15 de junho de 2008

Ay, flores...


Ay, flores...

- um divertimento floral, com flores e tudo... -
Oh Maria-sem-vergonha
Que fazes?
Margarida, minhas dores
que me acusas
por não falar em flores...
Fazes-te calêndula
sempre-viva
não ouvindo o pelargónio
nem o rir das campainhas
E fazes-me tais horrores
porque não és sensitiva
Deras tu pela begónia,
tão gentil com a perpétua
e serias flor da azálea
ou lilás, bela de lírio.
Mas não, queres só malmequeres
quanto muito a flor das chagas
e malmequer faz se quer
as chagas não vão com rosas
Girassol és tu e tanto
sem alegria da casa
Tanta inveja ao agapanto
por ser alto e ser azul...
Serias lírio do vale
mimosa até genciana
não passas de cinerária
Bem feito por seres fisálide
se o cravo to perdoar
e ouve bem o gerânio
tão amigo da perpétua
por prímulas e por papoilas
que entre si dão ao goivo...
Ao junquilho, ao açafrão
nem fales de tanta fúcsia
ou à peónia em ciclame
feita tão suave com malva
que é malícia-de-mulher
sentindo só o que quer
E nem rapôncio te salva
se soltares outros odores...
Mas nunca por nunca digas
Que não falei em flores!

Em Estado de Luz


Em Estado de Luz


o sol de novo aceso
na mansidão da maré
e tu no prodígio da manhã
vieste a mim a ver o sol
e o meu pensamento voou
até onde a boca pôde gritar
na incandescência do dia
ficou a planar uma nota azul
de música banal
rasguei todas as nuvens
abri as asas do sorriso
e vim cair iluminada
na foz maravilhada do amor
por isso hoje os círios são sóis
e nas catedrais abertas
à cegueira do mundo
arde lentamente o tempo
em chamas sagradas
de astros famintos
lançando inquietas faúlhas
desta Luz que hoje pressinto...

Monolítico Silêncio


Monolítico Silêncio


terra de mouras escondidas
nas fragas onde a lenda as faz belas
e por amores infiéis perdidas
mulheres espreguiçadas no horizonte
repousando em monolíticas pedras
onde a memória calada se acende
nos pelourinhos e antas abertas
uma cerca derruída - silêncio
aqui jazem pedras dispersas
aqui há pontes citiando os caminhos
há o granito silente das ruínas
o estanho ensimesmado dos objectos
entrando a pique no olhar faminto
e um passado morto fazendo ninho
nos coração dos velhos sobreiros
e eu sou a águia que passa sobre
o espanto do rochedo e grita
a alma das mouras penedias
a lenda das almas outras aflitas
o musgo que arde sedento e o silêncio
ornado de malmequeres e vida
eu sou o murmúrio que vem no vento
e vem pousar no poema arrefecido
porque a memória é uma anta vazia
e o passado um grito de ave sem sentido

Nau Frágil


Nau Frágil

Diz-se que os mares devolvem os corpos dos marinheiros sós. Vêm
enredados de algas, enfeitados de marés com harpejos de espuma,
respirando o mistério do desejo como se afagassem ainda o seu corpo
provocando o derradeiro acto-de fé da alma. Trazem no rosto o mistério
envidraçado dos dias baços aguardando o inclinar das quilhas e o erguer
dos mastros em laranjeiras suculentas contra o escorbuto da fala.
Mas tu que habitas a luz pura das estrelas, não segues só na rota dos abismos
siderais. Estende o olhar no horizonte e vê a espuma que deixas ao passar.
Não saberás, mas agora és serpente e moras no meu corpo, como se fosses
flor do desejo, um cardo seco - aberto frágil - ao sol do deserto e brotasses na
minha boca em forma de átomo, circundando o palato, os lábios em alvoroço,
ardendo, queimando, rodopiando louco.
Agora mesmo te quero como palavra acobertada nas coxas mordendo com
marcas de romã descritas sorvidas pelos dedos. Recebe o afago da memória
ardendo, uivando, querendo. E colhe-me - lambe a pele, as feridas a fundo
em espiral de fogo na fúria dos elementos, sacia a sede na fenda sísmica
tremendo, tremendo, ávido como águia, na polpa sumarenta da tua boca a
água que derramas sobre a chama, a chama no altar da carne não sei se em
oferenda se em apenas fome. E frágil a combustão do tempo.

