LEMBRANÇAS
DE UMA PAIXÃO - LYNNE GRAHAM
Resumo: Os reflexos do sol na água da piscina começaram a dançar diante dos
olhos de Catherine, trazendo de volta a sua mente imagens que a amnésia havia
apagado. Estava na Itália porque fora seqüestrada por Luc, o homem que amara de
todo o coração cinco anos atrás. Nessa época, ele a mantinha como uma
prisioneira, pensando apenas no próprio prazer. Então, apavorada, Catherine
percebeu que, se não escapasse logo dali, corria o risco de mais uma vez se
tornar escrava do poderoso Luc Santini.
Capitulo I
Luc deixou de lado o relatório financeiro que lia e fitou Catherine com
incredulidade:
- Casar com você ? - perguntou - E por que eu haveria de me casar com você?
Trêmula, Catherine pôs a xícara de café sobre a mesa, sentindo que a coragem a
abandonava.
- Só estava imaginando se alguma vez chegou a pensar nisso - comentou, cruzando
os dedos para ocultar o tremor. Foi apenas uma idéia.
- E de quem foi essa idéia? Pelo que sei, você está muito contente com a
situação atual.
Não queria pensar no que Luc havia feito com ela. Mas, com certeza, contente
não era a melhor palavra para descrever o que sentia. Amou-o desde o inicio,
com intensidade e força, com desespero por saber que jamais estaria à altura
dele.
Nos últimos dois anos, vivera entre o êxtase e o desânimo.
Aquele apartamento luxuoso era uma prisão para ela. Um pássaro lindo e sonoro,
guardado numa gaiola dourada para o exclusivo entretenimento de Luc. No
entanto, não eram grades que a tornavam prisioneira: era o amor.
Fitou-o de soslaio, nervosa. O tom de voz dele fora firme e as palavras,
decepcionantes. E agora estava lá, em silêncio, sem olhar para ela. Talvez
pensasse em algum ser imaginário, um ente que se atrevera a contaminá-la com
idéias ridículas sobre a relação que viviam há algum tempo.
- Catherine... - Luc insistiu, esperando que respondesse à pergunta anterior.
Por baixo da mesa, ela cravava as unhas na palma das mãos, arrependida por ter
provocado um confronto tão penoso.
- A idéia foi minha e ... eu gostaria que dissesse o que pensa a respeito -
mentiu, sabendo que não ia gostar de ouvir o que ele estava prestes a dizer.
Se o império da Santini Eletronics falisse da noite para o dia, Luc não estaria
tão carrancudo como naquele momento.
- Você não reúne as condições básicas que eu exigiria em minha futura esposa.
Pronto, agora já sabe - explodiu, com a rapidez e a frieza que haviam tornado
seu nome mais temido que respeitado no mundo dos negócios. - Agora não precisa
mais ficar imaginando coisa alguma.
Pálida, Catherine assustou-se diante de franqueza brutal e cruel que provocara,
envergonhada por descobrir que, apesar de tudo, ainda alimentava uma pequena
esperança de que fosse diferente.
Cravou os brilhantes olhos azuis no rosto dele e respondeu, lutando para conter
as lágrimas:
- Não, não preciso mais imaginar nada.
Após a confissão, Luc demonstrava um alivio inesperado para a situação tensa
que enfrentavam.
- Não é o tipo de assunto que eu escolheria para o café da manhã - murmurou
irritado, mostrando o quanto reprovava o atrevimento dela por ter abordado o
tema. - Por que pensou em tentar uma relação que não seria nada fácil para
você? Sabe que, como minha esposa, sua vida seria um inferno... Como amante,
sou menos exigente do que seria como marido.
No momento mais angustiante de toda sua vida, ela sentiu que beirava o
descontrole e a histeria. A mão morena, bronzeada pelos constantes banhos de
sol, deslizavam com descuido por seus dedos, brancos por causa da forca que
fazia para mantê-los firmes, cerrados. Embora soubesse que Luc usava mais um
dos costumeiros métodos para distraí-la, a eletricidade daquela poderosa
química sexual agiu como sempre e expulsou qualquer intenção que pudesse ter de
agredi-lo, para demonstrar a dor causada pela desilusão.
Com um suspiro, ele afastou o punho da camisa de seda para consultar o relógio.
- Vai se atrasar para a reunião - disse Catherine, levantando-se e percebendo
que, pela primeira vez, se sentia aliviada pela aproximação da hora da partida,
que normalmente era frustrante e triste.
Luc também ficou de pé e aproximou-se dela, encarando-a com expressão curiosa.
- Você esta muito estranha - comentou - Aconteceu alguma coisa ?
Surpresa, Catherine notou que o outro problema fora deixado de lado, excluído
da discussão por algum estranho mecanismo de defesa.
Luc não saberia de nada. Afinal, por que estragar as ultimas horas que passavam
juntos ?
- Não...o que poderia ter acontecido ? - mentiu, virando-se para não ter que
encará-lo.
Com ele aprendera a arte da mentira e da dissimulação. Quando descobrisse o
monstro que criara durante aqueles anos de convivência, só poderia culpar a si
mesmo.
Na acredito - insistiu Luc. - Você não dormiu a noite inteira! - e
aproximou-se, segurando-a pelos ombros com delicadeza e obrigando-a a encará-lo
- Está preocupada com sua segurança ?
A proximidade e o contato das mãos tão conhecidas causaram uma reação
repentina, um arrepio contra o qual era incapaz de lutar. Consciente do efeito
que produzia, Luc sorriu satisfeito e cheio de arrogância, passando um dedo
pelos lábios dela e fitando-a direto nos olhos.
- Não estou preocupada...
- Ouça, Catherine, algum dia nossos caminhos terão de se separar - falou com
voz suave, como se dissesse algo tolo e sem importância. - Mas esse dia ainda
está muito longe.
Será que Luc tinha consciência do que fazia com ela, quando dizia coisas desse
tipo ? E, se sabia, por que se mostrava tão cruel? Com certeza usava os mesmos
métodos com os altos funcionários da empresa, estalando o chicote sobre suas
cabeças para mantê-los na linha.
Estava dizendo alguma coisa sobre cotas e ações, mas Catherine recusava-se a
ouvir. Só conseguia imaginar quanto tempo levaria até que Luc aprendesse que
nuca poderia comprar amor, nem com todo o dinheiro do mundo.
Sabia que, enquanto a atração que sentia por ela continuasse intensa, tudo
permaneceria como estava. Mas não podia contentar-se apenas com o desejo que,
certa vez, de forma tola e ingênua, acreditou ser fruto de emoções mais
profundas.
Nos dias em que Luc estava calmo e sorridente, preocupado apenas em viver a
vida e divertir-se, Catherine recebia todas as atenções. Mas o fato de não ter
sequer percebido que as ultimas semanas haviam sido um inferno para ela,
provava que o vinculo era apenas superficial.
De repente, foi obrigada a abrir mão da fantasia que começara a construir dois
anos atrás, apesar de todas as evidencias da realidade. Luc não a amava. Nunca
acordara no meio da noite para concluir que não seria capaz de viver sem
ela...e nunca chegaria a essa conclusão, porque não era verdade.
- Vai se atrasar - insistiu, desconcertada pela atitude estranha. Quando Luc
decidia ir embora, não costumava permitir que nada o retardasse.
Ele a puxou para mais perto, apertando-a contra o peito de maneira possessiva:
- Bella mia - murmurou em italiano, inclinando a cabeça para beijá-la com
sensualidade habitual e a experiência torturante que sempre a obrigava a ceder.
Movida pelo sentimento de culpa que a invadia, Catherine livrou-se do abraço
antes que ele pudesse perceber o calafrio que a percorria dos pés a cabeça.
- Não estou me sentindo bem - desculpou-se, apavorada pela possibilidade de
ceder mais uma vez.
- Por que não me disse antes? É melhor voltar para a cama e ficar lá
descansando - e pegou-a nos braços, levando-a até o quarto. Com um beijo suave
nos lábios, Luc a colocou sobre a cama. Analisou o rosto pálido e amedrontado
e, impressionado pela fragilidade daquela criatura, suspirou com irritação
antes de ameaçar: - Se isso é resultado de mais uma de suas dietas malucas, sou
capaz de perder a cabeça. Quando vai parar com isso? Não percebe que eu gosto
de você do jeito que é? Quer ficar doente? Não tenho paciência para essas
bobagens, Cathe!
- Não é nada sério - tentou tranqüilizá-lo, notando o quanto ele se mostrava
aborrecido.
- Trate de ir ao médico ainda hoje! - ordenou. - E se não for, eu vou ficar
sabendo. Vou deixar instruções com Stevens quando eu sair.
A referencia do guarda de segurança, que Luc dizia estar lá para protegê-la,
mas que, na verdade, devia vigiar cada um de seus movimentos, obrigou-a a
enterrar o rosto no travesseiro.
Não gostava de Stevens. Era muito formal e servil, e isso a intimidava.
- Mas, Luc...- tentou protestar.
- A propósito - interrompeu ele - como vai indo o segurança? Algum problema?
- Não, nenhum. Só pensei que não tivesse de ficar grudada nele o tempo todo.
Não foi por isso que transferiu Sam Kalston? - perguntou, agradecida por poder
mudar de assunto, apesar do tema escolhido ser quase incendiário.
Transferi Sam porque ele estava muito ocupado, flertando com você. Não sobrava
tempo para ser competente - afirmou.
- Isso não é verdade. Ele só estava tentando ser gentil, talvez amigável.
- Eu não pago um guarda para ser gentil e amigável. E se você o tratasse como
empregado, ele ainda estaria aqui - comentou, demonstrando irritação. - E agora
tenho que ir. Eu telefono de Milão.
Falava como se fosse lhe fazer um grande favor.
Na verdade, Luc telefonava todos os dias, independente de onde estivesse.
Catherine ficou onde estava, esperando que ele partisse e pensando no que
pretendia fazer. Sabia que, no dia seguinte, quando o telefone tocasse, o som
ficaria ecoando pelas salas vazias.
Por alguns instantes torturantes, examinou cada milímetro do espaço que costumavam
dividir. Sombrio e dinâmico, Luc era o inferno na terra para uma mulher frágil
de dependente. Durante toda a relação, Catherine nunca tivera uma discussão com
ele, porque sabia que não tinha chances de vencê-lo. Por meios limpos ou não, a
vitória sempre era dele. As tentativas para afirmar-se diante daquele homem
caíram por terra logo no inicio, diante de uma personalidade mais forte e
agressiva.
Luc estava entre os dez homens mais ricos do mundo. Aos vinte e nove anos, era
uma posição impressionante. Especialmente para alguém que começara do nada,
contando apenas com uma inteligência formidável nas ruas da Pequena Itália, um
bairro de Nova York. E continuava subindo. Era sempre o numero um e nunca abria
mão de uma possibilidade de triunfo. O poder era mesmo o grande afrodisíaco da
humanidade. Luc sempre acabava conseguindo tudo que queria. E para o inferno
com os prejuízos e danos que pudesse causar aos outros, desde que as
conseqüências não afetassem seu conforto e bem estar. Como precisara lutar muito
por tudo o que possuía, as aquisições mais fáceis não tinham valor nenhum.
O Lobo Solitário. Era como a revista Times o chamava num artigo recente, onde
se esforçavam por penetrar nos mistérios de um jovem de vanguarda cujos métodos
eram considerados nefastos pela grande maioria dos conservadores.
O tubarão era uma maquina de matar, muito eficiente dentro das restrições do
próprio campo de atuação. E os lobos matam pela vida, não por simples prazer ou
divertimento. Luc era considerado um animal terrestre e sedento de sangue
fresco.
Assim, era o mais perigoso entre todos, principalmente para os incautos, os
inocentes e os muito confiantes.
O brilhantismo não fora o único responsável pela construção de um império tão
vasto. A energia infinita e alto grau de inprevisibilidade , combinados a
inteligência, foram capazes de manter os concorrentes sempre atrás, num mercado
onde não há misericórdia para os perdedores.
Catherine podia ter dado ao jornalista a melhor descrição de Luc Santini: Um
homem duro, cruel, cínico e egoísta, cuja ambição tinha raízes profundas. Só um
tolo atravessaria o caminho de Luc... e só uma mulher sem noção do perigo
poderia confiar o coração aos cuidados de um homem como ele.
Fechou os olhos num súbito espasmo de angustia. Agora estava acabado. Nunca
mais veria Luc. Nenhum milagre seria capaz de fazê-la mudar de idéia. O
casamento estava fora de questão.
Sentindo-se só e desprotegida, cobriu o ventre pouco desenvolvido a mão e
compreendeu que Luc começara a perder sua lealdade e devoção no momento em que
suspeitou pela primeira vez que ela carregava um filho seu.
Uma espécie de instinto a prevenira sobre a possibilidade de a novidade ser
recebida como uma traição, um golpe premeditado, como se a gravidez pudesse
acontecer sem a participação dele. Pensara muito sobre contar a ele ou não.
Então, com medo de ser descoberta, passara a temer Luc Santini.
Afinal, quando ele decidisse se casar com alguém do mesmo nível social e
intelectual, uma noiva nascida para ocupar os altos postos da sociedade, não
iria querer nenhum empecilho, nenhum fantasma do passado capaz de evidenciar as
aventuras de um jovem irresponsável e inconseqüente.
Gelada e quase doente por ter de admitir a verdade que, até então, negava-se a
enxergar, enxugou as lagrimas e levantou-se.
Ele nunca saberia, e essa era a melhor atitude a tomar. Ainda bem que
conseguira convencer Sam, o antigo segurança, a ensiná-la o funcionamento do
sistema de alarme. Sairia pela entrada lateral, sem chamar a atenção de
Stevens.
E Luc? Sentiria saudade? Um soluço de dor escapou de sua garganta. Ele ficaria
furioso por ter de admitir um fracasso, por não ter percebido que Catherine
pretendia ir embora...
Mas não teria problemas para substituí-la. Não era uma mulher bonita e
especial. Alias, nunca conseguira entender o que podia ter atraído Luc.
Como podia ser triste por abandonar a vida que levava? Não tinha amigos, pois,
quando a discrição é necessária, os amigos são indesejáveis. Aos poucos, Luc a
isolara de tudo e todos, de forma que não tivesse outra alternativa senão
dedicar-se a ele inteiramente. As vezes se sentia só que falava alto consigo
mesma. O amor era mesmo uma emoção perigosa. Aos dezoito anos, não passava de
um garotinha simples e inocente. E agora, dois anos depois, não era muito
melhor, mas, pelo menos, já sabia que nunca mais devia construir castelos no
ar.
“Arrideverci, Luc, grazie tante”, escreveu no espelho com batom. Um gesto
teatral, a ultima nota daquela tragédia que chegava ao fim. Ele não teria
sequer o prazer de ler uma carta de cinco paginas, dizendo que ninguém mais
seria capaz de amá-lo com tanta intensidade e devoção.
Através de lições destrutivas e dolorosas, aprendera que Luc não dava tanto
valor aos sentimentos. Afinal, não tivera nenhum escrúpulo em usar o amor de
Catherine como uma arma contra ela mesma, manipulando suas emoções com cruel
habilidade, até que elas se transformassem nas grades invisíveis de uma prisão
quase intransponível.
O que está fazendo com meus livros?
Catherine afastou as mãos da caixa de papelão e ergueu o corpo, virando-se e
encontrando os pequenos olhos curiosos.
- Estou empacotando. Quer me ajudar? - convidou com esperança. - Podemos
conversar enquanto trabalhamos.
Daniel chutou o pé de uma cadeira, furioso:
- Não quero falar sobre a mudança.
- Ignorar não vai fazer com que deixe de acontecer - disse ela.
O garoto voltou a chutar a cadeira, as mãos nos bolsos, parecendo um adulto
irritado. Catherine contou até dez devagar. Mais um pouco e começaria a gritar
até o menino voltar a se comportar. Por quanto tempo seu filho insistiria em
tratá-la como a pior mãe do mundo?
Com um sorriso determinado, tentou de novo:
- As coisas não são tão ruins quanto está imaginando.
Daniel olhou para ela com ar incrédulo:
- Temos algum dinheiro? - perguntou
Surpresa com a questão, Catherine sentiu o rosto ficar vermelho:
- O que isso tem a ver com o que está acontecendo?
- Eu ouvi a mãe de John dizendo à sra. Winthers que não temos dinheiro porque,
se tivéssemos, teríamos comprado esta casa para nós.
Catherine teria estrangulado aquela mulher com prazer, por ter falado sobre
assuntos tão sérios na presença de uma criança.
Daniel tinha apenas quatro anos, mas era brilhante para sua idade e já entendia
muito bem o que acontecia a volta dele.
- Não é justo que alguém tire nossa casa de nós e venda para outra pessoa,
quando queremos ficar aqui para sempre.
A dor que via nos olhos do filho era como um
espinho cravado em seu coração. Infelizmente, não havia nada que pudesse fazer
para diminuir o sofrimento daquela criança.
- Essa casa nunca foi nossa - lembrou - E você sabe disso, Daniel. Harriet nos
deixou ficar aqui, mas decidiu que, quando morresse, a casa seria doada para
uma instituição de caridade. E as pessoas que cuidam dessa instituição querem
vendê-la para usar o dinheiro em...
- Mas essa casa é nossa! Onde vamos morar?
- Drew encontrou um apartamento para nós em Londres - disse outra vez,
repetindo a informação que ele já conhecia.
- Não posso cuidar do meu burrinho em Londres! - respondeu furioso. - Por que
não ir morar com Peggy? Ela disse que podíamos ir.
Catherine suspirou:
- A casa de Peggy não tem espaço para nós.
- Se quiser ir para Londres, vá sozinha! Eu não vou a parte alguma sem o
Clover! - gritou, recusando-se a deixar o burrinho para trás. - É tudo culpa
sua! Se eu tivesse meu pai, ele poderia comprar esta casa para nós como os pais
dos outros garotos! Aposto que ele podia ter evitado que Harriet morresse
também! Odeio você, porque não pode fazer nada!
E saiu batendo a porta. Com certeza ia esconder-se num dos muitos refúgios do
jardim. Lá ele ficaria sentado, chorando e esforçando-se para entender a dura
realidade do mundo dos adultos, que o levava a perder tudo o que possuía de
mais caro.
Tocou a carta do procurador em cima da mesa. Qual seria a reação de Daniel,
quando soubesse que nem mesmo as visitas à família de Peggy, na fazenda, seriam
possíveis?
