorio Capellaro, o cineasta que mais se
interessou e investiu nas adaptações da nossa literatura.
É
extraordinária a participação dos imigrantes europeus na história do cinema
mudo brasileiro. Geralmente com pouca qualificação profissional, mas com
habilidade no manuseio de aparelhos mecânicos, tinham facilidade em entrar para
o ramo fotográfico e depois no cinematográfico. Havia também aqueles que
traziam consigo experiências das artes cênicas ou mesmo do próprio cinema.
O pioneiro pesquisador Peri Ribas aponta doze produtoras estabelecidas no Rio e
São Paulo durante os anos da Guerra,
Com o
passar do tempo, tornou-se um especialista em filmes rápidos, baratos e
populares, dos mais diversos gêneros, sobretudo da comédia musical. Luís de
Barros realizou, entre 1915 e 1930, cerca de vinte filmes, sendo os primeiros,
Perdida, Vivo ou Morto, Zero Treze, Alma Sertaneja, Ubirajara, Coração de
Gaúcho, Jóia Maldita. "Para o leitor de hoje, a maior parte dos filmes
velhos de Luís de Barros não passa de simples título com alguns nomes de
intérpretes e uma ou outra foto. Mas sempre que se aprofundam as investigações
a respeito dos trabalhos que realizou aproximadamente até 1920, avulta a
importância de sua contribuição ao cinema brasileiro" já observavam os
historiadores Paulo Emílio e Adhemar Gonzaga em meados dos anos 60.
Essa tendência não eliminou outros gêneros, como o policial, que vez ou outra
aparecia novamente. O produtor Irineu Marinho fez em 1919, Os Mistérios do Rio
de Janeiro (O Tesouro Viking - 1a parte). Em 1920, Arturo Carrari e Gilberto
Rossi realizaram O Crime de Cravinhos, reconstituindo o chamado "crime da
rainha do café". Surgiram também O Furto dos 500 Milhões, A Quadrilha do
Esqueleto e, mais tarde, O Mistério do Dominó Negro.
Exemplo
Regenerador (1919)
filme de estréia do
diretor José Medina
Além de cineasta, José
Medina também era um homem de laboratório
O filme foi
exibido durante uma semana com sucesso. Em seguida organizaram a Rossi Filme e,
com o resultado financeiro de Exemplo, realizaram Perversidade, seu primeiro
longa-metragem. Rossi, no entanto, não abandonara o documentário, ao contrário,
desenvolvera essa atividade, inclusive criando um cine-jornal quinzenal, Rossi
Atualidades, e além disso fotografava filmes para outros diretores. Depois
enfrentaram um projeto de maior envergadura, com argumento de Canuto Mendes de
Almeida, Do Rio a São Paulo para Casar e mais tarde, também com a colaboração
de Canuto, Gigi, todos com a direção de Medina. Esses filmes foram bem
sucedidos e infelizmente destruídos num incêndio que a Rossi Filme sofreu,
sobrando apenas Exemplo Regenerador. No final dos anos 20, Medina realizou seu
último filme, Fragmentos da Vida, uma bela obra de feição naturalista, com um
tratamento simples e harmonioso. Foi saudado na época por Guilherme de Almeida,
que escreveu: "Como diretor, José Medina é, indiscutivelmente por
enquanto, o nosso único diretor de verdade. Pela primeira vez senti... essa
ligação suave, espécie de traço-de-união que das partes várias de um filme faz
um todo" . Exibido no circuito Serrador, o filme foi muito bem sucedido,
tendo rendido 100 contos quando custara apenas 28. Apesar disso, Medina
abandonou aí o cinema, para abraçar o rádio.
Nos anos
vinte, cresce a produção e a qualidade dos filmes é aprimorada. Surgem as
idéias e o cinema brasileiro começa a ser discutido. Algumas revistas dão
cobertura, especialmente Cinearte. Também começam a surgir com maior relevo as
estrelas e os astros. O vigor que o cinema brasileiro começa a demonstrar
estimula a produção de filmes fora do eixo Rio/São Paulo.
