15 de junho de 2008

Nau Frágil


Nau Frágil

Diz-se que os mares devolvem os corpos dos marinheiros sós. Vêm
enredados de algas, enfeitados de marés com harpejos de espuma,
respirando o mistério do desejo como se afagassem ainda o seu corpo
provocando o derradeiro acto-de fé da alma. Trazem no rosto o mistério
envidraçado dos dias baços aguardando o inclinar das quilhas e o erguer
dos mastros em laranjeiras suculentas contra o escorbuto da fala.
Mas tu que habitas a luz pura das estrelas, não segues só na rota dos abismos
siderais. Estende o olhar no horizonte e vê a espuma que deixas ao passar.
Não saberás, mas agora és serpente e moras no meu corpo, como se fosses
flor do desejo, um cardo seco - aberto frágil - ao sol do deserto e brotasses na
minha boca em forma de átomo, circundando o palato, os lábios em alvoroço,
ardendo, queimando, rodopiando louco.
Agora mesmo te quero como palavra acobertada nas coxas mordendo com
marcas de romã descritas sorvidas pelos dedos. Recebe o afago da memória
ardendo, uivando, querendo. E colhe-me - lambe a pele, as feridas a fundo
em espiral de fogo na fúria dos elementos, sacia a sede na fenda sísmica
tremendo, tremendo, ávido como águia, na polpa sumarenta da tua boca a
água que derramas sobre a chama, a chama no altar da carne não sei se em
oferenda se em apenas fome. E frágil a combustão do tempo.

Sabes como aqui amanhecemos por dentro - e os corpos se vazam no útero
juntos até à suspensão das marés - aqui as pedras expostas aos astros são
o leito frio onde a morte escorre para trás e nós presos no convés das noites,
as naus de regresso âncoras no cais fundeadas por dentro as vagas vazias
ao rés do vento para aterrarem a pique num corpo, o corpo de cal caindo
oblíquo na parede enclausurada..
Não te quero marinheiro naufragando só. Quero-te ave pousando como pedra
frágil no meu peito e bebendo o sol agora mesmo aceso e o beijo, um beijo de
musgo palpitando fresco. Como a âncora fundeada no lodo quero-te dentro.
Preso frágil nas palavras que moldaste na voz e cedo, cedo amanhecendo náufrago
entre o céu e o azul que me escorre dos dedos.

de
SaraComAmor

Desassossego


Desassossego
Trabalho sobre "Danae" de Klimt



Na verdade vos digo: a noite.
E a palavra ecoa num silêncio de mármore
Tal este vento oco que crepita no olhar triste das janelas.
Na verdade digo -
Ausência.
O quarto vazio na indiferença dos velhos móveis
Esta clausura que os habita
E move
Na verdade digo nuvem
E penso num poema algodoado
Como os amortecedores dos carros familiares
Com insonorização à prova de dor
Na verdade digo sol
E a noite arde num prelúdio de febre lenta
Sem remédio
Como uma teimosa flor venal
Crescendo dos céus em nome de todos os desejos,
Tão vagos como seixos
A noite, digo eu,
A noite investe sobre o meu corpo
Como pássaro negro
Uma porta uiva sobre o silêncio
E a cama cresce até à dimensão do medo
Digo a noite e penso, é cedo para o
Rumor do mar.
Pressinto o vento
Beijando as árvores no pinhal
- o mar das memórias encantadas
que dormem sonos lendários sob o rumor das pedras.
E o poema cresce na boca e desce à terra
Como a semente de todos os desejos
Crescendo, crescendo, cravados, calcados
Crispados na terra seca, medrando para dentro.
Em verdade vos digo:
eis a raiz eterna do desassossego
Bom fim de semana e obrigada a todos que vieram ler-nos e
aos quais o tempo não me permite responder como gostaria.
Um abraço muito forte e até breve...

A tarde caindo sobre o Tejo


A tarde caindo sobre o Tejo...