Às vezes, como naquele instante, Catherine tinha a sensação de não saber como
lidar com o filho. Ele não era como as outras crianças. Tanto que, aos três,
aprendera varias palavras em alemão, num programa de televisão sobre idiomas.
Mas ainda era jovem demais para aceitar sacrifícios necessários.
A morte de Harriet o ferira muito e, agora, estava perdendo sua casa, o
bichinho de estimação, os amigos com quem brincava...em resumo, toda a
segurança dos únicos vínculos que possuía. Não era estranho que estivesse tão
apavorado e abalado. E como poderia dar a ele um pouco de confiança, quando
também estava morta de medo do futuro?
A convicção de que a catástrofe só estava esperando que virassem a próxima
esquina para atacar não a abandonava nem por um segundo. A morte súbita de
Harriet correspondia às piores imagens que podia criar. Um golpe cruel do
destino, que acabou com toda a felicidade e segurança de que desfrutavam.
E agora era como se estivesse sendo arremessada de volta ao ponto de partida,
de onde escapara há quase cinco anos.
Nessa época, sua vida estava uma bagunça, uma descida vertiginosa em direção a
um abismo negro e tenebroso. As possibilidades de futuro eram tão certas quanto
as de um camicaze. E, então, Harriet aparecera. Tão desvalorizada pelos que q
conheciam bem... Em meio a uma onda de irritação, Drew chegou a referir-se a
ela como uma encantadora deficiente mental. E foi essa mulher que a recolhera
no momento mais difícil, protegendo-a e orientando-a até que pudesse reassumir
o controle sobre os próprios passos.
Harriet tornou-se a figura mais próxima da imagem de mãe que Catherine nunca
chegou a conhecer.
Encontraram-se pela primeira vez num trem. E aquela viagem e aquele encontro
mudaram a vida de Cathe para sempre. Dividiam o mesmo compartimento, e a
senhora insistia em tentar iniciar uma conversa. Mas uma pessoa que estivera
trancada durante dois anos, apavorada e com medo até de respirar em publico,
não quer falar com ninguém. No entanto, a persistência daquela desconhecida
conseguira vencer algumas barreiras e, antes que percebesse, traída pela
intensidade das emoções represadas há tanto tempo, Catherine começou a contar
sua vida a Harriet.
Pouco depois sentiu-se embaraçada, ansiosa por ver-se livre da companhia da
mulher mais velha. Abandonaram o trem na mesma estação. Nada do que a pobre
Harriet dissera sobre ela ter tomado a decisão mais correta fazia sentido. Como
uma viciada, doente pela dependência prolongada da droga, Catherine saiu
desesperada atrás de um telefone, querendo ouvir a voz tão conhecida daquele
homem. Despediu-se da senhora atenciosa e correu em busca da única cabine
telefônica que conseguia ver, do outro lado do estacionamento lotado da
estação.
O que teria acontecido se tivesse conseguido fazer a ligação?
Qual seria a conseqüência do telefonema, o ultimo e imperdoável erro de uma
relação desastrosa desde o inicio?Nunca saberia a resposta. Na ânsia de
alcançar a cabine, passara correndo na frente de um carro, que não teve tempo
de brecar. Ficara no hospital durante os três meses seguintes, recuperando-se
dos ferimentos graves.
Muito tempo se passou até que pudesse reconhecer a voz doce e suave que parecia
ir e voltar, penetrando a muralha de dor e desorientação que a cercava. Era a
voz de Harriet.
Sabendo que Catherine não tinha família, a boa senhora permanecera o tempo todo
ao lado dela. Se Harriet não estivesse lá, talvez nunca mais fosse capaz de
sair daquela escuridão que a envolvia.
Antes mesmo do nascimento prematuro, Daniel tivera de lutar pela sobrevivência.
Quando veio ao mundo, já gritou por atenção demonstrando uma recuperação rápida
e uma saúde de ferro. Foi então que Catherine percebeu que, com os genes que o
filho carregava, as marcas da força e da determinação que certamente herdara do
pai, nem mesmo a colisão da mãe descuidada com um carro em alta velocidade
poderiam privá-lo do privilegio de viver.
- É um pequeno lutador - proclamou Harriet com orgulho, apreciando o papel de
avó substituta como só uma mulher muito sozinha seria capaz de fazer. Drew
amava a irmã mais velha, mas irritava-se com tantas excentricidades. E sua
sofisticada esposa francesa, Annettte, e os filhos adolescentes não tinham tempo
para a pobre senhora abandonada.
Voltando ao presente, Catherine observou a cozinha ampla e familiar. Ela mesma
havia costurado as cortinas que estavam nas janelas, pintado as prateleiras de
vermelho e arrumado a louça na cristaleira.
Aquela era sua casa, em todos os sentidos. Como poderia convencer Daniel de que
ele seria feliz num pequeno apartamento da cidade, se nem mesma acreditava
nisso? Mas...era a única opção que tinha no momento.
Uma batida suave na porta interrompeu seus pensamentos. Sem esperar pela
resposta, Peggy Downes entrou. Era uma mulher alta, por volta dos trinta anos,
de cabelos ruivos cortados de forma geométrica. Sentou-se em uma das cadeiras
perto da mesa e, surpresa olhou para a caixa de papelão:
- Não está sendo muito apressada? Ainda tem muito tempo até o dia da mudança.
- Não, não tenho - respondeu Catherine, mostrando a carta do procurador. -
Ainda bem que Drew ofereceu o apartamento. Mesmo assim, estamos com problemas.
Não posso ficar aqui até o final do mês, quando o apartamento será liberado
pelos atuais moradores.
- Meu Deus! Não vão esperar nem mais uma semana?
Catherine virou-se para cuidar da louça sobre a pia, torcendo para que a amiga
não começasse mais discurso sobre o absurdo de terem de acatar as ultimas
vontades de Harriet.
- Não temos nenhum direito sobre a casa - lembrou.
- Tem, sim! Tem direitos morais! E eu esperava que uma instituição de caridade
fosse mais benevolente para com uma mãe solteira! Está vendo? Estava certa!
Tudo isso é culpa da sua querida e boa Harriet!
- Peggy...
- Sinto muito, mas eu costumo falar claro - disse. Um comentário desnecessário
para quem conhecia a língua ferina daquela mulher. - Honestamente, Cathe, às
vezes penso que você foi posta no mundo só para ser explorada! Nem percebe
quando está sendo usada pelas pessoas... Que tipo de agradecimento recebeu por
ter perdido quatro anos de sua vida correndo atrás daquela velha maluca?
- Harriet nos deu um lar, quando eu não tinha nenhum lugar para onde ir. Não
tinha nada a me agradecer.
- Mas você cuidava da casa, fazia companhia a ela e ainda ajudava em todas
aquelas obras de caridade! - exclamou com tom de censura. - E o que recebeu em
troca? Um pontapé no traseiro! Aposto que aquela velha maluca não conhecia o
ditado que diz que a caridade começa em casa!
- Harriet foi a pessoa mais honesta e gentil que eu conheci em toda a vida.
As excentricidades de Harriet não pareciam irritar
Catherine,como acontecia com a maioria das pessoas. Na verdade, ela nem se
preocupava quando a velhinha falava sozinha, alto, ou quando fazia barulho,
esvaziando todo o conteúdo do porta-níqueis na bandeja de coleta da igreja. Não
reclamou sequer quando Harriet trouxera um bando de mendigos sujos para tomar
chá em casa e ofereceu o que tinham de melhor na despensa, para o mês inteiro.
O problema de Catherine era...Uma frase que Peggy sempre iniciava mas nunca
conseguia terminar com satisfação. Cathe era a melhor amiga que podia ter. Era
gentil, generosa e não tinha uma gota de egoísmo. Como poderia criticá-la por
ter tantas qualidades? Infelizmente, essas mesmas qualidades eram responsáveis
pela infelicidade que vivia no presente.
Toda vez que fitava os olhos azuis no rosto adorável da vizinha, Peggy
imaginava uma criança sozinha no mundo dos adultos. Havia algo de tão inocente
na tendência de Catherine de ver apenas o lado bom das pessoas e levá-las a
serio, algo de tão indefeso sobre sua invariável visão otimista do mundo, que
estremecia ao imaginá-la sozinha numa cidade como Londres.
Além de uma ouvinte maravilhosa, era uma presa fácil para qualquer historia
triste que chegasse a seus ouvidos. Não sabia dizer não quando alguém pedia um
favor. Aquela cozinha costumava ficar cheia de pedintes, mães a procura de
alguém para cuidar dos filhos por algum tempo, ou para alimentar os animais de
estimação enquanto estivessem viajando. Fosse quem fosse o necessitado, sempre
encontraria aquela mão estendida.
Mas quando retornavam os favores? Bem poucos, pelo que Peggy sabia e
acompanhava.
- Harriet devia ter deixado alguma coisa para você - insistiu, inconformada.
- E como acha que Drew e a família reagiriam?
- Drew tem bastante dinheiro.
- A Huntingdon’s é uma empresa pequena, e ele não é nenhum ricaço.
- Tem uma boa casa em Kent e um apartamento no centro de Londres. Não acha que
é o bastante?
- Mas os negócios não tem andado muito bem. Drew já foi obrigado a vender
algumas pequenas propriedades e, embora ele não admita, deve estar desapontado
com o testamento da irmã. Esta casa vale uma pequena fortuna, um dinheiro que
seria muito útil para a empresa.
- Eu sei. E quando terminasse o processo de divorcio, Annette arrancaria tudo
dele.
- Ela não quer o divórcio.
- É claro que não quer. Ela já tem um amante. Seria a parte mais prejudicada,
se o caso fosse parar num tribunal.
Catherine, foi buscar um pouco de chá, pensando nas razões da intolerância de
Peggy quando o assunto era infidelidade conjugal. Com certeza ainda estava
magoada com o fim do próprio casamento. Mas o marido de Peggy era um
mulherengo, um caso extremo que não podia ser comparado ao de Annette.
Problemas nos negócios e uma dupla de adolescentes difíceis acabaram por gerar
uma crise na união dos Huntingdon. Annette tivera um romance com outro homem, e
Drew ficou arrasado.
Resistindo aos apelos da esposa para tentar desculpá-la pelo deslize, ele foi
direto ao advogado e deu inicio ao processo de divórcio.
É estranho como as pessoas reagem quando atravessam uma crise. Catherine podia
jurar que Drew acabaria perdoando e esquecendo, mas o tempo provou que estava
enganada.
- Espero que eles resolvam todo esse problema antes que seja tarde - comentou
Catherine.
- Não sei por que ele aceitaria uma reconciliação. Só tem cinqüenta anos e
ainda é muito atraente...
- É acho que sim. - De repente, Catherine percebeu que nunca prestara atenção
ao fato de o irmão de Harriet ser um homem atraente.
- Um homem que dever ter coisas mais interessantes para fazer nos finais d
semana além de vir até aqui para brincar com Daniel - disse Peggy, com
casualidade estudada.
- Acho que está meio perdido, sem a família - sorriu ela, inconsciente da
ironia da amiga.
- Nunca pensou na hipótese de Drew ter outros interesses por aqui?
- Não sei...Do que está falando?
- Ah, pelo amor de Deus! Será que vou ter de explicar? O comportamento dele no
funeral foi uma prova decisiva, Cathe! Se você tentasse levantar alguma coisa
mais pesada que uma xícara de café, ele saía correndo para ajudá-la. É lógico
que está apaixonado por você!
- Apaixonado...por mim? Nunca ouvi nada mais ridículo!
- Posso até estar enganada, mas...
- É claro que está enganada! - afirmou, vermelha de vergonha e raiva.
- Tudo bem, não precisa ficar nervosa - Peggy suspirou. Mas eu andei
conversando com ele no funeral. Queria saber por que foi arrumar outra velha
maluca para tomar conta...
- Peggy, a sra Anstey é avó dele!
- E daí? Sinto muito, Cathe, mas desde que a acompanhei até aquele apartamento
e vi o rosto frio daquela mulher, não consigo deixar de pensar nisso. Tinha que
falar com ele para tentar entender.
- Peggy, como pôde? Só tenho de fazer as compras e preparar a comida para
aquela pobre senhora! Não é muito em troca de um apartamento alugado por uma
ninharia.
- E foi isso mesmo que me chamou a atenção. De qualquer maneira... - e
suspirou, desanimada - Drew me informou que não tenho com que me preocupar,
porque ele acha que você não vai ficar lá por muito tempo. E agora, por que
acha que ele disse isso?
- Talvez porque esteja certo de que a Sra Anstey não vai me aprovar - e parou,
pensando se devia ou não agradecer a Peggy por ter fornecido mais um dado com o
qual se preocupar.
A vizinha estava com a mão sobre a carta do procurador e tinha uma ruga
profunda no meio da testa.
Se tem mesmo de mudar esta semana, não poderá ir para casa comigo, não é? -
perguntou, frustrada. - Eu estava tão ansiosa, tão contente com a viagem à
fazenda...
- Pode estar certa de que Daniel também não vai gostar da mudança de planos.
- Ei! Por que não pensei nisso antes? Ele pode ir comigo.
- Sozinho?
- E por que não? Meus pais adoram o garoto! E, quando voltarmos, você já estará
com o apartamento arrumado e com jeito de um lar. Eu me senti tão culpada por
não poder fazer nada para ajudar - confessou. - Essa é a solução perfeita!
- Não sei...Daniel pode dar trabalho...
- Somos amigas, não somos? Vai ser melhor para ele. Não vai estar aqui quando
levar Clover para o abrigo de animais e nem vai ter de dormir no apartamento de
Drew no meio do caminho. Ele já me contou que não gosta muito daquela criada
dos Huntingdon...
Daniel não gostava de ninguém que o contrariasse. Também não apreciava ser
tratado como uma criança, o que, infelizmente para ele, ainda era. E também
odiava ser chamado de bonitinho, o que também era uma verdade.
Na verdade, a única pessoa por quem Daniel demonstrava carinho, além da mãe,
era Peggy.
- Confia em mim? - perguntou a vizinha, disposta a convencer Catherine.
- É claro que sim.
- Então está resolvido!
Cathe pensou em dizer que nunca se afastara do filho antes, nem mesmo por uma
noite, mas desistiu. O garoto amava a fazenda. Nos últimos anos, costumavam
passar vários finais de semana naquele lugar, com Peggy e a família. Pelo
menos, agora um dos problemas estava resolvido.
Seis dias depois, Daniel acenava para a mãe com entusiasmo e entrava no carro
de Peggy.
- Se ele der trabalho, telefone - preveniu Catherine.
- Telefonar para onde? - perguntou o menino. - Nós não temos mais casa,
lembra-se?
E partiram.
Catherine entrou para terminar de arrumar as coisas.
Esvaziava gavetas e empilhava caixas, que enxergava através das lagrimas. Não
era muito para quatro anos. As caixas ficariam na garagem de Peggy até a
próxima semana, quando um outro vizinho as levaria para o apartamento.
Envergonhada, enxugou os olhos. Afinal, Daniel ia ficar fora por dez dias, não
dez meses!
Drew foi apanhá-la na estação ferroviária. Era um
homem atraente, de traços bem-feitos e com ar tranqüilo de quem confia em si
mesmo.
Primeiro vamos deixar as malas no apartamento.
- Primeiro? - perguntou ela.
- Eu reservei uma mesa para o almoço no Savoy - explicou com um sorriso.
- Está comemorando alguma coisa?
Catherine já havia almoçado com Drew uma dúzia de vezes, mas ele nunca escolhia
lugares tão finos.
- Minha empresa está prestes a fechar um contrato muito importante - informou
com orgulho. - Vou para a Alemanha hoje a tarde. E daqui a dois dias já devo
estar com o documento assinado.
- Que notícia maravilhosa!
- Para ser franco, aconteceu na hora certa. Mais um pouco e a Huntingdon´s
estaria falida. Mas não é só isso que vamos comemorar. E a sua mudança para
Londres?
- Quando você vai voltar da Alemanha? - perguntou, depois de deixar as malas no
apartamento.
- Em dois dias. Mas eu pretendo ficar em um hotel.
- Um hotel? Por que?
Quando se está no meio de um processo de divorcio, todo o cuidado é pouco,
Catherine. Ainda bem que tudo isso estará acabado no próximo mês. Pode ser
excesso de precaução, mas não quero ninguém apontando o dedo para você e a
acusando de ter alguma coisa a ver com a minha separação.
Catherine estava embaraçada. Ao aceitar a oferta para permanecer no
apartamento, não pensara na situação difícil que estaria criando para ele.
- Sinto muito, Drew... Não pensei que...
- É claro que não pensou. Você não tem a cabeça suja como a maioria das
pessoas. Assim que esse processo terminar, não teremos mais de nos preocupar
com as más línguas.
O comentário só serviu para aumentar o constrangimento. Era como se insinuasse
uma intimidade que, na verdade, nunca existira. Catherine respirou fundo e
disse a si mesma que a culpa era de Peggy. Não fosse por ela, agora não estaria
encabulada, imaginando coisas que nunca existiam. Afinal, Drew era apenas um
bom amigo, que se tornara mais próximo depois da separação de Annette.
O garçom trouxe os cardápios. Catherine fingiu estar examinando com atenção as
diversas possibilidades de escolha, mas, na verdade, não sabia o que estava
escrito no papel fino e bem encadernado. Portadora de dislexia, um distúrbio
neurológico que causa grandes dificuldades para ler e escrever, toda vez que
tentava compreender o significado de um página impressa, só conseguia ver um
amontoado de letras embaralhadas e sem nenhum sentido.
Acostumada a lidar com o problema desde criança, já sabia como agir em tais
situações.
- Vou querer carne - disse
Pelo menos era seguro. Todos os cardápios do mundo possuíam pratos com carne.
- Ótimo! Vou pedir o mesmo para mim.
Pronto. Como sempre, conseguira escapara do constrangimento de ter de dar
maiores explicações.
Enquanto Drew conversava com o garçom, Catherine teve a sensação de ter visto
um vulto perto da porta, um homem alto e moreno.
Virou-se depressa, mas ele não estava mais lá. Irritada, disse a si mesma que
teria de parar com isso de uma vez. Não podia sentir calafrios e perder o
fôlego todas as vezes que via um homem alto e moreno.