Filmes
"ousados" também surgiram na década de vinte, tais como Depravação,
de Luís de Barros, com cenas apelativas e que teve a sua estréia
Filmes de cunho religioso também foram produzidos desde cedo, entre os quais Os
Milagres de Nossa Senhora da Aparecida, em 1916, e no fim do cinema silencioso,
As Rosas de Nossa Senhora, de 1930.
Vício e Beleza- um filme
"ousado" de Antônio Tibiriçá
Apesar da
pequena filmografia, é fundamental uma referência a Alberto Traversa, que
iniciou sua carreira na Itália e prosseguiu na Argentina. Vindo ao Brasil, em
1924 realizou O Segredo do Corcunda e, em 1926, Risos e Lágrimas. O Segredo, um
dos filmes preservados até hoje, revela um apurado conhecimento da técnica
cinematográfica e um bom diretor de atores. Traversa conseguiu naquela ocasião
uma fluência narrativa rara entre nós. O filme não esconde certas influências
de grandes mestres do cinema norte-americano, como Griffith e Ince.
Na mesma ocasião, Vittorio Cappelaro realizou sua segunda versão de O Guarani,
confirmando seu interesse pela nossa literatura e contando com a parceria da
Paramount Pictures, fato inédito até então no cinema brasileiro.
Rodolpho Rex Lustig e Adalberto Kemeny, cinegrafistas húngaros que vieram ao
Brasil na década 20 após uma estada na Alemanha, fixaram-se
São Paulo, Sinfonia de uma
Metrópole
Inspirados
no filme alemão de Walter Ruthmann, Berlim Sinfonia da Metrópole, resolveram
realizar, em 1929, São Paulo, Sinfonia de uma Metrópole, um filme singular.
Retrata com muita sensibilidade um dia da cidade de São Paulo, de uma forma
livre, utilizando efeitos visuais, trucagens e ritmos, para chegarem a uma obra
diferente de tudo o que se fazia por aqui, lembrando alguns momentos da
avant-garde francesa. O filme permanece como um dos melhores documentos da
cidade de São Paulo antiga. Recentemente, o filme recebeu um acompanhamento
musical especial composto por Lívio Tratemberg.
A regionalização do cinema ampliou-se e tornou-se mais consistente na década de
20.
No Estado
de São Paulo surgiu um importante ciclo de filmes produzidos em Campinas,
cidade que rivalizava com São Paulo. O primeiro foi João da Mata, de 1923,
produzido e dirigido pelo dramaturgo e jornalista Amilar Alves, que havia
fundado com outros a Fênix Filme para tal empreendimento. Este filme, apesar da
precária distribuição mais direcionada à própria região, teve grande êxito,
conseguindo o retorno do capital investido. Houve também exibições
Filmagem de Sofrer para
gozar (1923), de Eugênio Kerrigan
Alma Gentil é feito por Dardes Neto e a dupla Felipe Ricci e Tomás de Túlio
produzem Sofrer para Gozar, um melodrama rural em parte encenado num saloon
munido de roleta com um croupier chinês. Este filme foi proposto e dirigido
pelo cineasta ambulante E.C.Kerrigan, que já tinha seu roteiro pronto.
O genovês E.C. Kerrigan, cujo nome verdadeiro seria Eugênio Centenaro, foi um
dos mais pitorescos cineastas que tivemos. Chegando a São Paulo, fazia-se
passar pelo conde Eugênio Maria Piglione Rossiglione de Farnet. Constatando o
sucesso de João da Mata, transferiu-se para Campinas, onde apresentou-se como o
norte-americano E.C. Kerrigan, ex-diretor de filmes produzidos pela Vitagraph e
Paramount. Ali fundou a Escola Cinematográfica Campineira, na qual ensinava aos
alunos como representar diante da câmera. Foi quando convenceu Tomás de Túlio a
participar de sua empreitada, fundando com ele e alguns alunos a Apa Filme.