Curva-se o ombro da tarde
Na luz coada
Como se o tempo
Fora o rasgar da nuvem
Sobre o Tejo
Suspende-se o olhar
Sobre a janela
E o ar agora baço
É o esvoaçar da ave
Ferindo o nevoeiro...
O grito da outra margem
Gingão o cacilheiro
E o cais deserto...
Nem ontem nem hoje
Apenas o reflexo de ti batendo
E a tarde caindo sobre o Tejo...

Nota: desisti de desistir dos blogs! afinal pertenço aos meus afectos...

Don Badalo

Como se fosse lume


Como se fosse lume...

tão cedo
e é como se o sol viesse
rasgar a bruma do teu peito
esse rio de sangue ardente correndo
nas veias para dentro
é como se (eu) tivesse vindo desaguar
no apaziguamento das estrelas
no lago de luz aceso em nosso leito
despenhando-me para dentro
para o interior desse riso aceso
lentamente como quem em sonhos
sobrevoa o vento
é como se o poema nos viesse à boca
secreto calado pelo corpo adentro
e o verbo no gerúndio do esquecimento
nomeasse a zona azul da manhã
ainda tão cedo
é como se o tempo se calasse
na orla do presente e tu viesses ver-me
quente o veludo que embrulha a voz
dócil como seda - cego de amor
tão cego como as palavras que acendo
e ardem no meu peito a medo
é como se entre nós não pulsasse já
este quazar perdido no espaço já longe
sem tempo afastando-nos levando-nos
para a discórdia do silêncio

é como se eu questionasse
agora mesmo o mutismo do vento
será este o sol que me chama
a voz que me queima o corpo que (me) ama?

A Casa do Espanto



A Casa do Espanto
Ilustração: "Monte Alentejano" pintura de Rodrigo Pombeiro

I
Era nesta casa que habitava o medo.
Vinham depenadas almas pela chamainé abaixo,
acendendo a lareira de contos e de casos.
Dizia-se que calçavam os sapatos dos vivos e as almas
daqueles que as abrigavam no alvoroço dos sentidos.
A escuridão gritava nomes que não tinham corpo e as paredes
nomeavam cidades desconhecidas no mapa dos sonhos.
II
De manhã éramos cal viva virada ao sol na claridade aflita
das paredes emudecidas. A casa despertava como pão crescendo
no forno, estalando o tecto no seu caniçal ao rés do vento.
Havia sempre um touro no meu olhar investindo contra o mundo.
Este resumia-se ao lagar e ao açude onde erigia barragens
e paisagens desconhecidas.
III
Na imobilidade das coisas surgiam perfis estáticos de lobos.
Alimentavam a planura dos dias expiando-me, espantando
pegas e atouguias que nenhum espantalho arredava das searas
tal como nada arredava a monotonia. Eram pedras verde esmeralda
luzindo no brasido dos dias. Tão persistentes como as raposas
embalsamadas, colhidas em pleno gesto de pilhagem de galinhas.
Ainda povoavam as noites com gritos de gente que caíam a pique
no tecto da noite. E a casa ouvia.
IV
À tarde enfeitava-me com laços de melancolia para me lançar
no colo do sol, na falta do pai que trabalhava rente à noitinha.
Ficava na soleira da porta acompanhando o espanto da passarada
em fuga, levando-me, levando-me para a outra margem da vida.
Não havia crianças, só pássaros e galinhas.
V
Os homens dormiam sestas e apascentavam
dentro de si os rebanhos que lhes nasciam nos braços.
Semeavam alqueires de esperança no coração
e esvaíam-se em sementes no corpo húmido da terra.
Havia mulheres que se doavam nos palheiros num fervilhar
das ancas. Eram férteis investidas silenciando as tardes
no abafar dos gemidos. Nem todas conheciam o lume
que pode arder no silêncio que guarda as sestas. Uma mulher
guardava gansos e descobriu-se um dia que falava como eles,
no fundo da garganta o grito era sempre de espanto.
VI
A casa ainda hoje exala balidos de vento e os chocalhos
das memórias idas. Na caliça que se perde esboroam-se
traços de unhas e vidas que a humidade calcificou.
Uma solidão que saiu para fora da casa e me seguiu em busca
da cidade. Descobri que afinal o outro lado do mundo
era um aglomerado de pessoas a coberto de nenhum beiral.
VII
Sim, era nesta casa que habitava a infância.
As casas brancas do inconsciente são todas feitas de pedra
e apodrecem de pé.
Algumas têm portas que se fecham a cadeados como o esquecimento.
Às vezes são arrombadas por nortadas, outras escancaram-se mesmo sem vento.
Mas esta permanece aberta de par em par e eu lá dentro.

de
SaraComAmor

Naquele tempo


Naquele tempo...