Harriet costumava dizer que era uma questão de tempo. Um belo dia, quando for
se deitar, vai perceber que não pensou nele. Parecia fácil, mas não era. Um dia
tem vinte e quatro horas, cada uma dividida em sessenta segundos. Quanto tempo
havia passado, desde a primeira vez em que conseguira esquecer por algumas
horas? Quantas noites, desde a ultima que passara acordada, torturada pela
força das emoções que tentava sufocar?
Finalmente conseguira construir uma parede na memória; atrás dela, enterrara
dois anos de vida. Na frente, às vezes ainda se sentia como se vivesse pela
metade...
- Algum problema?
Sobressaltada, Catherine forçou-se a sorrir:
- Não, eu estou bem. Só tive a impressão de... Nada, deixe para lá.
- Agora que estamos em Londres, podemos nos ver sempre - disse Drew, tentando
tocar a mão dela com os dedos. - Estou tentando dizer que...Bem, acho que estou
apaixonado por você.
Catherine retirou a mão apressada e derrubou o copo de vinho, molhando a toalha
da mesa e as roupas de ambos. Envergonhada, desculpou-se e tentou encontrar um
lenço dentro da bolsa, mas o garçom se aproximou e limpou tudo com habilidade.
Encabulada, desejara estar em qualquer lugar, menos ali, suportando o olhar
ansioso e cheio de esperança de Drew.
- Só queria que soubesse o que sinto - disse ele.
- Eu...eu não sabia...nem imaginava...- foi tudo o que pôde dizer.
-Pensei que tivesse percebido, mas estou vendo que não demonstrei como devia.
Catherine, não fique tão perturbada! Não estou pedindo nada. Acho que fui
impaciente e inoportuno, não é? Por favor, me desculpe.
Estou me sentindo como se tivesse interferido no seu casamento com Annette -
manifestou com ar de culpa.
- Isso é absurdo! Só comecei a descobrir meu interesse por você depois que me
separei dela!
- Mas, se eu não estivesse por perto, talvez pudesse voltar e...Drew, você é um
ótimo amigo, mas...
Pousando a mão sobre a dela, ele interrompeu:
- Não estou esperando nenhuma explicação, Cathe. Nós temos todo o tempo do
mundo. Para que precipitar os fatos?
É claro que percebia que discutir o assunto naquelas condições só serviria para
apressar a derrota.
Estavam começando a comer, quando Catherine ouviu a voz.
Profunda e firme, com aquele sotaque inconfundível. Virou a cabeça
imediatamente, abalada demais para pensar no que fazia.
Arregalou os olhos, incapaz de acreditar no que via. Tremula, apavorada e sem
saber como reagir, tentou controlar o ritmo da respiração para não desmaiar.
Luc!
Meu Deus...Luc! Então era ele! O perfil perfeito, a tez morena como a de um
cigano, o porte realçado pela luz forte que entrava pela janela às suas costas.
Gesticulava, talvez tentando provar algum ponto aos dois companheiros.
Era terrível, mas não conseguia tirar os olhos dele.
E Luc estava virando-se em sua direção! Olhou direto para ela. Nenhuma
expressão. Nenhuma reação.
Catherine não podia respirar. Estava condenada a imobilidade, apesar de todos
os sentidos ordenarem que se levantasse e saísse correndo, que fugisse e só
parasse quando o perigo já não existisse.
Luc reagiu primeiro. Afastou o olhar e falou alguma coisa a um dos
companheiros, que se levantou imediatamente e afirmou com a cabeça.
- Está aborrecida, não é? - perguntou Drew. - Eu não devia ter falado nada.
Catherine fechou os olhos e tentou recuperar o equilíbrio.
Voltou a ver as cores e a ouvir o murmúrio de vozes em torno de si. Uma coisa
continuava inalterada e tinha de admitir: quando olhava para Luc, não havia
nada nem ninguém que pudesse atrair sua atenção. Suava frio.
- Catherine...
Só então lembrou- se do homem que a acompanhava.
- Oh, desculpe, Drew...Estou com um pouco de dor de cabeça - murmurou. - Se me
der licença, vou até o banheiro.
Levantou-se e caminhou com passos incertos, agradecida por não ter de passar
pela mesa de Luc. Andar pelo salão era como atravessar uma ponte sobre um mar cheio
de tubarões. Uma parte dela esperava que uma mão a segurasse pelo ombro a
qualquer instante. Conseguiu chegar ao banheiro e deixou a água fria correr
sobre os pulsos.
Enxugou as mãos e olhou para a aliança que costumava usar em um dos dedos, na
esquerda. Presente de Harriet. Todos, exceto Peggy pensavam que era viúva.
Harriet espalhou a mentira antes que ela saísse do hospital. Não podia
desmenti-la e fazer a vizinhança acreditar que se tratava de uma mentirosa.
Não gostava da idéia de passar pelo que não era, mas sabia que, sem a historia
inventada por aquela boa senhora, não seria aceita pela comunidade com a mesma
facilidade.
O estomago doía. Forçou-se a respirar fundo e manter a calma. Por que entrar em
pânico? Com Luc por perto, seria a pior alternativa. E tinha de recompor-se,
porque não poderia ficar trancada no banheiro para sempre.
- Acho que vai chover - disse a Drew ao retornar,
tomando o cuidado de não olhar a direita ou a esquerda - Sempre tenho dor de
cabeça quando o tempo vai mudar.
Falava sem parar, abordando assuntos sem importância. Se Drew estava confuso
com tanta eloquêncica, pelo menos não notava que a companheira não havia tocado
na comida.
Luc a observava. Podia sentir, mesmo sem virar a cabeça para comprovar. Não
suportava mais ficar ali parada, esperando por acontecimentos imprevisíveis.
Era como tortura chinesa, lenta e incessante. O medo inicial começou a ceder
espaço a raiva.
Luc era intocável. E era injusto permanecer assim, depois de todas as
cicatrizes que deixara nela. Não existia justiça no mundo, pelo menos não no
que ele habitava, crescendo e invadindo todos os espaços, como uma planta
tropical. Podia ser cortada, mas voltava a crescer, duas vezes forte e
invasiva.
E algum dia...de alguma maneira...uma mulher acabaria penetrando a armadura.
Tinha de acontecer. E então ele aprenderia o que é sofrer por alguém. Essa
crença era a única coisa que protegia Catherine do risco de deixar-se abater
pela amargura.
Imaginava Luc humanizado pelo sofrimento, suplicando e chorando pelo amor de
alguém...e então voltava a realidade, incapaz de suportar a própria fantasia.
Mexia o café como um autônomo. A mente estava confusa, perdida em algum lugar
entre o passado e presente. Era apenas mais um nome na lista de Luc Santini.
Gostasse ou não, tinha de aceitar os fatos e conviver com a realidade.
- Eu vi - disse Drew, colocando a observação no meio da conversa inconseqüente.
- Como? - perguntou ela, confusa.
- Luc Santini. Não tirou os olhos de mim o tempo todo.
Então Drew conhecia Luc! E por que a surpresa? Mesmo pertencendo ao grupo do
inferiores, Drew atuava na mesma área de Luc. A Huntingdon´s também era uma
industria eletrônica, fabricante de componentes para computadores.
- E isso é... importante? - perguntou.
- Muito. Vai me ensinar a não dar o passo maior que as pernas. Fiz alguns
negócios com Santini, mas foi há muito tempo. Mesmo assim, acho que podia ter
me cumprimentado. E, no entanto, limitou-se a ignorar minha presença, deixando
bem claro que estava me reconhecendo.
Isso era verdade. Luc era dono de uma memória invejável nunca esquecia um
rosto, mesmo que o visse uma única vez.
Culpada, compreendeu que Luc não fora cumprimentar Drew por sua causa. Não
podia fingir que não o conhecia, porque todos sabiam quem era o grande Santini.
-È um caráter fascinante - opinou Drew - Pense só nos riscos que dever ter
corrido para chegar onde está hoje.
- Pense na esteira de sofrimento que deve ter deixado paraatrás de si...
- Sim, com certeza. Que eu saiba, ele só escorregou uma vez. Deixe-me ver...há
uns quatro ou cinco anos. Não sei o que aconteceu, mas o homem dava a impressão
de ter perdido o rumo...
Com certeza provocara alguém mais esperto que ele e perdera a batalha. Pobre
coitado de quem se atrevera...Nesse ponto, Luc era muito pratico: olho por
olho, dente por dente. A revanche certamente fora terrível.
Quando deixavam o restaurante, Drew perguntou em tom de arrependimento:
- Fiz papel de tolo, não foi?
- È claro que não! - garantiu Catherine.
- Vou ter de voltar ao escritório. Quer que eu apanhe um táxi para você?
- Não obrigada. Vou caminhar um pouco.
Estava envergonhada por não ter enfrentado a situação com mais tato, mas a
combinação da declaração de Drew com a presença de Luc, surgindo do horizonte
como um navio pirata, havia sido mais do que podia suportar.
- Catherine! - Antes que ela pudesse fazer alguma coisa, Drew beijo-a nos
lábios rapidamente - Algum dia vou tomar coragem e pedi-la em casamento, goste
ou não. Seu marido morreu há quase cinco anos, não pode ficar sozinha, cultivando
as lembranças de um fantasma para sempre. E eu sou um homem persistente.
E foi embora, andando depressa em direção contraria à dela...
Catherine sentia as lagrimas escorrendo pelas faces. A emoção do dia fora
demais para quem já estava descontrolada e abalada com uma serie de
acontecimentos. Drew era um homem tão gentil e atencioso...e ela não passava de
uma fraude. Não era a mulher que todos acreditavam que fosse, ainda chorando
pela morte de um marido jovem e pelo fim prematuro de um casamento feliz. Mais
cedo ou mais tarde, teria de tirar a mascara.
E Drew saberia de toda a verdade. Por dois anos, fora apenas um objeto de uso
de Luc Santini. Mantida e vestida em troca de prazer que ele exigia com
freqüência. Luc nunca confundira sexo com amor. Esse erro era exclusivo dela.
Nunca fora levada para um passeio ou para um jantar. Nunca fora apresentada aos
amigos, nem mesmo aos mais íntimos. Não possuía a categoria necessária para
tanto. Nem a educação, como ele insistia em lembrá-la.
Mesmo agora, depois de tanto tempo, as lembranças eram como acido, queimando e
ferindo em profundidade.
A vida era feita de escolhas. E, aos dezoito anos,
Catherine fizera uma seria delas. Ou, pelo menos, pensara que estivesse
escolhendo. Na verdade, todas elas haviam sido feitas por alguém, em seu lugar.
O amor podia ser uma arma fatal, quando a mulher em questão não passa de uma
garota insegura. Antes de conhecer Luc, nunca imaginara que amar alguém pudesse
ser um erro. Mas podia. Se essa pessoa transformasse seu amor numa prisão,
estaria cometendo um erro do qual se arrependeria pelo resto da vida.
Desde cedo, Catherine quis ser amada. Era como uma bomba relógio, programada
para autodestruir-se. Poucas horas após o nascimento, sua mãe a abandonara. O
pai nunca fora encontrado. Crescera num orfanato, onde era apenas mais uma
entre tantas. Sonhadora, alimentava fantasias sobre a mãe desconhecida que
voltaria para buscá-la. Quando perdeu as esperanças, nas adolescência, passara
a sonhar com uma pessoa ardente.
Saiu do orfanato aos dezesseis anos e passou a trabalhar como empregada
domestica na própria escola, que foi fechada dois anos depois. Consegui um
emprego de recepcionista numa pequena galeria de arte em Londres, de
propriedade de um jovem casal que fazia donativos constantes ao orfanato.
Recebia o suficiente para sobreviver, apesar da disposição constante para
trabalhar por horas a fio, sem reclamar. Quando os empregados iam embora, à
noite, era ela sempre a escolhida para ficar e fechar as portas.
E numa noite úmida de inverno, quando já estava prestes a sair, Luc apareceu.
Estava hospedado num hotel próximo e caminhava pela rua sem destino, passeando.
Foi então que Catherine fez sua primeira escolha, enfeitiçada por um sorriso
encantador: decidiu fechar a galeria mais tarde.
Enquanto acalentava as lembranças, Catherine continuava andando pelas ruas de
Londres. E, de repente, viu a limusine parando, poucos metros adiante. A porta
de trás do carro foi aberta, e Luc surgiu no meio da calcada, imponente, com
toda a energia que costumava desprender em torno de si.
- Posso oferecer uma carona?
CAPITULO II
Horrorizada e pálida, Catherine gaguejou:
- Não...não estou indo a lugar nenhum...
- Está só passeando?
- É... Como soube onde eu estava?
Luc limitou-se a encolher os ombros e sorrir.
- Como? - insistiu ela.
- Mandei que a seguissem desde o restaurante.
Então era isso. Seria mesmo capaz de acreditar que esse segundo encontro não
passava de uma coincidência? Que ele a deixaria partir sem uma única pergunta?
Um carro parou atrás da limusine e dois seguranças desceram. Como cães de
guarda eficientes, um deles parou perto de Luc, enquanto o outro procurava uma
posição estratégica no final da rua. A cena era quase irreal, e Catherine não
pôde deixar de lembrar do mundo diferente que havia habitado nos últimos quatro
anos.
- Por que fez isso? - murmurou.
- Talvez porque queira recordar os velhos tempos. Não sei...Impulso? Acha que é
uma boa explicação?
Num movimento automático, ela retrocedeu alguns passos antes de comentar:
- Você não é uma pessoa impulsiva.
- Por que está tremendo? - e aproximou-se.
Catherine recuou até encostar na grade de um portão.
- Por que você apareceu do nada e me assustou.
- Mas você adorava surpresas!
- Pode não ter notado, mas eu mudei muito.
Não sabia de onde tirara coragem para responder, mas arrependeu-se em seguida.
Luc chegou ainda mais perto e a segurou pelo braço, apertando seu pulso com
força assustadora.
- Mudou mesmo? - perguntou em tom ameaçador.
Estava tão perto que podia tê-lo esbofeteado, mas não ousava sequer erguer os
olhos. Bem vestido e confiante, Luc era o retrato vivo de um homem bem-sucedido
e poderoso. E, no entanto, o que Catherine percebia não tinha nada a ver com
refinamento ou gentileza, características esperadas para alguém em tal posição.
Era algo apavorante, uma intimidação silenciosa que abalava o pouco de
equilíbrio que ainda conseguia manter.
- Não temos mais nada a conversar depois de tanto tempo - apressou-se a dizer,
respondendo à questão silenciosa.
Lentamente, Luc passou um dedo pelo rosto dela, até alcançar os lábios trêmulos
e descoloridos. A pele queimava e o corpo inteiro foi consumido por uma subida
onda de calor.
- Relaxe - disse ele, um segundo antes de Catherine virar a cabeça com
violência, impedindo o contato mais intimo - Eu não quis assustá-la. Não somos
inimigos, somos?
- Eu...estou com pressa...
-E não quer uma carona? Tudo bem. Eu posso caminhar com você...Ou podemos
entrar no carro e passear um pouco. Tenho tempo de sobra.
- Por que? - quis saber, sentindo o pânico aumentar. - O que está querendo?
- Fique tranqüila, não estou pensando em repetir o que costumávamos fazer nos
congestionamentos de transito - sorriu, divertindo-se com o rubor que viu no
rosto dela. - O que acha que eu quero? Não pensou que eu posso estar curioso,
tentando compreender coisas do passado?
- Que coisas?
- Você. E o que mais poderia ser? Pensou que eu estivesse aqui, no meio da rua,
só para me divertir?
Catherine mordeu o lábio, notando a irritação crescente na voz de Luc. Há
alguns anos ele teria dito “entre no carro”, e a discussão estaria encerrada.
Mas agora era diferente.
Decidida, ergueu o queixo e passou por ele, parando alguns passos depois. Não
podia ceder e destruir o futuro que levara quatro anos para construir.
Pretendia ir embora, mas um dos seguranças barrou-lhe a passagem e abriu a
porta da limusine. Estava vencida. Não podia enfrentar Luc Santini ali, no meio
da rua. Era melhor atender e tentar resolver o que fazer depois.
Entrou e acomodou-se no banco de couro, mantendo-se o mais afastada dele que
podia. Luc sentou-se a seu lado e, assim que a porta foi fechada, a agonia
invadiu-a.
- Realmente, Catherine...é tão difícil assim? Veja, vamos tomar um drinque e
ralaxar, está bem?
-Está bem...- concordou, lutando para manter a calma.
Mantinha a cabeça baixa e as mãos espalmadas sobre
o tecido da saia, que fingia ajeitar. A pele queimava por causa da proximidade
cada vez maior, especialmente quando ele se inclinou para abrir a pequena porta
do bar. Quando Luc voltou a erguer o corpo, Catherine tomou consciência do
quanto ela ainda a perturbava. Toda a dor e a angustia de anos atrás voltaram
com forças assustadora.
No silencio que os cercava, tinha quase certeza de que o coração disparado, era
ouvido a distancia, traindo suas emoções mais profundas. Apavorada, notou que
lembranças e imagens sensuais afastavam todos os outros pensamento de sua
mente.
Se a memória estava cedendo aos encantos do grande Santini, o corpo mostrava-se
disposto a acompanhar.
Pegou o copo que ele estendia e foi obrigada a erguer os olhos, sentindo que
sua mão estava segura entre os dedos longos e bronzeados. Era um jogo de poder,
um jogo bobo se confrontando com os padrões normais daquele homem, mas era o
suficiente para obrigá-la a lutar. Tomou vários goles da bebida. Odiava aquele
gosto, mas não era a primeira vez que bebia algo detestável por acreditar que
aquilo era sofisticação.
- Sente-se melhor? - perguntou Luc. - E então? Está morando em Londres?
- Não - respondeu apressada - Estou apenas de passagem. Eu moro em
Peterborough.
- E casada... Deve ser motivo de grande satisfação para você. A aliança no dedo
da mão esquerda pesava como uma pedra.
Mesmo assim, decidiu ignorar o tom sarcástico na voz dele.
- É... - disse.
- Quando se casou?
- Há quatro anos - e tentou mais um gole da bebida, buscando forças para a
próxima etapa da luta.
- Pouco tempo depois...
O cérebro registrou o erro cometido.
- Foi um romance muito rápido - explicou com embaraço.
- Aposto que sim. Não quer falar sobre ele?
- È uma pessoa muito comum. Tenho certeza de que não vai se interessar pela
história...