Antes de terminar Sofrer para Gozar, confrontado com um americano verdadeiro, foi
desmascarado, sendo obrigado a sair da cidade em busca de novas aventuras
cinematográficas. Mais tarde, quando deixou de trabalhar em cinema, foi acusado
de tráfico de escravas brancas e de passar-se por hindu capacitado para ler
bolas de cristal.
Apesar das
confusões com Kerrigan, Sofrer para Gozar teve um relativo sucesso, levando
Ricci e Túlio a aventurarem-se numa complexa adaptação do romance de Júlio
Ribeiro, A Carne, para posteriormente encerrarem esse ciclo campineiro, em
1927, com Mocidade Louca.
A carne, do Ciclo de
Campinas
Em Minas,
houve um evento na cidade de Guaranésia, onde os irmãos Carlos e Américo
Masotti já produziam documentários nos anos vinte. Chegando na cidade, o
ambulante E.C.Kerrigan, que parava onde conseguisse fazer cinema, convenceu os
Masotti a produzirem um filme de enredo. A pequena cidade, que passava por um
surto industrial, recebeu a notícia com emoção e, diante da expectativa de que
Guaranésia poderia se tornar um centro de produção cinematográfica, houve uma
grande mobilização. Fizeram Corações em Suplício (1925), dirigido pelo próprio
Kerrigan e produzido e fotografado pelos Masotti. Diante do fracasso financeiro,
sobrou apenas o sonho para Guaranésia.
Ainda neste Estado, encontramos o cinema
No campo ficcional, o destaque vai para Eduardo Abelim, que, após realizar um filme
de enredo curto em 1926, funda a sua Gaúcha Filme para fazer dois filmes de
longa-metragem interessantes, Castigo do Orgulho e O Pecado da Vaidade. O lado
curioso deste cineasta é que percorria o Estado levando seus filmes para exibir
e quando chegava às cidades, afim de atrair o público, realizava shows, fazendo
arriscadas proezas automobilísticas. Em 1985, Lauro Escorel retratou essa
figura singular em seu filme Sonho Sem Fim.
Ainda
uma das empresas de Recife
O sucesso
do filme, que ficou oito dias em cartaz, permitiu à Aurora Filmes comprar o
patrimônio da Pernambuco Filmes, produtora de documentários que falira. O
segundo filme da Aurora foi um curta-metragem de ficção, Um Ato de Humanidade,
que fazia propaganda de um remédio contra a sífilis.
Ainda em 1925, são produzidos Jurando Vingar, com roteiro de Roriz e direção de
Ary Severo, e Aitaré da Praia, agora com funções invertidas, Severo escrevendo
e Roriz dirigindo. Contraditoriamente, Aitaré tem grande êxito e a Aurora
Filmes vai à falência. No entanto volta às atividades um ano depois, produzindo
Herói do Século XX e A filha do Advogado, para depois novamente falir.
Surgem
outras produtoras em Recife: Vera Cruz, Planeta, Veneza, Olinda, Goiana,
Liberdade, Spia e Iate, todas realizando um ou alguns filmes, entre os quais
destacam-se Sangue de Irmão, Reveses, Dança Amor e Ventura, História de uma
Alma, esta narrando a vida de Santa Tereza de Lisieux.
Alguns atores, como Almeri Esteves, Rildo Fernandes e Jota Soares, se
destacaram em vários filmes. Alguns dos filmes, a exemplo de Retribuição e
Jurando Vingar, eram aventuras com alguns personagens que lembravam os dos
westerns americanos. Outros atinham-se ao tema regional, como Aitaré da Praia,
com suas jangadas e jangadeiros, ou com os coronéis da cultura de cana, que
aparecem em Revezes e Sangue de Irmão.
As
condições técnicas, artísticas e econômicas dessas produções pernambucanas eram
muito precárias. Só o fervor juvenil e o orgulho regional de fazer cinema
explicam a continuidade do ciclo, que acabara dando alguns bons resultados. Com
raras exceções, os filmes só eram exibidos na região e o custo de algumas
produções eram cobertos com as estréias festivas no Royal. O aparecimento do
cinema sonoro fez com que a produção pernambucana se encerrasse.
