Identidade
redescoberta
Capitais
do Nordeste investem alto para
recuperar centros
históricos degradados e
assim incentivar o turismo cultural
sol presente o ano todo e as praias paradisíacas já não são as únicas atrações
turísticas das capitais do Nordeste. Às vésperas dos 500 anos do Descobrimento,
as metrópoles da região transformam seus centros históricos em canteiro de
obras com especial interesse no turismo cultural. Mais do que salvar casarios
coloniais das ruínas, estão dando vida nova a bairros inteiros, antes guetos de
decadência econômica e prostituição. Esses sítios, ruas e praças já reformados
são hoje concorridos palcos de shows e feiras culturais. Bares e restaurantes
da moda, instalados em velhos armazéns reestilizados, estão formando novos
pólos de agitação noturna. Como resultado, o valor dos imóveis multiplicou.
Assim ocorreu no Pelourinho, em Salvador - um dos primeiros megaprojetos de
revitalização a sair do papel, no início dos anos 90. O exemplo baiano foi
seguido pelos vizinhos. No Recife, o alvo inicial foi o casario da Rua do Bom
Jesus, a mais famosa do velho bairro portuário onde se instalou o governo
holandês no século 16. Com a deterioração, o antigo centro econômico da cidade
virou reduto de prostíbulos. No imóvel em que um deles funcionava aloja-se hoje
o London Pub, animada casa de jazz e blues. "O centro histórico tornou-se
o melhor local para se investir em entretenimento", afirma André Lubambo,
dono do bar e de uma creperia recém-inaugurada na Rua do Bom Jesus, além de
presidente de uma associação que reúne 79 restaurantes no bairro. "Eram
apenas 12 antes da reforma, todos com uma casa de prostituição ao fundo",
conta o empresário.
Só nesta década, 200 edificações do bairro foram restauradas. Algumas obras
estão em fase de conclusão, como a da Torre Malakoff, observatório astronômico
erguido em 1853 como portal de entrada da cidade. As ruas ganham luminárias
imitando antigos lampiões a gás e o armazém da alfândega passa por reformas
para abrigar um shopping center. As despesas serão cobertas com parte dos R$
200 milhões destinados este ano ao Brasil pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) para a restauração do patrimônio histórico. A verba
também será aplicada na instalação de um complexo de cinemas no prédio da velha
boate Chantecler, outrora palco das mais concorridas festas do Recife. Para
estimular novos negócios no bairro, a prefeitura concede desconto de 10% a 25%
nos impostos.
O modelo recifense foi seguido por João Pessoa. O núcleo original da cidade - a
terceira mais antiga do Brasil, fundada em 1585 - situa-se no entorno do Porto
do Capim, desativado desde a década de 30. Hoje em ruínas, o local está sendo
recuperado para permitir passeios a barco no estuário do Rio Sanhauá. Saindo do
porto, 50 metros de caminhada numa ladeira estreita e íngreme levam ao largo da
setecentista Igreja São Pedro Gonçalves, em obras. Ao lado situa-se o prédio do
antigo Hotel Globo, o principal da cidade desde sua criação, nos anos 20, até o
final dos 50. No imóvel em estilo neoclássico e art noveau, agora recuperado,
funciona um centro cultural. A reforma foi feita pelos alunos da Oficina-escola
de João Pessoa, moças e rapazes de baixa renda que trabalham por salário mínimo
e comida.
Dali, descendo por uma ladeira lateral, chega-se à Praça Anthenor Navarro, onde
13 sobrados foram transformados em ateliês de arte, livrarias e bares hoje
freqüentados por consumidores de alto poder aquisitivo. No novo complexo de
vida noturna, os aluguéis triplicaram. O êxito da iniciativa fez com que o
projeto de recuperação fosse estendido ao Teatro Santa Roza, o terceiro mais
antigo do país, e à Estação Ferroviária, hoje endereço de feiras culturais e
festas alternativas do tipo rave.