- Pelo contrário. Vou ficar fascinado. Seu marido não tem nome?
- Luc, eu...
- Ah, pelo menos lembra do meu...Estou lisonjeado.
Catherine baixou a cabeça:
- Paul. O nome dele é Paul - inventou, sorrindo apesar da tensão. -
Honestamente, duvido que queira ouvir sobre isso.
- Está feliz morando em... Onde mesmo? Peterhaven?
- Sim, é claro que estou.
- Pois não parece.
- As aparências enganam - disse com desespero.
- Tem filhos?
Catherine estremeceu, incapaz de evitar um ligeiro desconforto.
- Não, ainda não.
Luc estava muito quieto. Mesmo no auge da própria confusão, ela pôde notar. E
então, de repente, ele sorriu:
- O que estava fazendo com Huntingdon?
A pergunta fora do contexto da conversa a surpreendeu.
- Eu...encontrei com ele fazendo compras - hesitou. E em seguida, com uma idéia
repentina e que considerava brilhante, concluiu: - Meu marido trabalha para
ele.
- Parece que teve um dia cheio de coincidências. O inesperado é sempre divertido,
não acha?
- Eu...realmente tenho de ir... - gaguejou, deixando o copo no barzinho. -
Foi...encantador encontrá-lo.
- Sabia que diria isso - murmurou ele. - Cathe, do que tem medo?
- Medo? - repetiu com voz insegura. - Não tenho medo de nada - e respirou
fundo, disposta a pôr um ponto final no tormento. - Só acho que não temos mais
nada a conversar.
- Pois eu prevejo um longo dia para nós.
- Não tenho que responder às suas perguntas - disse ela, lutando para conter um
pequeno tremor na voz. Precisava lutar, enfrentá-lo...Essa era a única maneira
de vencer Luc.
- Pense nisso como uma demonstração de educação e civilidade - insistiu. - Há
quatro anos e meio você sumiu, como se estivesse evaporado. Sem uma palavra, um
bilhete, nada! Eu gostaria que me desse as explicações agora.
- Em resumo, me envolver com você foi a coisa mais estúpida que eu podia ter
feito.
- E me dizer isso agora pode estar sendo a segunda grande estupidez. Cathe,
você dormiu comigo na noite anterior ao seu desaparecimento. Fez amor comigo,
sabendo que ia embora...
- Foi o ...hábito - balbuciou.
E então sentiu que ele a segurava pelo pulso e a puxava para mais perto:
- Hábito? - perguntou em voz alta, incrédulo.
Sentindo a boca seca, Catherine limitou-se a afirmar com a cabeça,
encolhendo-se diante da fúria que lia nos olhos normalmente inexpressivos.
- Está me machucando - murmurou.
Luc relaxou a tensão dos dedos e soltou-a.
- Meus parabéns pela brilhante representação. O hábito deve inspirá-la com
entusiasmo impressionante.
Catherine ficou vermelha e encabulada, invadida pelas lembranças que tentava
afastar para sempre. Recordar era como odiar a si mesma. Naquela noite, sabia
que nunca mais estaria com Luc. Acordou-o de madrugada, tocada por uma paixão
selvagem que só encontraria consolo na satisfação física.
Amar alguém por quem não se é amado é o tipo mais cruel de sofrimento.
- Eu não me lembro - mentiu, detestando-o tanto que sentia-se machucada pela
força das emoções contidas. Ele a ferira no passado e agora tentava feri-la novamente.
Ainda pagava o preço alto por tê-lo amado com tanto ardor.
- Hábito - repetiu ele em voz baixa.
E então percebeu que, sem querer havia atingido Luc em sua vaidade, provocando
a revolta de um homem que nunca era desafiado pelo sexo feminino. Não era a
única mulher a rastejar por causa dele. Muitas outras perdiam a noção de
ridículo só para chamar sua atenção. E iam ainda mais longe, tentando
segurá-lo. No entanto, o pensamento não servia para consolá-la.
As mulheres eram apenas brinquedos nas mãos de Luc Santini.
Obtidas com facilidade e postas de lado com maior facilidade ainda. Nas
escalada rumo ao poder, Luc nunca perdera um grama de energia com uma mulher.
Elas possuíam um lugar em sua vida...a vida de um homem sensual e atraído pelos
prazeres físicos.
Mas nunca conseguiam um espaço naquela mente, nunca ficavam entre ele e sua
brilhante inteligência.
- Tenho que ir - repetiu Catherine, apesar da relutância em sair do carro.
- Como quiser...- ele comentou, permanecendo imóvel, observando-a com frieza
desconcertante, enquanto ela apanhava a bolsa e saltava, oscilando por alguns
instantes sobre os saltos altos que costumava usar.
Evitando encará-lo, fechou a porta e atravessou a rua, sentindo-se doente.
Todas aquelas mentiras para proteger Daniel. Não que Luc pudesse representar
uma ameaça para o menino, mas sentia-se mais segura sabendo que ele ignorava a
existência do filho. Luc nunca admitia complicações e embaraços, e um filho
ilegítimo significava as duas coisas.
Confusa, balançou a cabeça. Luc fora tão...frio! Não saberia dizer o que
esperava, mas estava certa que não era nada daquilo.
No savoy, poderia jurar que ele queimava de raiva. É claro que não passava de
imaginação. Afinal, por que estaria furioso? Quatro anos representavam muito
tempo... Tempo demais para um homem que nunca se preocupara com ela.
Não pôde deixar de lembrar o primeiro encontro. O
simples fato de vê-lo entrando na galeria já fora o bastante para deixá-la
atordoada. Era a primeira vez que via um homem tão atraente, sofisticado e
excitante.
Na primeira vez em que Luc sorriu para ela, fez com que Catherine até se
esquecesse do que estava dizendo.
E pouco depois partiu, sem dizer sequer seu nome. Antes de sair, ele ainda se
virou para comentar com tom casual:
- Não devia ficar aqui sozinha. E também não devia ser tão simpática com
estranhos. Muitos homens podem interpretar mal, e duvido que soubesse enfrentar
situações de perigo.
Quando Luc passou pela porta e olhou para trás, viu uma adolescente bonita e
ingênua, incapaz de esconder a própria decepção. Uma presa fácil para o lobo
sanguinário.
Naqueles dias, Catherine ainda era uma otimista convicta. Se ele já havia
aparecido uma vez, podia aparecer pela segunda. E foi o que aconteceu, dois
meses depois. Caminhava pela rua sozinho, à noite, como na primeira vez. Entrou
na galeria e ficou observando alguns quadros em silencio, enquanto ela falava
sem parar, com o mesmo entusiasmo que ele havia censurado antes.
Luc dirigiu-se à porta e, quando Catherine já esperava que saísse sem dizer
nada, ele se virou e informou:
- Vou esperar que feche. Estou precisando de alguma companhia.
O convite tão esperado era frio e arrogante, pois deixava claro que ele não
tinha duvida da resposta afirmativa. Mas...e daí? Catherine estava eufórica
demais para preocupar-se com detalhes.
Poucos depois caminhavam pela rua, lado a lado.
- Eu passei o dia todo no escritório - explicou ele - Não se incomoda de
passearmos a pé, não é? Estou farto de ficar trancado!
- Não, eu não me importo.
Luc podia ter sugerido um mergulho no Tâmisa e a resposta seria a mesma.
Quando os encontros se tornaram mais freqüentes, foi...diferente. Luc costumava
passar pela galeria e, juntos, caminhavam até um café na Piccadilly. Catherine
não fazia perguntas, não podia sequer imaginar quem era aquele homem, e isso o
agradava. Ouvia com interesse a historia que ele contava sobre a infância em
Nova York, a família, o pai, a mãe e a irmã, mortos num desastre de avião no
ano anterior... E em troca, Catherine abriu o coração e falou sobre os pais
desconhecidos e o orfanato, tentando demonstrar uma indiferença que não sentia
sobre o próprio passado.
- Talvez eu telefone - disse ele, quando a colocou dentro de um táxi e
despediu-se com simples aceno de mão.
Mas não telefonou. Seis, quase sete semanas de agonia. Catherine sentia-se
infeliz e, só quando abandonou as esperanças de vê-lo outra vez, Luc surgiu do
nada. Sem aviso prévio. A alegria era tanta que ela não pôde conter as
lagrimas. E foi então que aconteceu o primeiro beijo: um premio de consolação
pelo sofrimento que ele lhe causara até então.
Depois desse beijo, Catherine podia descobrir qualquer coisa, até um passado
tenebroso e criminoso...que não faria nenhuma diferença . Estava apaixonada e,
em algum recanto sombrio do inconsciente, conclui que ele também tinha de
estar. Como era romântico quando Luc a presenteava com uma única rosa...
Que coisa repelente podiam ser as recordações! Luc nunca fora um homem
romântico! Apenas se esforçava para conseguir a amante perfeita, com a mesma tática
premeditada e a mesma frieza que empregava nos negócios. Primeiro passo,
desequilibrá-la. Segundo passo, convencê-la que não poderia mais viver sem ele.
Terceiro passo, dar o golpe final. Fora seduzida com tanto estilo e habilidade
que nem percebeu o que estava acontecendo.
Se Luc a mandasse pular na frente de um trem expresso, teria obedecido da mesma
maneira.
Sacudiu a cabeça, livrando-se das recordações dolorosas, e olhou para o
relógio. Era tarde! Imersa nos pensamentos e lembranças passara a tarde toda
perambulando pelas ruas de Londres. Apressada, dirigiu-se ao ponto de ônibus.
Quando chegou ao apartamento, a sra. Bugle, governanta de Drew, já estava
vestindo o casaco para ir embora.
- Sinto muito, mas não tive tempo de preparar o jantar, sra Parrish - disse
depressa e com tom rude.
- Não há problema. Estou acostumada a cuidar de mim mesma.
- Ouça... A sra Huntingdom está levando aquele divorcio a sério - disse a
criada com tom acusador. - E se o sr. Huntingdon se casar outra vez, eu vou
procurar outro emprego!
E, antes que Catherine pudesse dizer qualquer coisa para defender-se, a mulher
já havia partido, batendo a porta com forca. Sentindo uma mistura de raiva,
vergonha e frustração, ela pensou que o ataque inesperado da governanta era o
toque final para um dia glorioso.
Então agora era uma destruidora de lares? A outra! E a sra. Bugle não devia ser
a única a tirar tais conclusões. O romance de Annette Huntingdon era um
segredo, conhecido por poucos. E agora corria o risco de ser envolvida em processo
de separação judicial, sem ter nada a ver com o caso!
Harriet sempre fora contra o divorcio do irmão. Insistia em tocar no assunto e
recriminá-lo com freqüência, numa época em que Drew já estava magoado e ferido
demais com a traição da esposa.
Teria exagerado na simpatia e nas atenções com relação a Drew, num esforço para
compensar as agressões constantes de Harriet? Apesar de lamentar muito pela
tristeza do amigo, não queria envolver-se em problemas que não poderia
resolver. Tudo o que fez foi ouvir...e Drew deve ter interpretado as atenções e
a amizade como um encorajamento.
O que devia fazer agora era sair do apartamento! Mas como?
Depois de pagar um mês de aluguel adiantado a sra. Anstey, não sobrara dinheiro
suficiente para ir a lugar algum. Peggy sempre a censurara por não pedir um
salário pelos cuidados com Harriet, cuja governanta fora embora logo após a
chegada de Catherine. Mas Harriet, sempre disposta a doar ate o ultimo centavo
aos mais necessitados e cada vez mais doente, não teria como pagar um ordenado,
por menor que fosse.
Mas isso não tivera nenhuma importância, até Harriet morrer.
Sem ter de preocupar-se com moradia e alimentação, Catherine ocupava o tempo
vago entre os cuidados com Daniel e a casa, com pequenos serviços para a
vizinhança que sempre rendiam alguns trocados. Plantava verduras e as vendia,
bordava, cuidava de crianças e animais...de alguma forma, conseguia sobreviver.
Mas, agora, a incerteza sobre o futuro pairava sobre ela como uma enorme nuvem
negra.
Teria que apelar para ao Serviço Social até que pudesse voltar a sustentar-se
sozinha. E, quando Drew voltasse da Alemanha, contaria tudo sobre o passado e o
filho. Se o que o amigo sentia era apenas uma paixão, como suspeitava, em breve
estaria curado.
Infelizmente perderia uma amizade que valorizava muito, mas era a única coisa
certa a fazer.
Algum tempo depois, por volta das seis e meia, a companhia da porta tocou.
Sentiu-se tentada a ignorá-la e evitar os aborrecimentos de ter de explicar sua
presença naquele apartamento. Infelizmente, quem quer que fosse a visita, era
persistente. Talvez fosse melhor atender de uma vez.
Era Luc. Por alguns instantes angustiantes, Catherine pensou estar delirando.
- Luc...- gaguejou, retrocedendo alguns passos.
- Vejo que ainda não voltou para Peterborough. Ou era Peterhaven? Você não
parece muito certa do seu endereço? E é uma péssima mentirosa, cara. Na
verdade, você mente tão mal que devia desistir. Por que tentou me enganar?
- Eu tentei? - engasgou-se, sentindo-se perdida.
- Sabe por que a deixei partir? - perguntou, entrando e batendo a porta com
violência.
- N...não.......
- Porque, se tivesse dito mais uma mentira, eu seria capaz de estrangulá-la!
Onde encontrou coragem para fingir tanto?
Apavorada, Catherine observou a figura alta e poderosa, o retrato do perigo
para alguém tão frágil quanto ela. Sentia a boca seca e o estômago doendo. Mas,
afinal...por que esperava que fosse diferente? Como pudera imaginar que não
sentira nada diante do homem a quem amara com desespero, cujo filho nascera de
seu ventre na mais completa solidão? Agora compreendia por que tivera de sair
do carro quase correndo, incapaz de encontrar as respostas que ele buscava.
Uma mulher só encontrava um homem como Luc Santini uma vez na vida, se tiver
muita sorte. E, depois, goste ou não, julgará todos os outros que conhecer de
acordo com as lembranças. De repente, tomou consciência de que em todos aqueles
anos, desde que abandonara o apartamento de Manhatan, ninguém mais fora capaz
de despertar seu interesse. Enfrentar Luc novamente seria o ultimo desafio.
O silêncio prolongava-se de maneira insuportável.
- Cristo, cara! - gritou ele. - Em que está pensando? Tenho a impressão de que
vai cair de joelhos a qualquer momento e implorar por redenção!
- O quê? - perguntou sobressaltada. Subitamente, compreendeu o quanto estava
confusa e perdida. O que ele estava fazendo ali?
O que queria dela? E de que mentiras estivera falando antes? Será que
desconfiava da existência do filho? Como poderia suspeitar?
A simples possibilidade de que Luc pudesse saber sobre a existência de Daniel
deixava-a apavorada.
Luc começou a andar pela sala, dirigiu-se a cozinha e abriu a porta,
inspecionando o interior. Perplexa, Catherine viu como ele repetia a ação em
cada uma das outras portas, como se procurasse provas de algum crime.
O que buscava? Possíveis testemunhas? O marido inexistente?
Ou a criança? No mercado financeiro, Luc era famoso pelo poder de descobrir
tudo que quisesse. Conhecia o que outras pessoas nem imaginavam. Interpretava o
que era codificado. Se tivesse tido o trabalho de concentrar a inteligência
brilhante no desaparecimento de Catherine, em poucos minutos chegaria a
conclusão de que estava grávida.
- Por acaso achou divertido tentar despistar meus agentes de segurança, andando
pela cidade durante três horas inteiras? - perguntou ele, aumentando o pânico
que se apoderava dela.
- Eu...despistando?
- Você não mudou nada, não é? Continua sendo péssima observadora - e continuou
andando pelo apartamento. - Nenhuma planta, nenhum vaso de flores...Ou você não
está aqui há muito tempo, ou ele impôs o próprio gosto. Dio, esse homem teve
mais sucesso que eu, pelo menos com relação à decoração...
Catherine ficou vermelha ao recordar os comentários que Luc fazia sobre suas
preferências por flores e laços, enquanto ele dava mais valor as tendências
modernas de decoração. Apesar da resistência, não pôde deixar de lembrar da
cama coberta pela colcha bordada com laços.
As diferenças entre ambos eram tão imensas que teve vontade de rir. Seria difícil
encontrar duas personalidades mais antagônicas. Os sonhos de Catherine eram
sempre cheios de filhos, nascidos de um casamento feliz.
Mas Luc não tinha sonhos. Não eram realistas o bastante para merecer a atenção
do grande Santini. Ele vivia a vida de acordo com um plano bem definido.
Atingia um objetivo e partia para o próximo em seguida. Nunca pensava na
possibilidade de falhar. E jamais se contentava com menos do que queria.
Pensando em como aceitara menos do que esperava, Catherine não pôde evitar uma
onda de amargura e tristeza.
-Sinta-se em casa - disse ela com sarcasmo, furiosa por vê-lo invadindo sua
vida outra vez.
- Não fale assim comigo - avisou Luc.
- Falo como quiser!
- Não vai ter coragem de continuar - ele desafiou.
- Quer apostar?
A valentia de Catherine crescia a cada instante, desde que se lembrou que nada,
nem uma peça de roupa do filho, poderia trair o grande segredo, já que Daniel
levara todos os pertences para a fazenda dos pais de Peggy.
- Se eu fosse você, não me arriscaria tanto. As coisas não estão nada
favoráveis para você!
- Não tenho medo das suas ameaças! - encarou-o, erguendo o queixo.
- Mas devia ter.
- Está tentando me assustar?
- Que eu me lembre, eu nunca tentei assustar ninguém - disse sorrindo com ar
ameaçador.
- Não tenho mais nada a dizer, Luc!
- Mas eu tenho, e muito!
- Não quero escutar - e cruzou os braços para esconder as mãos tremulas.
Virou-se e caminhou até a janela, permanecendo de costas para ele.
- Quando eu falo com alguém, gosto que olhem nos meus olhos.
- Mas eu não quero olhar para você! - exclamou, percebendo que estava quase
chorando. Se pudesse transformar o desejo em realidade, estaria em qualquer
parte do mundo, menos diante de Luc Santini.
- Muito bem, acho que devemos tentar outro tipo de conversa.
Disposta a acabar com tanto sofrimento, Catherine respirou fundo, virou-se e
disse com voz controlada:
- Quero que vá embora agora.