Esses movimentos, surtos ou ciclos regionais, eram frágeis e geralmente não
sustentáveis, principalmente por terem as exibições de seus produtos restritas
às suas próprias regiões. Com o advento do cinema falado a feitura dos filmes
ficara tecnicamente muito mais complexa e os custos das produções aumentaram
consideravelmente, tornando os ciclos regionais inviáveis. Dessa forma, a
produção voltou a concentrar-se no eixo Rio/São Paulo.
Em três localidades surgiram importantes produções no campo do documentário.
Foram estas Curitiba, João Pessoa e Manaus.
Em Curitiba, na década
Em João Pessoa, o pioneiro local é Walfredo Rodrigues. Aprendeu a filmar no Rio
de Janeiro e voltou a Paraíba, onde fez uma série de documentários curtos, além
de dois longos: O Carnaval Paraibano e Pernambucano, e Sob o Céu Nordestino,
que focaliza aspectos geográficos, econômicos e humanos do Estado.
Em Manaus, a atividade cinematográfica pioneira concentra-se
Voltando a Manaus, continuou fazendo fotografias e documentários registrando
fatos políticos, esportivos e sociais, além de passar três anos realizando o
filme dos seus sonhos, Amazonas, o Maior rio do Mundo. Este, como o primeiro,
também teve fim trágico, quando os negativos foram roubados a caminho de
Londres para copiagem.
Filmou No País das Amazonas para a exposição do Centenário da Independência no
Rio de Janeiro, em 1922. Este longa-metragem foi um filme revelação que
conquistou as platéias do Rio e São Paulo e de quase todas as capitais
brasileiras. O documentário ganhou a medalha de ouro na exposição e teve
versões em línguas estrangeiras para ser exibido na Europa e Estados Unidos. Já
no Rio, filmou outro longa metragem, Terra Encantada, sobre a cidade e a
exposição. Fez mais um longa em Roraima e, passando dois anos em Portugal no
fim dos anos vinte, realizou uma série grande de documentários naquele país.
Humberto
Mauro foi o primeiro vulto do cinema brasileiro. Venerado por boa parte de
nossos críticos, por historiadores e por muitos cineastas, particularmente por
aqueles do Cinema Novo, é figura central do nosso cinema mudo, tendo também
participação marcante no período do falado.
Nascido
cheio de talentos, de uma beleza
rude", escreve Paulo Emílio
Sales Gomes
Seu primeiro filme sonoro foi Ganga Bruta, que manteve as características
narrativas do cinema mudo, tendo nos discos que o seguia um acompanhamento
musical e apenas algumas falas. Esta foi a sua obra prima. Suas imagens tem o
dom de refletir as situações psicológicas dos personagens e os seus
sentimentos. Essas mesmas imagens são trabalhadas em função da integração com
as situações dramáticas e, para tanto, Mauro ainda utiliza-se com freqüência de
eficientes metáforas. Além das qualidades gerais, Ganga Bruta tem uma seqüência
inicial antológica, digna de qualquer mestre do cinema universal.
Apesar de
todas essas virtudes, que hoje são indiscutíveis aos olhos da crítica, na
ocasião o filme foi pouco compreendido e recusado pelo público. Apenas vinte
anos depois, em 1952, o filme foi consagrado, na 1a Retrospectiva do Cinema
Brasileiro realizado pela Cinemateca Brasileira, então denominada Filmoteca do
Museu de Arte Moderna.
Os filmes de Mauro realizados em Cataguazes não são os únicos produzidos na
cidade. Além dos filmes que foram feitos, esse ciclo propiciou o aparecimento
de duas figuras relevantes. Uma é Edgar Brasil, um dos maiores fotógrafos
brasileiros, que fotografou dois dos filmes de Mauro. Outra é a atriz Eva Nill,
filha de Pedro Comello, mito estelar que se forjou na época e musa do final do
cinema mudo, revelada por Humberto Mauro em três de seus filmes.