Sabes como aqui amanhecemos por dentro - e os corpos se vazam no útero
juntos até à suspensão das marés - aqui as pedras expostas aos astros são
o leito frio onde a morte escorre para trás e nós presos no convés das noites,
as naus de regresso âncoras no cais fundeadas por dentro as vagas vazias
ao rés do vento para aterrarem a pique num corpo, o corpo de cal caindo
oblíquo na parede enclausurada..
Não te quero marinheiro naufragando só. Quero-te ave pousando como pedra
frágil no meu peito e bebendo o sol agora mesmo aceso e o beijo, um beijo de
musgo palpitando fresco. Como a âncora fundeada no lodo quero-te dentro.
Preso frágil nas palavras que moldaste na voz e cedo, cedo amanhecendo náufrago
entre o céu e o azul que me escorre dos dedos.

de
SaraComAmor

Desassossego


Desassossego
Trabalho sobre "Danae" de Klimt



Na verdade vos digo: a noite.
E a palavra ecoa num silêncio de mármore
Tal este vento oco que crepita no olhar triste das janelas.
Na verdade digo -
Ausência.
O quarto vazio na indiferença dos velhos móveis
Esta clausura que os habita
E move
Na verdade digo nuvem
E penso num poema algodoado
Como os amortecedores dos carros familiares
Com insonorização à prova de dor
Na verdade digo sol
E a noite arde num prelúdio de febre lenta
Sem remédio
Como uma teimosa flor venal
Crescendo dos céus em nome de todos os desejos,
Tão vagos como seixos
A noite, digo eu,
A noite investe sobre o meu corpo
Como pássaro negro
Uma porta uiva sobre o silêncio
E a cama cresce até à dimensão do medo
Digo a noite e penso, é cedo para o
Rumor do mar.
Pressinto o vento
Beijando as árvores no pinhal
- o mar das memórias encantadas
que dormem sonos lendários sob o rumor das pedras.
E o poema cresce na boca e desce à terra
Como a semente de todos os desejos
Crescendo, crescendo, cravados, calcados
Crispados na terra seca, medrando para dentro.
Em verdade vos digo:
eis a raiz eterna do desassossego
Bom fim de semana e obrigada a todos que vieram ler-nos e
aos quais o tempo não me permite responder como gostaria.
Um abraço muito forte e até breve...

A tarde caindo sobre o Tejo


A tarde caindo sobre o Tejo...


Curva-se o ombro da tarde
Na luz coada
Como se o tempo
Fora o rasgar da nuvem
Sobre o Tejo
Suspende-se o olhar
Sobre a janela
E o ar agora baço
É o esvoaçar da ave
Ferindo o nevoeiro...
O grito da outra margem
Gingão o cacilheiro
E o cais deserto...
Nem ontem nem hoje
Apenas o reflexo de ti batendo
E a tarde caindo sobre o Tejo...

Nota: desisti de desistir dos blogs! afinal pertenço aos meus afectos...

Don Badalo

Como se fosse lume


Como se fosse lume...

tão cedo
e é como se o sol viesse
rasgar a bruma do teu peito
esse rio de sangue ardente correndo
nas veias para dentro
é como se (eu) tivesse vindo desaguar
no apaziguamento das estrelas
no lago de luz aceso em nosso leito
despenhando-me para dentro
para o interior desse riso aceso
lentamente como quem em sonhos
sobrevoa o vento
é como se o poema nos viesse à boca
secreto calado pelo corpo adentro
e o verbo no gerúndio do esquecimento
nomeasse a zona azul da manhã
ainda tão cedo
é como se o tempo se calasse
na orla do presente e tu viesses ver-me
quente o veludo que embrulha a voz
dócil como seda - cego de amor
tão cego como as palavras que acendo
e ardem no meu peito a medo
é como se entre nós não pulsasse já
este quazar perdido no espaço já longe
sem tempo afastando-nos levando-nos
para a discórdia do silêncio

é como se eu questionasse
agora mesmo o mutismo do vento
será este o sol que me chama
a voz que me queima o corpo que (me) ama?