Naquele tempo as noites uivavam por entre o arvoredo e
havia luas presas nos teus olhos. Eram então bíblicos
momentos...
Eu vinha sentar-me no teu colo sem saber que te
cresciam no peito velhas giestas cobertas pela solidão
do deserto.
Olhavas-me com a placidez dos pastores que guardam
pensamentos antigos na fome calada dos montes...
Vês o meu gesto de abandono? Sou de novo menina e o
teu colo é o baloiço dos meus sonhos.
Tu puxavas-me para o centro do teu corpo, no ponto
onde te crescia a solidão a fundo.
Então o dia clareava em volta dos teus olhos e tu sorrias
com a palidez do sol de Inverno. Talvez o teu amor
nascesse com as estações, nos primeiros botões da
amendoeira e morresse com elas em cada maçã serôdia,
cada folha seca a rastejar na poeira...
Talvez a realidade te habitasse desmesuradamente
para que não tivesses de a habitar mas o certo...
...é que um dia no teu olhar cresceu um tronco e nele
vieram pousar todos os pássaros mortos
da casa abandonada dos teus sonhos.
E eu desfis as tranças e parti para onde as mãos tangem o vento.
Porque naquele tempo ainda existias no fundo da minha boca
como verbo, como carne, como nome, como o ser gramatical
dos versos loucos.
E eu vertia sal na água das fontes, se te sentia à tona do meu corpo.
Ainda não sei se foi o tempo, se a neblina, se um excesso de musgo...
mas no pulsar dos dias perdi a latitude do teu rosto,
excessivamente cavada na memória.
Eu diria, se não fosse dizer pouco, que nasceram flores sobre o teu busto.


deSaraComAmor

Conta-me uma história


Conta-me uma história...

Conta-me uma história
Conta-me simplesmente uma pequena história de embalar
Como aquelas que me contavam quando eu era criança
Mas conta-me essa história agora
Quero que o meu riso de lembranças
Seja embalado pelo teu sorriso branco
Que tanto me evoca as pálidas e translúcidas pétalas das rosas
A sorrirem-me num canteiro de um jardim improvável de Veneza
Aonde eu nunca fui
Ou vogando tranquilas na superfície lenta de uma lagoa
Como barcos impossíveis dos deuses das florestas
Conta-me uma história
Conta-me aquela história cheia de risos e de sonhos
Como as que me contavam quando a juventude ardia em mim
E os dias nasciam na intensidade das paixões
E sempre tão preenchidos de Sol
Ou de neblinas feéricas de mistério e encantamento
Que nos perdíamos em mares de abismos glaucos
Ou de tremendas tempestades
A viver sonhos com olhos acordados de espanto
Conta-me uma história
Depressa
Uma outra história de combate
Feita com palavras urgentes de ferir como o ferro duro e frio das adagas
Como aquelas palavras segredadas que surgiam
Nas madrugadas cinzentas
Das afrontas dos medos e das incertezas
A cercarem-nos imperativas de violência
Como se estivéssemos sós
E o mundo quase todo à nossa volta nos não soubesse
Conta-me uma história
Podes contá-la agora
Quando a falta que o tempo me faz me torna o tempo maior
A história das histórias contadas
A trança de uma vida que eu faço e da qual vivo
Uma história com o sabor de exóticas especiarias
Mas que contenha também a doçura indizível dos doces caseiros
As ementas que me trazem o calor da minha mãe
Condimentadas com afectos entrelaçados por um cordão de mãos
Que alguma vez senti
Conta-me uma história
Uma história que me diga onde estás
Que me ajude a encontrar-me melhor porque te encontro
Ou a encontrar-te talvez se me procuro...