Paolo
Benedetti, que de Barbacena foi parar no Rio, continuou se dedicando a
pesquisas e desde 1917 instalara um laboratório cinematográfico nessa cidade.
Em 1924, justamente quando a produção carioca sofreu um declínio quantitativo,
inclusive com a saída de Luiz de Barros, que foi para São Paulo, fundou a
Benedetti Filme. Logo no primeiro ano realizou dois filmes que impressionaram a
crítica: A Gigoleti e Dever de Amar.
Após outras
tentativas que não foram bem sucedidas, Benedetti acabou voltando aos seus
inventos. Chegou a realizar alguns curtas musicais com cantores populares, para
testar os sistemas de sonorização que vinha aperfeiçoando.
Recentemente foi encontrado um destes filmes com o Bando dos Tangarás, no qual
se pode ver e ouvir. tocando e cantando, Almirante, Braguinha, Noel Rosa, uma
saborosa raridade de nossa história.
Adhemar Gonzaga é um dos grandes nomes do cinema brasileiro. Jornalista, após
colaborar em várias revistas escrevendo sobre cinema, fundou a revista
Cinearte, exercendo um tipo de crítica muito simpática ao cinema brasileiro e
divulgando o quanto fosse possível a nossa cinematografia, seus técnicos, seus
atores. Cinearte foi uma lanterna que sinalizava o que se fazia, para iluminar
e integrar os cineastas brasileiros do Norte ao Sul.
Fundando a Cinédia, sob o impacto de Barro Humano, entrou na produção
encontrando várias dificuldades para realizar seu primeiro filme. Após
enveredar por vários caminhos, foi superando os obstáculos e chegou ao primeiro
filme da Cinédia pronto: Lábios Sem Beijos, dirigido por Humberto Mauro.
Mulher, por Otávio Gabus Mendes e Ganga Bruta, novamente de Mauro, foram os
próximos filmes dessa companhia. A história da Cinédia apenas começava, para se
desenvolver posteriormente com o cinema sonoro.
Limite é o
mito do nosso cinema. Um filme que se isola na filmografia brasileira. Não é
à-toa que a Cinédia no seu início de 1930 não se interessou pelo projeto. No
entanto, Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga devem ter estimulado o jovem Mário
Peixoto a fazer o filme, indicando atores da Cinédia e Edgar Brasil para
fotografá-lo.
Peixoto, ligado a intelectuais que se interessavam pelo cinema arte,
principalmente aqueles que fundaram o Chaplin Clube e a revista Fan, conhecia
as tendências mais avançadas do experimentalismo cinematográfico. Realizou uma
obra cujo sentido plástico e rítmico predominam. É um filme modernista e
reflete o espírito que reinou na avant-garde francesa de dez anos antes. O
ritmo e a plasticidade suplantam a própria história do filme, que se resume na
situação de três pessoas perdidas no oceano. São três personagens, um homem e
duas mulheres, que vagam num pequeno barco e cada uma delas conta uma passagem
de sua vida. O infinito do mar representa seus sentimentos, seus destinos
Para o contentamento dos velhos intelectuais da revista Fan, Morfina pode ter
sido a morfina do cinema brasileiro; Limite sem ter sido o último dos filmes
silenciosos foi um glorioso ponto final do cinema mudo; Os Estranguladores, um
dos nossos primeiros filmes "posados" pode simbolizar os
distribuidores americanos que sempre tentaram estrangular o cinema brasileiro.
No entanto, a trajetória do nosso cinema mudo com seus heróis, sua
diversificação, seus registros documentais, com os imigrantes, com Humberto
Mauro e Ganga Bruta, mostrou-nos os caminhos possíveis e a vitalidade cultural
do cinema brasileiro que, aos trancos e barrancos, não terminaria aí.
Textos de Rudá de
Andrade e Guilherme Lisboa
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