- Chega de mentiras, Cathe. Podemos começar dispensando o marido imaginário,
cujo nome teve tanta dificuldade em lembrar. Sei que ele não existe.
- Não sei de onde tirou essa idéia - comentou, certa de que não estava sendo
convincente.
- Não quero fazer esse jogo. Costumo jogar com todas as pessoas que conheço, em
todas as partes do mundo, mas não com você. Eu vi você e Huntingdon do lado de
fora do restaurante. E se acha que essa aliança no seu dedo vai servir para dar
uma idéia de respeito, pode desistir.
- Está interpretando tudo errado!
- È mesmo? Pois eu não acho. E quer saber uma coisa? O seu amigo Huntingdon
está indo para a Alemanha em vão. Não vai conseguir o tal contrato.
-O quê? O que quer dizer com isso?
- Sabe muito bem o que estou dizendo.
- O que tem a ver com esse contrato, Luc?
- Nada além de um pouco de influencia. O suficiente...
- Mas...por que? Por que quer prejudicá-lo?
- Porque, infelizmente, este apartamento é dele. E, quando um homem invade meu
território, tem de agüentar as conseqüências. Não pensou que eu fosse perdoá-lo
por roubar minha mulher, não é?
CAPITULO
III
Catherine ficou pálida. Luc estava lhe despejando coisas demais para um único
encontro. Chocada, era como se estivesse paralisada dos pés a cabeça.
Luc a encarava sem nenhum sinal de emoção, além da irritação que se tornava
cada vez mais evidente. Uma aura de vibrações violentas eletrizava a atmosfera.
No entanto, conforme ele mesmo dizia, a raiva era a emoção dos perdedores. As
pessoas que se deixavam dominar pelos sentimentos acabavam perdendo o domínio
da situação. Um erro que ele nunca cometeria. Pelo menos, era o que acreditava
até então...
- Não sou sua mulher - conseguiu dizer, apesar da boca seca.
- Mas foi durante dois anos. Foi minha, como nenhuma outra mulher conseguiu. E
algumas coisas não mudam, cara. Por exemplo, no Savoy, não conseguia tirar os
olhos de mim.
Catherine ficou tão perplexa com a acusação que, por um momento, esqueceu o
assunto do contrato.
-Que absurdo! - exclamou, indignada.
- Eu não acho - ele sorriu, olhando-a como um tigre faminto diante da presa. -
E por que temos que discutir sobre isso? Você tem o mesmo efeito sobre mim. Não
vou negar. Um certo não sei o que, às vezes até inconveniente, que permanece
forte depois de seis anos e meio. Não acha significativo?
Muito. No entanto, toda vez que se aproximava da compreensão, que se sentia
tentada a concordar com Luc, recuava, apavorada.
- Não sei do que está falando... - mentiu.
- Sabe. Como sabe que muitos casais não conseguem manter essa chama por tanto
tempo. Quero você de volta, Catherine.
No silêncio que se seguiu, Cathe teve a impressão de que a rua inteira ouvia as
batidas descompassadas de seu coração. Tentou falar, mas os sons negavam-se a
sair de sua garganta.
- Eu... - gaguejou.
- Você deve ser a mulher mais modesta que conheço. Pensou que eu viria até aqui
por outras razões? - e caminhou até o bar e colocou um pouco de conhaque num
copo.
- Não acredito no que acabei de ouvir...
- Pois eu não disse nem a metade do que estou pensando. - Então se aproximou,
obrigando-a a pegar o copo de bebida. - Sei que está grata pela minha
moderação. Posso deixar o resto para dizer depois, num momento
mais...tranqüilo.
Catherine apanhou a bebida e tomou um grande gole, sentindo a garganta queimar
como fogo. Apesar do gosto horrível, o álcool serviu para pôr um fim em seu
estado de perplexidade e na paralisia.
- Está pensando que tenho um romance com Drew? - perguntou irritada. - È isso
que está insinuando?
- Eu nunca insinuo, cara. Eu afirmo.
- Como se atreve?
- Sabe o que é pior nisso tudo? - prosseguiu ele, ignorando a pergunta. - O
fato de ele ser um homem casado e velho o bastante para ser seu pai.
Francamente, Cathe...
- Não há nada pior, especialmente quando se trata de Drew! É um dos homens mais
decentes que conheci em toda minha vida!
- Exceto pelo fato de trair a esposa com uma garota que poderia ser sua filha -
e concluiu com tom ameaçador: - Só um pequeno aviso, cara: a partir de hoje,
não quero mais ouvi-la pronunciar sequer o nome desse homem.
Mas Catherine estava indignada demais com as acusações para ouvir o que ele
dizia.
- Ele nunca traiu a esposa. Estão separados há quase um ano, e o divorcio será
concluído no próximo mês!
- Eu sei. Pior para ele. Se tivesse ficado em casa, com a família, teria sido
bem mais seguro.
- Seguro? - murmurou, lembrando-se do contrato. - Você o prejudicou!
- Não, juro que não fiz nada.
- Mas disse que o contrato não...
- Catherine, temos coisas mais importantes para discutir - Luc interrompeu.
Lá estava ele outra vez. O lobo, o predador disfarçado sob os trajes elegantes
e modernos, o todo-poderoso, cuja consciência jamais funcionava como um limite,
um empecilho entre ele e um objetivo.
- Apesar de não ser da sua conta, Luc, eu não tenho nenhum romance com
Huntingdon - declarou, tentando aplacar a fúria que lia naqueles olhos
castanhos.
- Tudo o que diz respeito a você é da minha conta.
Podia dizer que não, mas estava mais preocupada com Drew.
- Por que quer prejudicar a Huntingdon? O que ele fez a você?
-E ainda pergunta? Mora no apartamento dele e ainda tem coragem de perguntar?
- Não é o que está pensando.
- É exatamente o que estou pensando. Um caso...
- Como o que tive com você? - desafiou.
- Cristo! Como pode dizer isso? Em toda minha vida, nunca tratei uma mulher tão
bem como fiz com você!
A coisa mais intrigante na afirmação era a sinceridade que possuía. Luc
acreditava no que estava dizendo.
Catherine não respondeu, rangendo os dentes de raiva. No entanto, ele ainda não
havia terminado.
- O que foi que recebi em troca? Vamos, diga! Um bilhete estúpido com batom,
rabiscos que eu mal pude entender. Confiei em você como se fosse da família e
você traiu esta confiança! Cravou uma faca nas minhas costas!
Catherine devia estar preparada para aquela explosão, mas não estava.
O famoso autocontrole de Luc Santini se evaporou de repente, revelando toda a
intensidade da raiva que ela se atreveu a provocar.
- Luc, eu...
- Fique onde está! - ele gritou, notando que Cathe tentava alcançar a porta. -
Vivemos juntos durante dois anos, Catherine! E então você sumiu! O que eu
recebi em quase cinco anos? Nada! Nem um cartão postal! Procurei-a como um
louco, preocupado, sem saber como estava conseguindo viver. Pensei que tivesse
sofrido um acidente e cheguei a imaginar que estivesse morta! E onde a
encontro? No Savoy, almoçando com outro homem!
Catherine estava tremula. Nuca vira Luc demonstrando uma carga tão intensa de
emoções. Mesmo assim, não conseguia acreditar em nada do que viu.
Preocupado? E desde quando Luc se preocupava com ela? Quando abandonou o
apartamento, fugindo como uma ladra pela porta de serviço, chegou a prever a
reação dele quando descobrisse. Assombro...Indignação...
Satisfação...Conformismo. Tudo, menos preocupação.
E a idéia era perturbadora, razão pela qual decidiu não dizer nada em defesa
própria. Pelo menos de uma coisa tinha certeza: Luc não suspeitava da
existência do filho. Agora só temia por Drew.
- Por favor deixe Drew em paz - pediu. - Ele precisa daquele contrato.
- E só isso que tem a me dizer?
- È que....se perder o contrato, ele estará arruinado.
- Eu sei - Luc sorriu.
- Se está furioso comigo, trate de resolver comigo! Não posso acreditar que
queira mesmo prejudicar outra pessoa!
- Pode acreditar.
- E...quanto ao resto...quanto a querer que eu volte...isso está fora de
cogitação - completou.
- Não vai voltar?
- Não! Eu não posso entender por que está fazendo isso comigo! - gritou
descontrolada.
- Tente. Vai compreender em seguida...
Recusava-se a encará-lo. Aquele homem a ferira demais. Na presença de Luc,
sentia-se como uma garotinha que pusera as mãos no fogo. A lembrança da dor era
uma barreira permanente.
- Não vou tentar nada! Você é um capitulo da minha vida que já encerrei a muito
tempo.
- Um capítulo? Você viveu comigo durante dois anos!
- Dezenove meses, e todos eles se revelaram um grande engano - corrigiu,
abandonando a precaução anterior.
- Madre de Dio! Está falando como se fosse minha amante, um caso sem
importância!
- Era como eu costumava me sentir.
- Como pode dizer esse absurdo? Eu sempre a tratei com respeito!
- Aquilo era respeito? - riu, sentindo uma necessidade urgente de feri-lo. -
Agora, quando olho para você, me pergunto por que demorei tanto a recobrar o
bom senso.
- Desde que eu cheguei, olhou para todos os lugares, menos para mim - desafiou.
- Eu odeio você, Luc! Odeio tanto que se caísse morto na minha frente, eu
passaria por cima do cadáver sem olhar para trás! - explodiu.
- O futuro dirá se é verdade.
- Não vai haver nenhum futuro para nós! - gritou. Nunca perdera a cabeça antes,
com ninguém, e até isso ele estava conseguindo. E, como se não fosse suficiente
ficar parado ali, frio e controlado como um boneco, não estava dizendo nenhuma
palavra do que ela dizia. Não vou fazer o que diz, como se fosse sua empregada!
Voltar para você? Só pode estar louco! Prefiro morrer a voltar para você! Eu
amei você, Luc, muito mais do que merecia ser amado...
- Eu sei.
- O que quer dizer com...eu sei? Onde encontrou o descaramento necessário para
admitir isso?
- Pensei que isso fosse me ajudar...
- Ajudar? Pois isso torna as coisas que fez comigo ainda mais horríveis.
Imperdoáveis! Pegou tudo o que eu tinha para dar e tentou pagar por isso, como
se eu fosse uma...uma dessas mulheres que andam pela rua!
- Catherine, eu posso ter cometido alguns erros, mas se estava são insatisfeita
como a nossa relação, devia ter dito.
- Eu nunca faria isso! Quer saber de uma coisa? Você pode comprar tudo o que
quiser, mas não vai conseguir me comprar. Eu não estou à venda, Luc Santini!
Tremendo violentamente, virou-se de costas para ele. Nunca imaginara que
pudesse atacar Luc daquela maneira, mas era o que estava acontecendo. E, no
entanto, não experimentava nenhum prazer; sentia apenas dor. Uma dor profunda e
desesperada, que parecia apossar-se de todo seu ser. O simples fato de estar na
mesma sala que ele era um tormento. Uma vez jurara que nunca mais o deixaria
feri-la. Que nunca mais respiraria o mesmo ar que Luc Santini.
Mas a parede que construíra na memória estava caindo, tijolo por tijolo, e os
sentimentos que ocultara atrás dela voltavam a surgir com intensidade
incontrolável. E com eles vinham as lembranças que sobreviviam, apesar de
passado tanto tempo...
Sua mente retrocedeu até o dia em que ele lhe
oferecera uma rosa e a acompanhara até a limusine. Nem Cinderela podia sonhar
com tanto. Fora retirada da realidade e levada para um mundo que só conhecia
através das revistas. Durante cinco dias, vivera cercada por uma atmosfera
excitante: clubes noturnos onde dançavam a noite inteira, jantares íntimos em
restaurantes da moda... e a noite na suíte do hotel, em Londres.
Mas, mesmo então, Luc se mostrara imprevisível. Depois de reduzida a um estado
de total abandono e abraçá-la com paixão, afastou-a com ar de resignação.
- Eu vou passar o natal na Suíça. Por que não vem comigo? - convidou, como se
estivesse sugerindo um passeio até a esquina.
Catherine hesitara, embaraçada, mas era uma data que sempre a deixava muito
sentimental. A principio dissera não, incomodada pelo fato de deixá-lo pagar as
despesas da viagem.
- Não sei quando estarei em Londres outra vez...- Luc dissera, dando a
impressão de que ficariam separados por um longo período.
Convencida de que poderia perdê-lo para sempre, acabara concordando. E era tão
ingênua que pensara que fossem ficar em quartos separados. Mesmo sabendo que
teria pulado no fundo de um poço, se Luc a convidasse, não achava que se
conheciam o suficiente para alguma coisa a mais.
Seis horas em um chalé dos Alpes foram o bastante
para fazê-la esquecer todos os princípios. Nem uma noiva fora levada para o
leito nupcial com tanta consideração e tato. Luc era irresistível. Daquele
momento em diante, ele a possuía de corpo e alma.
A paixão estava lá, o homem tão sonhado também, mas o casamento não estava em
nenhum lugar que pudesse vislumbrá-lo. Entregara-se por amor e faria qualquer
coisa por ele...
- Catherine! - De repente, a voz de Luc obrigou-a a voltar ao presente. - Em
que está pensando?
Lutando contras as lagrimas que ameaçavam brotar, ela respirou fundo antes de
responder:
- Não ia gostar de saber.
- Ouça...Se voltar para mim, Huntingdon pode ficar com o contrato...
- Meu Deus! Não pode barganhar com o destino de um homem! - exclamou com
horror.
- Posso e vou.
- Odeio você. Ficaria doente se encostasse um dedo em mim.
- Só acredito vendo - sorriu ele.
- Luc, por favor - implorou, sabendo que não seria capaz de causar tanto
sofrimento a um amigo tão querido como Drew. Nunca mais teria paz, se fugisse
ás suas responsabilidades. - Luc, por favor, pense no que vai fazer. Está sendo
egoísta!
Não me lembro de ter passado por experiências menos egoístas do que a que estou
vivendo agora.
- Não posso voltar para você...Não posso! Por favor, vá embora e esqueça que me
conheceu!
- Se pudesse esquecer, não estaria aqui, cara - disse em voz baixa, chegando
mais perto.
Catherine retrocedeu alguns passos.
- Já esqueceu todas aquelas coisas que eu fazia e que o irritavam? - tentou
desesperada.
- Tornaram-se maravilhosas, quando fique sem você.
- Fique longe de mim! - gritou, perdendo o controle à medida que ele se
aproximava. - Não toque em mim! Posso até morrer se encostar um dedo em mim!
- E eu vou morrer se não tocá-la. Eu sou um vencedor, Cathe - lembrou, tentando
abraçá-la. - Não me conformo com uma derrota. E não vou perdê-la para aquele
homem!
Ela tentou se livrar do abraço, mas um dos saltos do sapato enroscou no tapete.
Perdeu o equilíbrio e caiu, batendo a cabeça na quina da mesa. Quando chegou ao
chão, já estava envolta por uma escuridão densa e impenetrável, uma espécie de
poço sem fundo.
- Pode ver a área a que me refiro aqui - indagou o medico, mostrando a
radiografia. - No momento é difícil afirmar qualquer coisa, mas não tenho
razoes para suspeitar de nada muito grave. No entanto ela terá de passar a
noite aqui, em observação.
- Mas... não está demorando muito para voltar ao normal?
- Ela bateu a cabeça com muita violência...
As vozes não faziam nenhum sentido para Catherine, porém ela reconheceu a de
Luc e sentiu-se aliviada. A dor na base do crânio era quase insuportável, mas
esforçou-se pra virar a cabeça e abrir os olhos.
- Estou vendo tudo nublado - comentou em tom débil.
Um homem grisalho aproximou-se e parou ao lado da cama, examinando sua
coordenação. Em seguida perguntou-lhe em que dia do mês estavam. Catherine
fechou os olhos e tentou se lembrar, mas era como se o cérebro estivesse cheio
de algodão. Não fazia nem idéia da data. Pensando bem, não sabia nem o que
estava fazendo em um hospital.
O medico repetiu a questão.
- Não vê que ela está com dor? - irritou-se Luc. - É melhor deixá-la descansar.
- Catherine - insistiu o doutor, obrigando-a a abrir os olhos outra vez. - Pode
se lembrar do que aconteceu?
- Já disse que ela caiu - interferiu Santini. - Essas perguntas são mesmo
necessárias?
- Eu caí - repetiu Catherine, torcendo para que o médico fosse embora e parasse
de aborrecê-la.
- Como foi o tombo? - e virou-se para Luc, ouvindo o som de um suspiro
exasperado. - Bem, acho que vou ter de completar os exames amanha cedo. Não
quer ir para casa, sr. Santini?
- Não. Vou ficar com ela.
Catherine sorriu para ele, feliz por perceber que estava preocupado. Fechou os
olhos outra vez e sentiu que a cama rodava. As enfermeiras conversavam em torno
do leito, comentando o tempo úmido e falando sobre uma liquidação. Tudo normal,
apesar de Catherine sentir-s invisível. Sem perceber, adormeceu.
Quando despertou, viu-se em um quarto simples e bem mobiliado, que não lembrava
em nada um hospital. Luc olhava pela janela, e a penumbra invadia o ambiente.
- Luc...- sussurrou. Ele se virou de repente. - Pode parecer uma pergunta
estúpida, mas... onde eu estou?
- Numa clinica particular - ele esclareceu, aproximando-se da cama. - Sente-se
melhor?
- Ainda dói muito, mas não é tão insuportável quanto antes - e tentou virar a
cabeça.
- Fique quieta.
- Eu não me lembro de ter caído...
Santini chegou mais perto. Tinha um ar cansado e abatido. A gravata fora
afrouxada, e os dois botões superiores da camisa estavam abertos.
- A culpa foi minha.
- Não, não foi...
- Foi sim. Se eu não tivesse tentado abraçá-la, nada disso teria acontecido.
Você tentou escapar e...
- Tentei escapar...de você? - espantou-se, buscando alguma coisa na memória que
explicasse um comportamento tão estranho.
- Isso mesmo. Tropeçou no tapete e caiu. E bateu a cabeça na mesa. Meu Deus,
cara... Pensei que tivesse quebrado o pescoço! - confessou com emoção. - Achei
que estivesse morta!