Além de recuperar áreas
deterioradas, em Fortaleza a
prefeitura decidiu construir um
centro cultural, de linhas
futuristas, entre os antigos
armazéns da zona portuária.
Inaugurado este ano, ao custo de
US$ 25 milhões, o Centro Dragão
do Mar abriga museus, salas de
exposição, auditórios, cinemas e
planetário, instalados no prédio
em ziguezague que serpenteia no
bairro. Perto dali, o casario
vizinho à orla da Praia de
Iracema, depois de remodelado,
passou a atrair bares, animados
pelo forró.
Mais ousada foi a estratégia
adotada por Maceió. Atraída pela
isenção tributária, a Universidade Estácio de
Sá, do Rio,
aliou-se a um colégio local para criar um
centro de ensino superior em um antigo bordel, no bairro histórico do Jaraguá.
A faculdade terá, já em janeiro, 1.800 alunos em três turnos. De olho nessa
clientela, vão se instalar ali livrarias, lanchonetes, cinemas. Cerca de R$ 22
milhões estão sendo investidos na restauração dos prédios em geral.
A velha Rua Sá e Albuquerque, espinha dorsal do bairro, roubou a efervescência
noturna da orla marítima. Hoje, os principais endereços da diversão em Maceió
são a boate Aeroporco e o bar Casa da Sogra, instalados em antigas lojas de
ferragens e armazéns portuários no Jaraguá. Grande exportador de fumo e açúcar
no século 16, o porto conserva resquícios de seu esplendor, como o prédio
neoclássico da Associação Comercial. A decadência do açúcar resultou em
abandono. Restaurado, o prédio será reaberto neste mês, com escritórios e um
museu sobre a formação socioeconômica do Nordeste.
Por exigência das agências financiadoras, a revitalização dos centros
históricos deve vir acompanhada de melhorias na infra-estrutura urbana. São
Luís é um exemplo. Patrimônio da Humanidade, a capital maranhense ostenta um
dos maiores núcleos históricos do país, com 3.500 edificações em 270 hectares.
Fundada em 1612 pelos franceses, a cidade tornou-se pólo comercial na Colônia e
atraiu famílias abastadas, cujas propriedades costumavam ter fachadas com
azulejos portugueses, transportados como lastro nas caravelas. No início deste
século, a estagnação econômica e o colapso da navegação à vela fizeram do
centro histórico celeiro de cortiços e prostíbulos. "Como não havia
dinheiro sequer para demolição, muitos prédios dos séculos 17 a 19 permaneceram
intactos", conta Luis Felipe Andrés, coordenador do projeto de
restauração.
Nos últimos dez anos foram gastos US$ 95 milhões na reforma do bairro da Praia
Grande, hoje palco de atrações culturais na cidade. A fase inicial,
beneficiando mil imóveis em ruínas, reconstruiu a paisagem urbana do século 19,
sem ignorar a bela igreja neoclássica construída pelos jesuítas no século 17.
Com o reforço de US$ 46 milhões recebido do BID pela prefeitura este ano, uma
antiga fábrica de arroz, movida pela força das marés no século passado, está
sendo recuperada para abrigar um estaleiro-escola para 200 alunos. Os andaimes
e tapumes chegam agora ao antigo casarão de Lilah Lisboa, promotora dos saraus
mais animados da cidade no século passado. A majestosa casa, hoje deteriorada,
será sede da Escola de Música de São Luís. Um dos vizinhos é Tomás Cantuária,
72 anos, o último alfaiate da Rua de Nazaré, famosa por acolher dezenas de
costureiros no passado. O negócio não pode morrer. A diversificação das
atividades é o segredo para tornar o bairro dinâmico e viável economicamente. A
força da História e o glamour da arquitetura garantem o resto.
Sérgio Adeodato, do Recife
Fotos: Roberto Setton/Época