- Sinto muito - ela lamentou, começando a entrar em pânico. A situação era
muito estranha. Além de não se recordar do tombo, imagens terríveis dançavam em
sua mente. - O medico...as enfermeiras...eram inglesas. Estamos na Inglaterra?
- Estamos... - começou ele, surpreso pelo uso do plural. - Sim, estamos em
Londres. Não sabia?
- Não me lembro de ter vindo para a Inglaterra com você! Por que não consigo
lembrar?
Santini a observou por alguns instantes, antes de sentar-se na beirada da cama.
- Está um pouco confusa por causa da pancada na cabeça, mas não é nada serio.
Não precisa ficar preocupada.
- Mas é... assustador!
- Não tem por que ficar assustada - tranqüilizou-a, prevendo a possibilidade de
um ataque de nervos.
Catherine estendeu a mão e acariciou os dedos dele com tanta naturalidade.
- Há quanto tempo estamos em Londres?
- Que importância tem isso? - perguntou ele, mais tenso, beijando a palma da
mão delicada com carinho.
Um arrepio de prazer a percorreu, apesar da dor que sentia.
- É isso? - perguntou ele.
- Isso o que? - Catherine surpreendeu-se, distanciada de qualquer pensamento
racional pela intensidade da sensação.
Luc suspirou desapontado e formulou a pergunta com maior clareza.
- Qual é a ultima coisa da qual se lembra?
Com imenso esforço, ela tentou ordenar os pensamentos confusos e situar-se no
tempo.
- Você teve febre - disse.
- Febre... Ah, sim! A febre! Foi no ano...
- Eu sei em que ano estamos, Luc.
- É claro que sabe - tranqüilizou-a, escondendo a inquietação que o invadia e
estendendo a mão para afastar uma mecha de cabelos que caia sobre o rosto dela.
- Parece que foi há tanto tempo... e no entanto, quando penso nisso, tenho a
impressão de que foi ontem.
- Não deve se cansar com bobagens.
- E tarde?
- Quase meia-noite.
- Por que não volta para o hotel? Estamos em um
hotel? - perguntou ansiosa.
- Pare de se preocupar. Isso vai passar logo. Prometo que ainda vamos rir muito
de toda essa situação.
Catherine levantou o braço, possuída por uma vontade incontrolável de tocá-lo.
A pele bronzeada do rosto estava áspera, devido a barba por fazer, mas os olhos
brilhavam mais que nunca, apesar da sombra de inquietação. Por que não a
beijava?
Nessa área, Luc nunca tivera de ser encorajado. Quando voltava de uma viagem de
negócios, abraçava-a assim que entrava e só controlava o desejo até chegarem ao
quarto. E quando ficava em casa, Cathe não podia cozinhar ou fazer qualquer
outro serviço doméstico sem ser interrompida.
E isso era motivo de segurança. Enquanto houvesse a paixão ardente e imperiosa,
podia alimentar esperanças. Mas depois sempre surgia o outro lado da moeda: o
pessimismo. Esperar alguma coisa de Luc com relação ao futuro era o mesmo que
acreditar em fadas e duendes.
- Só esqueci algumas semanas, não foi? - pergunto, afastando a insegurança e os
pensamentos sombrios.
- Nada de importante.
- Luc... - hesitou. - O que está acontecendo?
- Catherine - ele suspirou. - Meu Deus, como pode fazer isso comigo com um
simples olhar? Você está doente! - exclamou, como se advertisse a si mesmo,
procurando conter a paixão repentina que o queimava por dentro.
Catherine não soube bem o que aconteceu, mas, subitamente, Luc estava próximo
como queria que ele estivesse, acariciando seus cabelos e sorrindo. Ao
contrario do que esperava, ele não a abraçou com ansiedade, como costumava
fazer. Passou os dedos por seu rosto num carinho delicado e suave, beijando-a
com lentidão e sensualidade, arrancando arrepios e estremecimentos cada vez
mais intensos.
Abraçou-a com força, e embora o movimento causasse uma súbita pontada de dor,
Catherine não teve forcas para afastá-lo. E nem vontade... Luc a beijava outra
vez, como fazia sempre.
O desejo os envolveu de imediato, quente e selvagem. As mãos dele afastaram
camisola de hospital, descobrindo a parte superior do corpo que conhecia tão
bem. O ar frio da noite tocou a pele exposta de Catherine quando ele se
afastou, segurando-a pelos braços e observando a nudez dos seios pálidos.
Incapaz de esconder as emoções, Catherine pediu num sussurro:
- Luc, me leve de volta para o hotel...
Ele fechou os olhos. Um segundo depois, puxou a camisola sobre os ombros nus e
levantou-se, obrigando-a a deitar-se e ficar quieta.
- Por favor, me desculpe - pediu. - Eu não devia ter feito isso. Você não está
bem.
- Estou ótima - protestou. - E não quero ficar aqui.
- Mas vai ficar. Aqui é mais seguro.
- Seguro? - ela perguntou com ar confuso.
- Acredita em destino, cara?
Catherine arregalou os olhos, espantada. Luc, que sempre fora contra todas as
superstições e crendices, que ria quando ela desviava para não passar sob uma
escada ou fugir de um gato preto...Luc, perguntando sobre destino?
- Sabe que eu acredito - respondeu.
- Pois ninguém deve lutar contra ele. Sabe disso, não é?
Nunca tiveram uma conversa tão estranha. E ela estava tão exausta que era quase
impossível coordenar as idéias.
- Acho que ninguém é capaz de enfrentar o destino... - disse com voz fraca.
- Não quero nem tentar. Agora durma, cara. Vamos para a Itália amanha de manhã.
- I... Itália? - ela gaguejou.
- Não acha que já é a hora de regularizarmos nossa situação?
Não! Não podia ser o que imaginava que fosse!
- Não... Não entendi...
Luc se aproximou e sentou-se na cadeira ao lado da cama, fitando-a dentro dos
olhos.
- Como, não entendeu? Estou pedindo você em casamento.
- Ah... - murmurou, incapaz de pensar em qualquer coisa.
- Não vai dizer mais nada?
- Eu... Bem... Está pensando nisso há muito tempo? - quis saber, esforçando-se
para demonstrar um pouco de equilíbrio.
- Vamos dizer que a idéia me atropelou - riu.
Não era muito romântico, mas... que importância tinha? Luc a estava pedindo em
casamento! O que significava que passara meses ao lado de um estranho. Todos os
pensamentos sombrios e acusadores que tivera em relação a ele haviam sido
injustos. Não pôde mais conter as lágrimas.
- Cathe, o que foi que eu fiz? Já sei! Não imaginava que eu fosse fazer a
proposta nestas circunstâncias, não é?
- Nunca imaginei que fosse me pedir em casamento! - soluçou.
Luc a abraçou sorrindo, fazendo-a encostar a cabeça em seu peito.
- Estou tão... feliz!
- Tem uma maneira meio estranha de ficar feliz, não é? Aliás... tem um jeito
especial de fazer muitas coisas - riu. - Vamos nos casar na Itália. E agora que
tomamos a decisão, não temos razoes para perder tempo, concorda?
Ele acariciava os cabelos claros e sedosos. Era tão gentil e protetor... o
contrario do que Catherine sempre esperava daquele homem. Teria ficado tão
perturbado com o acidente? Estaria sentindo-se culpado por causa do tombo e,
por isso, agia daquela maneira? Alguma coisa devia ter acontecido para provocar
alterações tão profundas na atitude de Luc... ou Serpa que nunca fora capaz de
entendê-lo de verdade? Afinal, era importante entendê-lo?
Decidiu que não.
Luc planejava o casamento. Seria capaz de ouvi-lo durante a noite toda, mas a
exaustão impediu que continuasse desfrutando de tanta felicidade.
Adormeceu, recostada no peito dele, feliz.
CAPITULO IV
O conjunto de saia e blusa não era conhecido, mas devia tê-lo comprado para
agradar Luc. Os sapatos? Estranhou os saltos baixos, que não faziam muito por
sua estatura. Por que os escolhera, se nunca usava sapatos sem salto? No
entanto, combinavam perfeitamente com o traje azul. E, como nunca tivera
talento para coordenar o próprio guarda-roupa, surpreendeu-se com a descoberta.
Luc não estava lá quando acordou, e as roupas foram entregues logo depois do
café da manha. Apesar do esforço que teve de fazer para levantar-se, vestiu-se
depressa. Uma enfermeira censurou-a por não ter pedido ajuda, informando que o
medico iria vê-la em seguida. Torceu para que Luc chegasse antes dele. A idéia
de enfrentar sozinha uma bateria de perguntas, para as quais não possuía
respostas, era enervante.
Afinal, algumas semanas não qualificavam uma perda de memória muito importante.
Controlando a sensação de pânico, sentou-se na frente do espelho. As lembranças
logo voltariam e, como Luc havia dito, não estava esquecendo nada muito serio.
Mesmo assim, algumas pequenas coisas continuavam a perturbá-la. Desde quando
estava com os cabelos mais curtos, um pouco acima dos ombros? E era como se não
vissem um pente há anos! E as unhas? Devia ter esfregado o chão! E havia uma
marca fina em um dos dedos, como se tivesse usado uma aliança...
Não reconhecia sequer o conteúdo da própria bolsa! Esperava que alguma coisa,
no meio daqueles objetos, pudesse ajudá-la a recobrar a memória, mas... Havia
bastante dinheiro, em dólares e libras, mas os cartões de credito não estavam
lá. Nenhuma foto de Luc... Os cosméticos não eram familiares e... onde estava o
passaporte?
Mas o pior de tudo continuava sendo a proposta de Luc. Era o aspecto mais
surpreendente de toda aquela situação.
Quando quebrara o tornozelo na Suíça, há um ano, ele ficara furioso. Dissera
que era a única pessoa que conhecia capaz de quebrar a perna nos Alpes, sem
sequer chegar perto de um par de esquis. Ficara ao lado dela no hospital,
despejando uma tonelada de recriminações e censuras sobre a altura dos saltos
de seus sapatos. O médico pensara que aquele homem fosse um monstro de
crueldade, mas Catherine o conhecia bem.
A dor dela o preocupava e o fazia reagir com agressividade, já que era incapaz
de lidar com emoções mais intensas. Dizer que seria capaz de surrá-la se a
pegasse usando aqueles sapatos novamente era o mesmo que demonstrar uma grande
dose de preocupação com perguntas sobre seu estado de saúde.
Mas, na ultima noite, Luc não ficara furioso... e a pedira em casamento! Como
podia explicar uma mudança tão brusca? Talvez a memória tivesse bloqueado uma
fase significativa da relação entre eles, uma época em que as alterações deviam
ter ocorrido. O fato de estar em Londres com ele, quando o normal seria ter
viajado sozinho, já era um indicio claro de alguma transformação anterior. Mas
o que havia acontecido para causar tamanha reviravolta?
Lembrou-se de algumas fotos recentes de Luc, publicadas em todos os jornais.
Havia uma linda mulher ao lado dele, fina e com muita classe, com ar de quem
ocupa um lugar de destaque na sociedade sem sequer duvidar do direito de estar
lá. Mulheres de sociedade, princesas, filhas de homens ricos e influentes...
eram as que apareciam em publico com Luc nos jantares importantes, chás de
caridade e estréias de espetáculos.
- Não tenho nada com elas - respondia quando acusado. E, mesmo assim, era muito
doloroso. Naquele dia, Catherine olhara para o espelho e vira a própria
inadequação refletida.
A porta abriu-se de repente, e Luc entrou, acompanhado pelo médico. Sentada na
grande poltrona, com lagrimas escorrendo pelas faces, ela parecia frágil,
desamparada e indefesa, apesar dos trajes caros.
Luc atravessou o quarto com passos rápidos e abaixou-se a seu lado, segurando-a
pelo queixo e obrigando-a a encará-lo.
- Por que está chorando? - perguntou. - Alguém aborreceu você?
Era o retrato do homem italiano. Protetor, possessivo, pronto a destruir
qualquer um que a magoasse. Sob a aparência sofisticada, Santini era um machão
com um ponto de vista muito antiquado sobre a igualdade sexual.
Catherine enxugou o rosto com o dorso da mão e respondeu:
- Não foi nada.
- Se alguém a aborreceu, quero saber agora!
- Sr. Santini, não acredito que alguém do hospital tenha tido um comportamento
como o que esta imaginando - Interferiu o Dr. Ladwin, o médico.
- Catherine é muito sensível - explicou Luc, tirando um lenço do bolso e
entregando a ela.
Embaraçada, Cathe apressou-se a pôr um ponto final no problema:
- O pessoal do hospital é maravilhoso, Luc. Só estou um pouco deprimida, mais
nada.
- É o que estou tentando explicar há mais de meia hora, sr. Santini -
manifestou-se o médico. - A amnésia é uma condição angustiante e, por isso,
costuma causar essas reações.
- Como também já explicou, essa não é a sua especialidade.
Catherine observou os dois homens e notou o antagonismo evidente entre eles.
O médico dirigiu-se a ela:
- Sei que está muito confusa, sra. Parrish. Não prefere ficar aqui mais um
pouco e passar por uma consulta com um colega meu?
Apavorada com a possibilidade de ver o casamento adiado, ela respondeu:
- Não! Quero ir embora com Luc.
- Está satisfeito? - interferiu Santini, fitando o medico com ar de triunfo.
- Não, mas acho que não há mais nada a fazer - e partiu, depois de apertar a
mão de ambos.
- O carro está lá fora - informou Luc com um sorriso, assim que a porta foi
fechada pelo médico.
- Não consegui encontrar meu passaporte - confessou com receio, sabendo que ele
detestava desorganização.
- Fique tranqüila, o documento está comigo - sorriu.
- Pensei que o tivesse perdido... junto com os cartões de credito e algumas
fotos.
- Não, você não perdeu nada. Os objetos ficaram em Nova York.
Catherine sorriu diante da simplicidade da explicação. Afinal, não era o tipo
de pessoa que costumava manter tudo arrumado e nos lugares certos.
- Ainda bem... - suspirou aliviada.
- Por que estava chorando?
- Eu... não sei - mentiu.
- Alguém magoou você? - perguntou, sem enxergar o obvio.
Ninguém poderia magoá-la mais que Luc Santini e, ao mesmo tempo, ninguém era
capaz de fazê-la mais feliz. Amá-lo significava ficar sob seu domínio, mas,
pela primeira vez, não sentia medo de entregar-se por completo. - Agora, estou
aqui. Não precisa mais preocupar-se com nada.
Desde que o conhecera, preocupação era uma parte integrante da vida diária. A
insegurança que carregava desde a infância crescera e criara raízes profundas.
Mas agora seria diferente. Como esposa de Luc, não teria mais razoes para temer
o futuro.
- Por que quer se casar comigo? - perguntou, tentando compreender a mudança
radical.
- Porque não consigo imaginar minha vida sem você. Cathe, será que não podemos
deixar essa conversa para um momento mais adequado? - riu.
Só então ela se lembrou de que estavam no elevador, acompanhados por um casal
mais velho e sorridente. Estava muito envolvida pelas próprias emoções para
notar as imposições do mundo externo. Catherine Santini! O que mais poderia
esperar da vida?
Era um sonho, um presente do destino para alguém que sempre vivera na solidão,
querendo apenas ser amada de verdade. Era como nos contos de fada: se o desejo
for real e as preces forem sinceras, qualquer um pode ser atendido.
Quando passaram pela saída e alcançaram a calcada, o calor intenso a pegou de
surpresa. Olhou para o jardim cheio de rosas e sentiu uma pontada de angustia:
- Já é verão? - perguntou. - Não é possível! Você teve aquela febre no outono!
Com frieza imperturbável, Luc a conduziu até o carro sem dizer nada. Catherine
havia perdido muito mais que algumas poucas semanas de memória, mas ele não
podia lhe contar e aumentar ainda mais seus temores. Como reagiria, se soubesse
que era incapaz de se lembrar de mais de um ano da própria vida?
Vendo que ele não respondia, Catherine insistiu:
- Luc, o que está acontecendo comigo? O que houve com a minha cabeça?
- Não tente forçar nada. Ladwin me disse para não
obrigá-la a recordar as coisas. Recomendou paz e descanso e garantiu que tudo
vai voltar ao normal. Sua memória vai retornar mais cedo ou mais tarde. Pode
ser um processo lento, gradual, mas também pode ocorrer de uma hora para outra
e de uma vez.
- E se não acontecer?
- Qual é o problema? Você não me esqueceu, isso já é o bastante - sorriu.
E qual mulher poderia esquecer Luc Santini? Podia amá-lo com paixão, odiá-lo
com intensidade, mas esquecê-lo....
- Está pretendendo adiar o casamento? - quis saber, temendo que ele escolhesse
a atitude mais sensata. Afinal, quem pensaria em se casar com alguém incapaz de
lembrar-se do passado?
- É isso que quer?
Catherine balançou a cabeça. O que mais poderia esperar? Por que ainda tinha
medo de perdê-lo? Luc a pedira em casamento! O que mais queria que ele fizesse?
No entanto, sabia que Luc a amava. Se decidira ficar com ela para sempre era
porque, certamente, pensava no quanto a situação seria conveniente. Não era uma
mulher difícil ou geniosa, nunca tivera outro amante, era louca por crianças e
sempre fazia o que ele queria. E, na hora do amor... nunca dissera não a ele,
incapaz de conter o próprio desejo. Simplesmente o amava. E, o que era melhor,
nunca pedira nada em troca de tanto amor.
A voz de Luc arrancou-a das reflexões.
- O casamento será realizado em poucos dias - comentou com tom casual. Em
seguida pegou o telefone do carro e fez a primeira de uma série de ligações.
Vendo que era observado, abraçou-a e puxou-a para mais perto, sorrindo e
dizendo em voz baixa: Parece feliz....
Só uma mulher apaixonada podia perder um ano de lembranças e ainda sentir-se
feliz. Catherine encostou a cabeça no ombro dele e sorriu para si mesma,
perguntando-se se haveria outra pessoa com mais sorte que ela em todo o mundo.
Talvez, se fizesse de tudo para ser a esposa perfeita, Luc poderia amá-la algum
dia.
-Estamos no meio de um congestionamento - sussurrou, afrouxando a gravata para
ele e abandonando as inibições habituais, lembrando-se de que estavam prestes a
tornar-se marido e mulher. Notando que ele alterava o tom de voz, sentiu-se
animada a prosseguir e terminou de tirar sua gravata.
- Catherine... o que está fazendo?
Apesar do embaraço causado pela pergunta, ela baixou a cabeça e desabotoou a
camisa de Santini. Era fácil compreender por que estava tão perplexo. Era a
primeira vez que tomava a iniciativa de aproximar-se e demonstrar o desejo
febril que a devorava.
Havia tanto prazer no simples fato de tocá-lo... Deslizou os dedos pelo peito
bronzeado e distribuiu beijos suaves e delicados pelo pescoço e pelo peito
dele, obrigando-o a suspirar.
- Catherine... - murmurou, entre surpreso e satisfeito.
As reações de Luc, diferentes do controle que sempre demonstrava, causaram uma
inesperada sensação de poder. Ele tremia, visivelmente inebriado pelo prazer
que o invadia.
- Catherine... não devia estar fazendo isso.
- Estou me divertindo.
- O que quer fazer com a minha consciência?
- Que consciência? - murmurou, sem interromper as carícias.
- Não podemos fazer isso! Estamos perto do aeroporto.
- E no meio de um congestionamento - disse, fitando-o com um brilho de desejo
intenso nos olhos.
Luc beijou-a com paixão, quase violência, demonstrando toda a ansiedade que o
queimava por dentro. Envolvida pelo abraço febril, Catherine sentiu que todas
as fibras de seu corpo gritavam por ele, como se fosse um narcótico, uma droga
da qual fosse dependente.
No entanto, no momento seguinte Luc interrompeu o beijo e afastou-se. Tentava
controlar-se quase com desespero e, após alguns segundos, disse com tom mais
calmo:
- Você ainda não está bem, Catherine. Tem de descansar. Portanto, tenha piedade
e pare de me torturar, está bem?
- Mas... eu não estou doente! - protestou, relutando em afastar-se. - Estou
ótima!
Apesar de tentar demonstrar bem-estar, tinha dificuldade em ignorar a dor na
base do crânio.
- Só está dizendo que está bem porque acha que eu vou ficar mais tranqüilo, mas
eu sei que é mentira. É obvio que está fraca e cansada. E não quero mais que
minta para mim, certo?
- Certo - murmurou, lutando para conter a explosão que ameaçava vir a tona. Por
que estava rindo? Não havia nada de engraçado na decepção que experimentava. No
entanto, não pôde conter as gargalhadas quando se lembrou da expressão de susto
no rosto de Luc quando ela tomara a iniciativa.
Estava chocado. Quem poderia imaginar que um dia Catherine tomaria tal atitude?
E não era maravilhoso saber que ele estava disposto a sacrificar-se, a negar e
conter os impulsos normalmente tão ávido só para vê-la recuperada?
Abandonar o egoísmo já era caminhar metade da estrada em direção ao amor...
Agora Luc dava instruções furiosas a um infeliz qualquer do outro lado da
linha, um subordinado que certamente não entendia as razoes de tanto mau humor.
Atravessaram o saguão do aeroporto cercados pelos seguranças, que faziam de
tudo para afastar os fotógrafos e repórteres, os quais Luc odiava. Costumava
resguardar a própria privacidade com tanta ferocidade que vários jornais o
chamavam de grosseiro e ríspido, quando não usavam adjetivos piores.
- Quem é a loura, sr. Santini? - perguntou um deles, gritando para ser ouvido a
distância.
E foi então que aconteceu o inesperado, Luc abraçou Catherine e sorriu, antes
de anunciar:
- É a futura sra. Santini.
Houve uma movimentação repentina e um clamor de perguntas, acompanhadas pelo
espocar das câmeras. Mas a generosidade de Santini para com a imprensa terminou
com a declaração.
Estavam atravessando o portão de embarque quando Catherine foi invadida por uma
estranha sensação. Parou, estremecendo de medo. Era como se recordasse uma
mulher mais velha, grisalha, cujo rosto gentil mostrava-se contraído:
- Não faca isso... Não faça! - implorava a imagem.
E sumiu de sua mente em seguida, deixando-a pálida e atônita.
- Não... não posso... - gaguejou.
- Catherine! - censurou Luc.
- Não posso! Não sei por que, mas não posso! - gritou, tentando retroceder.
Santini a segurou pelos pulsos e puxou-a para si, abraçando-a com força.
- Catherine, fique calma - pediu.
- Não posso entrar naquele avião! - insistia, tomada pelo pânico.
- Pare com isso - sorriu ele. - Eu estou com você - e levou-a para dentro do
jatinho. O comandante os esperava, pronto para decolar. Luc cumprimentou-o com
gentileza e indicou: - Por favor, comandante, ignore minha noiva. Ela tem pavor
de qualquer coisa eu voe.
- Fique tranqüilo, sr. Santini. Faremos um vôo maravilhoso.
Luc acomodou Catherine em uma das poltronas e ajustou o cinto de segurança. Em
seguida encarou-a e disse, retendo as mãos dela com carinho:
- Respire fundo e acalme-se - instruiu. - Se quiser, pode ir gritando até Roma,
mas não vai adiantar. Por favor, pense nesse dia como o primeiro de nosso
futuro juntos, está bem?
- Eu vi aquela mulher... - sussurrou, pálida e com os olhos arregalados de
medo. - Foi como se me lembrasse de alguma coisa. Ela dizia que... eu não
devia...
- Não devia o quê?
- Ela não disse - confessou, percebendo o quanto estava sendo tola e infantil.
- Tive a sensação de que não devia entrar no avião, de que deixava algo
importante para trás... Foi tão forte que fiquei apavorada.
- E agora? Ainda está com medo?
- Não, já passou. Desculpe, Luc. Fiz papel de maluca, não foi?
- Não se preocupe com isso. Sua memória deve estar voltando.
- Acha mesmo? - perguntou animada. - E por que senti tanto pavor?
- Talvez por causa do choque... Não foi uma experiência muito agradável, não é?
Viajaram durante duas horas. Além da tripulação, composta pelo comandante, um
comissário e uma aeromoça, havia os dois homens de segurança, um executivo da
empresa que anotava todas as indicações de Luc, e uma secretaria que redigia
mensagens e relatórios. O mais estranho era que nenhum deles chegava perto de
Catherine. Na verdade, fugiam de qualquer tentativa de aproximação.
- Pode me dar uma revista? - pediu à aeromoça.
- Sinto muito, sra. Parrish, mas não temos revistas a bordo. Não quer almoçar?
- Obrigada - respondeu, esquecendo-se da revista. Afinal, só veria as
gravuras... Mais cedo ou mais tarde, teria de contar a Luc sobre a dislexia.
Apesar de temer a reação, sabia que não poderia enganá-lo por muito tempo. Era
estranho, mas até então havia sido muito fácil.
Se tivesse que examinar um cardápio, Luc escolhia o prato por ela. Nunca
estranhou o fato de preferir decorar os recados telefônicos, em vez de
escrevê-los, e nuca mencionou a raridade com que lia um livro. Às vezes
escolhia um romance e deixava-o sobre a mesa para ela, mas nunca fazia
perguntas sobre a história.
Lembrou-se de quantas vezes fora chamada de estúpida, antes que o problema
fosse diagnosticado na escola. As professoras preferiam ignorar a dislexia,
afirmando que só tinha de esforçar-se mais para conseguir bons resultados. E
todas aquelas pessoas que a tratavam como se fosse analfabeta... Se Luc
descobrisse que a futura esposa desconhecia o mundo escrito, vendo-o como um
amontoado de borrões e imagens desconexas, certamente mudaria de idéia com
relação ao casamento.
Quando aterrissaram em Roma, Santini informou que fariam o resto da viagem de
helicóptero.
- Onde vamos ficar? - perguntou ela.
- Em casa - foi a resposta simples e direta.
- Em.... Você comprou uma casa? - surpreendeu-se.
- Espere só para ver.
- Eu nunca estive aqui antes, não é? Não me esqueci desse lugar, esqueci?
- Não, você nunca veio à Itália - riu.
Catherine odiou o helicóptero e preferiu um lugar na parte de trás, recusando o
assento dianteiro que Luc lhe ofereceu para que pudesse ter uma visão ampla do
lugar. O barulho das hélices girando e a dor de cabeça se combinaram de maneira
desagradável, causando um enjôo de estomago quase insuportável. Manteve a
cabeça baixa e só ergueu os olhos quando tocaram a terra firme outra vez.
Luc ajudou-a a descer e perguntou preocupado:
-Como está?
- Não muito bem - respondeu ela. - Estou me sentindo tonta e enjoada.
- Eu devia ter imaginado... Desculpe, mas queria que visse Castelleone de cima.
E então, o que acha?
Se não estivesse amparada nos braços dele, teria caído de surpresa. Castelleone
era um castelo antigo, cercado por uma floresta de pinheiros que terminava nas
montanhas verdes, atrás da construção. O Sol do entardecer refletia nas
inúmeras janelas e dava um aspecto alegre as paredes de pedras claras e bem cuidadas.
Apesar de conhecer o temperamento de Luc, não imaginava nada tão...
extravagante.
- Não estava á venda quando o vi, e nem era tão bonito com agora...
- Bonito? - protestou ela. - É maravilhoso! E deve ter custado uma verdadeira
fortuna!
- Tenho dinheiro de sobra e não pude encontrar nada mais interessante onde
gastá-lo - sorriu, acariciando os cabelos dela. - É uma construção tombada pelo
patrimônio histórico, o que é muito inconveniente, mas consegui convencer as
autoridades a permitirem algumas restaurações. Os peritos são muito chatos,
sabe? Por mim, teria derrubado asa paredes e feito tudo outra vez.
- Está brincando!
- Brincando? Por acaso já morou em algum lugar que tivesse um encanamento do
século XVII? Pelo menos nesse aspecto consegui convencê-los. O encanamento
antigo ira para um museu e eu desistiria de derrubar as paredes.
- Você disse que não estava à venda....
- Tudo tem um preço, bella mia - disse e abraçou-a. - E o antigo proprietário
não possuía nenhuma ligação sentimental como o castelo. Não relutou muito
diante da oferta tentadora que fiz.
- Chegou a me falar sobre isso?
- Não. Eu queria fazer uma surpresa - disse, guiando-a até a ponte de pedra que
havia sobre o fosso. As portas da entrada principal estavam abertas, e o hall
era coberto por painéis pintados nas paredes.
- Nunca vi não tão lindo! - exclamou Catherine.
- Nem todo mundo tem um vestíbulo cheio de anjinhos e ninfas nuas... Acho que o
construtor não era o que se pode chamar de uma pessoa de bom gosto - riu.
- Se não gosta, por que comprou? - quis saber, tentando esconder o cansaço.
- Foi um investimento.
- Isso significa que está pensando em vendê-lo? - perguntou com ar
decepcionado.
- Não, se você disser que não se importa em morar com todas essas mulheres nuas
- riu.
- É claro que não me importo!
- Não sei por que, mas sabia que ia gostar. - Luc observou o rosto pálido e as
olheiras profundas. - Já é hora de ira para a cama.
- Não quero ir me deitar. Estou louca para ver o resto do castelo! - exclamou,
com medo de estar sonhando com tanta felicidade. Casar com Luc e viver num
castelo...
- Já teve toda a agitação que podia para um único dia. - Então segurou-a pelo
braço, notando que ela pretendia dirigir-se a uma das portas. - Por que está
sorrindo?
- Porque acho que morri e cheguei ao céu e porque... - hesitou, envolvendo-o
num olhar cheio de adoração. - Porque amo você.
- Não sou nenhum santo...
- Acho que posso conviver com os seus defeitos - riu.
- Não vai ter outra escolha, porque eu nunca concordaria com um pedido de divórcio.
- Não é nada romântico falar de divorcio antes do casamento.
- Catherine... já devia saber que eu não sou romântico. Não sou poeta nem
idealista nem sentimental - confessou.
- Mas faz amor em italiano - comentou ela.
- É minha língua natal!
Por alguma razão, Luc estava ficando irritado. Catherine decidiu não insistir
no assunto. Se ele achava que levá-la para morar num castelo na Itália não era
romântico, devia ter algum problema. Talvez sentisse vergonha em admitir.
Concordou em segui-lo ao andar de cima. No final da escada interminável, Luc
parou para apresentá-la a um homem chamado Bernardo, o mordomo do castelo.
- Acha que pode ficar em pé sozinha? - perguntou ele, depois de carregá-la
pelos degraus para que não se cansasse ainda mais.
- Só se for por poucos segundo - riu ela.
Santini abriu a porta e voltou a pegá-la nos braços, deixando-a sobre a cama
ampla, coberta por uma colcha cor-de-rosa, bordada com uma infinidade de laços.
- Eu chamei um medico - informou ele. - Virá vê-la em meia hora. Aposto que ele
vai espantar-se com esse seu ar de felicidade.
- E por que eu preciso de um medico?
- Porque a amnésia é uma condição angustiante, e todas aquelas coisas que já
ouviu no hospital. De qualquer forma... não me lembro de tê-la visto tão feliz.
- Porque nunca me pediu em casamento antes - riu ela.
- Que descuido o meu! Mas você também nunca tentou me seduzir no banco traseiro
do carro. E quanto ao médico, fique sossegada. O dr. Scipione não é do tipo
exagerado. Ele acha que o tempo cura tudo, sabe? - e dirigiu-se á porta. - A
esposa de Bernardo virá ajudá-la a preparar-se...
- Não é necessário.
- Catherine, uma das vantagens de ser minha esposa é não ter que fazer nada.
Poupe suas energias para coisa mais importantes, está bem?
- Essa é uma das vantagens? E as outras? - brincou.
- Ficam por conta de sua imaginação. Buona sera, cara. Até amanhã.
- Até amanhã? - sentou-se assustada.
- Precisa descansar - e saiu, fechando a porta.
Catherine ficou sozinha, deitada de costas e olhando para o teto. Era estranho,
mas não conseguia se lembrar de ter tratado Luc com tanta desinibição antes. Na
verdade, toda vez que tinham de conversar, sentia-se apavorada, como se tivesse
de atravessar a cratera de um vulcão adormecido, porem prestes a entrar em
erupção. No entanto, agora era diferente.
Não tinha consciência das velhas barreiras e não sentia receio de Luc. Quando
acontecera? Certamente em algum momento do passado que a memória se recusava a
iluminar.
E que importância tinha tudo isso? Estava feliz, o resto eram apenas detalhes
insignificantes.
CAPÍTULO
V
O conteúdo do armário era digno de admiração. Catherine pediu a Giulia, a
pequena criada, que abrisse as outras portas: vestidos para o dia e a noite,
roupas de lazer, prateleiras de meias finas, lingeries fantásticas e caixas e
caixas de sapatos, tudo agrupado de acordo com as cores. Um grande auxílio para
alguém que era incapaz de combinar os próprios trajes, pensou ela. Luc havia
lhe comprado um guarda-roupa completo.
E uma coleção tão cara e ampla não poderia ter sido adquirida de um dia para
outro. Só havia uma explicação: Luc havia planejava levá-la para a Itália há
muito tempo, talvez meses.
Giulia apanhou um par de chinelos e uma camisola e levou-os até a cama.
Perfeito. Então a criada estava lá para educá-la na arte de escolher o melhor
traje para cada ocasião. Luc pensava em tudo!
Eram oito horas da noite. Catherine dormiu quase vinte e quatro horas, perdendo
o primeiro dia vida em Castelleone.
Na noite anterior, Francesca, a esposa de Bernardo, fizera questão de colocá-la
na cama com os cuidados de uma mãe. O dr. Scipione, um homem pequenino e com
uma grande semelhança com Papai Noel, havia terminado de fazer a consulta.
Antes de sair, o media explicara:
- A mente esquece algumas coisas porque quer esquecer. É comum como se fechasse
uma porta para proteger o resto do organismo.
- E do que eu haveria de querer me proteger? - sorriu ela.
- Pergunte a si mesma qual é o seu maior medo e terá encontrado a resposta. Só
quando puder enfrentar esses temores a porta voltará a se abrir. E eu suspeito
de que ainda não esteja pronta para isso.
Qual era o seu maior temor? Há algum tempo receava perder Luc, mas, desde que
ele a pedira em casamento, a insegurança desaparecera. Não devia preocupar-se;
um pequeno lapso na memória não seria o suficiente para estragar os momentos de
felicidade.
Vestida com o traje cor de cereja, um pouco mais justo do que Giulia esperava,
especialmente na região dos seios fartos, Catherine sorriu e sentou-se diante
do espelho, reconhecendo as jóias deixadas sobre a penteadeira. O relógio, cuja
pulseira fora gravada com a data do primeiro encontro com Luc, o colar e os
brincos de diamante e um delicado bracelete, presentes de Natal e aniversario,
respectivamente. Ah, aquele Natal na Suíça...
Levantou-se e saiu do quarto, debruçando-se sobre o balcão da galeria. Bernardo
estava lá em baixo. Desceu as escadas correndo e dirigiu-se ao mordomo,
perguntando em italiano ruim:
- Buona será, Bernardo. Dov’ é signor Santini?
O criado parecia angustiado. Baixou a cabeça e resmungou alguma coisa
inaudível. E então Catherine ouviu vozes altas, amplificadas pelas paredes do
castelo. Virou-se e compreendeu o motivo da agonia de Bernardo.
Uma das portas estava encostada. Uma mulher alta, morena e bem vestida gritava
com alguém, provavelmente Luc, que estava fora do campo de visão. Estaria
acusando ou implorando?
Era Rafaela Peruzzi. A única pessoa que Catherine conhecia capaz de discutir
com Luc Santini e ainda conservar o emprego no final do dia. Ocupava um espaço
nebuloso na vida de Santini, alguma coisa entre empregada e velha amiga. Uma
mulher forte e eficiente, Vivia, respirava, comia e dormia trabalho... e Luc.
Rafaela crescera com ele. Moldara a própria personalidade à dele. Era fiel,
leal e devotada aos interesses dele. E, em certa época também dividia uma cama
com ele. Era uma peca do passado na vida de Luc, mas o passado transformava-se
em esperança de futuro no brilho de seus olhos, cada vez que o fitava. E Cathe
sabia disso.
- Tem seis semanas pela frente. Trate de aproveitá-las como puder - disse a
Catherine na primeira vez em que a vira.
- Luc nunca passa mais de três meses com a mesma mulher. E com essas roupas que
está usando, metade desse tempo já será um grande desafio para ele.
Luc a ouvia em silencio. Raffaela soluçou alto e voltou a falar em italiano.
Catherine decidiu afastar-se, envergonhada por não ter pensado nisso antes.
Ouvir conversas atrás das portas era horrível!
No dia anterior, Santini permitira que a imprensa publicasse a notícia do
casamento. Raffaela lera os jornais e agora estava sofrendo. Penalizada,
Catherine agradeceu aos céus por não estar no lugar dela.
Santini era o Sol em volta do qual Raffaela gravitava. Não podia suportar tanta
dor, mesmo não tendo nenhuma relação com ele. Afinal de contas, ela era como
Luc. Teimosa, obstinada, preocupada com os próprios interesses e desejos....
Não ia desistir tão fácil. Gostasse da idéia ou não, Cathe era forcada a
admitir que os dois formariam um par perfeito.
Uma porta rangeu, obrigando Bernardo a fugir. Mas Catherine não foi tão rápida.
Raffaela saiu da sala e aproximou-se dela, como um tubarão que vislumbra uma
vitima fácil.
- Sua cretina! - gritou, partindo para o ataque direto. - Ele não acreditou em
nada do que eu disse, mas voltarei assim que puder provar tudo! E, quando eu
conseguir, você vai ser posta para fora como um monte de lixo!
- Raffaela! - Luc aproximou-se como uma pantera disposta a defender a prole.
- Fique tranqüilo, Luc. Eu só queria olhar bem de perto a tal mulher mais
honesta e sincera que disse ter conhecido! Pode estar certo de que vai engolir
essas palavras, caro Santini!
Bernardo surgiu de algum lugar escondido e apressou-se a acompanhá-la até a
saída. Catherine voltou a respirar devagar, recuperando-se do ataque. Raffaela,
fora de controle e tomada pela dor, era uma experiência apavorante para alguém
tão frágil quanto ela. E as coisas que dissera... Em que Luc teria de
acreditar?
E o que ela pretendia provar? Por que seria posta para fora como lixo?
- Do que ela estava falando? - perguntou.
Luc demorou um pouco para responder. Ainda demonstrava a forte tensão dos
últimos minutos, mas conseguiu controlar-se e sorrir.
- Nada. Não quero que se preocupe com as maluquices de Raffaela, está bem?
Como não preocupar-se? Sentiu que ele a segurava pelos ombros e a guiava em
direção ao salão.
- Mas, Luc... - tentou.
- Cathe, não quero que fique pensando em Raffaela.
- Por quê?
- Porque ela não trabalha mais para mim.
Sentindo-se culpada, Catherine o encarou surpresa. Raffaela vivia para a
carreira.
- Mas, Luc, ela estava aborrecida. Será que não pode perdoar?
- O que há de errado com você? - perguntou ele, incrédulo. - Em seu lugar, ela
teria lhe apertado o pescoço até que caísse morta! Aquela mulher invadiu minha
casa, me insultou, ofendeu minha noiva... e você me pede para perdoar? Não
posso acreditar!
- Ela perdeu a cabeça, e isso não teria acontecido se... se.... se Raffaela não
o amasse.
- Posso viver sem esse tipo de amor, obrigado!
- Às vezes você é tão insensível, Luc...
- Traduzindo para uma linguagem mais clara, está dizendo que sou um canalha,
não é?
Ninguém criticava Luc Santini. Raffaela podia até discutir, mas nunca chegara
ao extremo de criticá-lo. Por ser uma criança prodígio, no meio de uma família
simples e pobre de dotes intelectuais, Luc Santini entrara no mundo adulto
muito cedo e se tornara incapaz de considerar as necessidades e súplicas de
qualquer um além dele mesmo.Estava errado, e Catherine estava disposta a manter
a opinião, apesar das conseqüências. Não podia permitir que tratasse Raffaela
daquela maneira, como velha amiga em um momento e como empregada no instante
seguinte. Não pensou na dor daquela moça quando a manteve tão perto, atenta
apenas às necessidades da empresa, mesmo sabendo o tipo de sentimento que
nutria por ele. Alimentara esperanças inúteis, e isso não era certo.
- Eu não disse que você é um canalha - corrigiu. - E, por favor, não grite
comigo!
- Desculpe, eu estava nervoso. E você às vezes me choca, Catherine. É como se
vivesse no mundo das nuvens, imaginando que as pessoas são anjos que vieram
para salvá-la. Tem de aceitar a realidade dessa vida, Catherine!
- Só disse que Raffaela merece um pouco de compreensão. É tão absurdo assim?
- Compreensão? Se você estivesse morrendo na beira de uma estrada, ela venderia
ingressos aos que parassem para ver. Não confio mais naquela mulher e sei muito
bem do que ela é capaz. Na primeira oportunidade que tiver, vai cravar uma faca
nas suas costas, mesmo que isso custe a própria vida para ela. Esse assunto
está encerrado, está bem? Vamos jantar e...
- Não vai nem lhe dar uma carta de referencias?
Luc respirou fundo, visivelmente aborrecido com a insistência.
- Tudo bem... Se faz tanta questão... - concordou.
Não era o tipo que pensava em compromissos. Compromisso era um degrau
descendente em direção ao fracasso, e o fracasso era a pior coisa para Luc
SantinI.
- O que achou do dr. Scipione? - perguntou a ela quando terminaram o jantar.
- É muito gentil. Ele é o médico da cidade?
- Ele mora em Roma - respondeu Luc, olhando-a com ar incrédulo. - E é uma das
maiores autoridades do mundo em amnésia.
- Meu Deus! E eu o tratei como se fosse qualquer um!
- Catherine, uma das suas grandes qualidades é a habilidade de tratar a todos
como seres iguais - murmurou com um sorriso, acariciando as mãos dela. - Tenho
de admitir que suas maneiras são muito melhores que as minhas. Mudando de
assunto, há alguns papéis que tem de assinar antes do casamento. Podemos tratar
disso agora?
- É claro que sim.
Acompanhou-o até a biblioteca, onde ele estivera com Raffaela um pouco antes. A
sala era composta por prateleiras que iam do teto ao chão, todas repletas de
livros, e por uma mesa grande e imponente ao lado da janela maior.
Ao ver a pasta de documentos, Cathe não pôde evitar um certo desconforto.
Burocracia... Não podia haver pesadelo pior para um disléxico!
- Esse aqui é o.... - estendeu uma caneta a ela, que não conseguia sequer ouvir
as explicações. - Assine aqui - concluiu, indicando o local com o dedo.
O papel era um amontoado de manchas azuis.
- É só assinar? - perguntou, temendo que houvesse mais coisas a fazer e que ele
não tivesse dito, por presumir que poderia lê-las.
- Sim, só assinar.
Catherine escreveu o próprio nome, devagar e com cuidado.
Ele retirou o documento e colocou outro em seu lugar.
- E agora?
- A mesma coisa. Assine aqui.
- É só isso? - perguntou com medo, depois de assinar pela segunda vez. Aliviada
ao vê-lo afirmar com a cabeça, comentou:
- Uma vez você disse que eu não devia assinar nada sem ler.
- Esses papéis foram escritos em italiano, cara.
- Ah... Eu não prestei atenção - disse, envergonhada por não poder identificar
sequer o próprio idioma. Como saberia que o documento estava escrito em outra
língua?
Antes que pudesse virar-se, sentiu que ele a segurava pelos ombros para que o
encarasse.
- Não é só isso. Não acha que já é hora de pararmos com esse jogo? Se é que
ainda não percebeu, essa brincadeira já nos causou muitos problemas e
desentendimentos.
- Jo... jogo? - gaguejou, pálida.
- Por que acha que eu escolho os pratos para você, quando jantamos fora?
- Porque... assim não perdemos tempo...
- E acha que eu sou insensível a ponto de preferir não perder tempo, a
satisfazer suas vontades? Catherine, eu sei que tem problemas para ler desde a
primeira semana que passamos juntos, em Londres. Percebi, apesar de todos
aqueles truques, e tenho de confessar que fiquei chocado.
Catherine, não pôde conter as lagrimas. Queria que o chão se abrisse e a
engolisse. A voz dele, embora calma e controlada, era como uma faca afiada
penetrando em seu coração. Tudo que desejava era fugir, mas os braços fortes a
seguravam pela cintura como correntes de aço.
- Vamos esclarecer isso agora mesmo. Por que não me contou que era disléxica?
Eu não percebi. Notei que sentia vergonha e achei melhor não fazer perguntas,
para não feri-la. Como não sabia qual era o problema, esperei que fosse fazer
alguma coisa para mudar a situação.
- Não posso! Fizeram tudo o que podiam por mim na escola, mas nunca serei capaz
de ler direito.
- Agora eu já sei. Consegui descobrir que é disléxica, mas naquela época eu não
sabia. Eu pensei que...
- Pensou que eu fosse uma analfabeta! - soluçou. - Nunca vou perdoá-lo por
isso!
- Quer fazer o favor de me ouvir? Sei que também tive culpa. Preferi o caminho
mais fácil, como o avestruz que enterra a cabeça na areia. Podia tentar
ajudá-la e teria feito isso se soubesse a verdade. Mas você preferiu
esconder...
- Me deixe em paz! - gritou, soluçando de dor e humilhação.
- Não entende o que estou tentando dizer? Se eu soubesse, não teria ficado
furioso quando vi que não se esforçava para melhorar.
- Você sentiu vergonha de mim! - acusou.
Luc a abraçou e acariciou-lhe os cabelos dourados, procurando acalmá-la.
- Eu nunca tive vergonha de você. Não há nada para se envergonhar. Einstein era
disléxico e Leonardo da Vinci, também. - Se foi bom para eles, também pode ser
bom para você - brincou.
- Luc! - ela sorriu entre soluções e lagrimas. - Aposto que a dislexia deles
não era tão ruim quanto a minha!
- Não sei como fui tão tolo. Você não tem senso de direção, não distingue a
direita da esquerda... e às vezes é um pouco esquecida. Como não percebi antes?
Apesar da explosão emocional, Catherine agora se sentia aliviada.
Finalmente, não teria mais de preocupar-se com os truques e mentiras de sempre.
Agora ele sabia toda a verdade.
- Você não se importa? Realmente não liga?
- Só fiquei aborrecido porque não confiou em mim o bastante para dizer a
verdade. Mas, agora que esclarecemos tudo, podemos procurar um especialista e
resolver tudo isso de uma vez. Sofrer em silencio não é coragem, Cathe. É
tolice - sorriu. - Eu teria entendido. Vivemos num mundo onde a capacidade de
leitura e interpretação é muito valorizada. Como conseguiu o emprego na galeria
de arte?
- Elaine datilografava os catálogos para mim.
- Segredos sempre criam mal-entendidos, sabia?
- Não há mais nenhum segredo - sorriu, fitando-o dentro dos olhos.
Luc a abraçou com força e beijou-s com suavidade.
- Já é tarde - disse em seguida. - É melhor ir para a cama. Estou esperando por
um telefonema importante e terei de ficar mais um pouco. O fuso horário...
Então era isso. Não podia imaginar Luc Santini sentado ao lado de um telefone,
esperando por uma chamada, por mais importante que fosse. As pessoas o
procuravam de acordo com sua conveniência, não as delas. Só mesmo uma diferença
de horário poderia fazê-lo esperar.
Dirigiu-se á porta da biblioteca e disse, antes de sair:
- Estou muito feliz. E me sinto muito bem.
Apesar de ter tomado banho há poucas horas, decidiu passar por uma boa ducha.
Quinze minutos depois, perfumada com uma das muitas essências que encontrou no
armário do banheiro, Catherine vestiu a camisola negra que já estava sobre a
cama e deitou-se, ansiosa, esperando por Luc.
O tempo foi passando. Ainda refletia sobre a cena na biblioteca, pensando no
quanto fora tola por não ter contado tudo desde o inicio, quando adormeceu e
teve um sonho bastante estranho. Estava diante de um espelho, escrevendo
palavras desconhecidas e chorando.
Havia tanta dor na imagem refletida que sentia vontade de gritar. Acordou
assustada, notando que o travesseiro estava molhado de lágrimas.
Alguém havia apagado a luz.. Tentou pensar no sonho, certa de que alguma coisa
nele poderia trazer uma parte da memória de volta, mas era tão pouco... Só
conseguia lembrar-se da dor estampada no próprio rosto, uma dor intensa e
profunda.
Levantou-se, foi ao banheiro e lavou o rosto. Quem apagara a luz? Só podia ter
sido Luc. Fora vê-la e encontrou-a dormindo.
Aproximou-se da porta que dava passagem para o quarto dele e notou que estava
trancada. Saiu do quarto e foi até o corredor, tentando descobrir que horas
seriam... Sem conseguir, entrou nos aposentos de Luc pela porta comum. Ouviu o
ruído do chuveiro e sorriu. O ambiente estava escuro, mas um triangulo de luz
escapava pela porta do banheiro. Se ele ainda estava no banho, não podia ser
tão tarde quanto imaginava. Em silêncio, deitou-se na cama.
O barulho da água cessou, e a luz foi desligada quase no mesmo instante. Um ou
dois segundos depois, Luc parava na frente de uma das janelas e abria as
cortinas. Ficou apreciando a paisagem banhado pela luz da lua, totalmente nu.
Pouco depois voltou a fechar as cortinas e foi para a cama.
Deitou-se e, quando foi ajeitar o travesseiro, os corpos se tocaram.
- Dio.... - assustou-se, estendo o braço e acendendo a pequena lâmpada da
cabeceira. - Catherine, era o último lugar onde esperava encontrá-la.
- Eu... não conseguia dormir...
- E agora eu não vou poder... Venha cá - e estendeu a mão, puxando-a para mais
perto. - Tem idéia de quanto eu quero você?
- Estou aqui - sussurrou.
E, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, ele a beijava com uma intensidade
que beirava a violência. Era como um homem sedento, perdido no deserto,
encontrando um oásis de água limpa e fresca. O fogo corria pelas veias de
ambos.
Segurou-a pelos ombros. As mãos queimavam, como se ele tivesse febre, e o corpo
pressionava o dela com força cada vez maior.
Os dedos desfizeram um laço de seda que prendia a camisola e no instante
seguinte ela estava nua.
- Luc... - murmurou ela, sentindo os olhos que se cravavam em seu corpo com
desejo.
- Você é linda - disse ele, puxando-a contra si e beijando-a com desespero,
deslizando os lábios em direção aos seios perfeitos.
Incapaz de conter a paixão, Catherine suspirou e abraçou-o com forca. As mãos
dele passeavam pela pele suave e perfumada, estendendo os momentos de prazer e
torturando-a com as sensações que provocavam.
No auge da excitação, Catherine gritou o nome dele, mas Luc a silenciou com os
próprios lábios. Todos os pensamentos desapareceram de sua mente, ocupada
apenas pela urgência de satisfazer o desejo crescente e alcançar o ponto máximo
de prazer. E quando finalmente ele chegou, em ondas sucessivas, era como se o
mundo fosse povoado por pequenos seres brilhantes e encantados, cuja única
função na face da terra fosse iluminar as noites dos amantes.
Ouvindo os gemidos de Luc ecoando pelo quarto, Catherine perguntou-se se alguma
vez havia sido tão envolvente, tão poderoso e intenso. Não lembrava de outra
ocasião como aquela, nem de ter visto Luc tão descontrolado e pronto a
entregar-se por inteiro. Podia recordar o desejo, o prazer, a excitação que
sempre dividiam, mas... nunca como naquela noite.
E, infelizmente, também não havia esquecido que, nesse momento, ele costumava
ir direto para o chuveiro, enquanto ela ficava sozinha , desejando apenas poder
ficar em seus braços.
No entanto, agora ele a abraçava como se tivesse medo que fugisse.
- Tive um sonho estranho - disse, temendo quebrar o silencio e estragar o
encanto da hora. - Não sei se me lembrei de alguma coisa ou se foi só sonho
bobo...
- Não quer me contar?
- Vai rir de mim.
- Prometo que não.
- Eu estava escrevendo em um espelho - murmurou. - Pode imaginar um absurdo
igual? Nunca escrevi nada além de meu nome e, no entanto, lá estava eu,
escrevendo com batom e em um espelho!
- Que divertido! - riu ele.
- Não tinha nada de engraçado. Pelo contrario, eu estava sofrendo muito. E não
acredito que isso tenha alguma coisa a ver com a minha memória. O que acha?
- Acho que está falando demais e que podemos aproveitar o tempo fazendo coisas
mais agradáveis - murmurou, puxando-a para mais perto e beijando-a com carinho.
Depois, vendo os cabelos que se espalhavam por cima do travesseiro, comentou
com ar crítico:
- Não anda cuidando muito dos cabelos, não é? E também andou usando a tesoura
neles...
- Não me lembro disso -confessou com tristeza. - E amanhã mesmo vou procurar um
bom salão de beleza.
- Posso mandar alguém aqui para cuidar disso.
- Eu gostaria de ver Roma...
- Trânsito, calor, correria, poluição... Isso sem falar nos turistas - e
beijou-a para evitar os protestos.
Voltou a acariciá-la, desta vez com gentileza e doçura, usando todos os truques
de sedução que aprendera ao longo da vida. Por mais incrível que pudesse
parecer, era ainda mais excitante que da primeira vez.
Quando Catherine abriu os olhos, no dia seguinte, havia uma rosa branca sobre o
travesseiro. Descobriu-a por acidente, ao estender a mão para procurar Luc. Lá
estava a rosa. Teve vontade de chorar, tal a emoção que sentiu. Poria as
pétalas secas dentro de um livro. Não podia imaginar Luc Santini colhendo uma
rosa. Certamente o jardineiro fizera o trabalho por ele. Mesmo assim, o que
importava era a intenção; para um homem pouco romântico, estava esforçando-se
bastante para agradar. E foi esse pensamento, mais que a flor no travesseiro, o
causador da torrente de lágrimas de felicidade.
CAPITULO
VI
Ouviu e reconheceu os passos que se aproximavam, apesar do sono causado pelo
calor. Um enorme guarda-sol proporcionava uma boa sombra, de onde Catherine viu
Luc sentar-se na confortável espreguiçadeira ao seu lado.
Castelleone estava tomado pela agitação que precedia o casamento, e a paz, a
privacidade e a organização habituais cederam espaço ao constante entra e sai
de modistas e decoradores. O entusiasmo de Luc esfriou no momento em que
percebeu o tumulto acarretado por uma recepção para mais de cem pessoas.
- É como se os convidados já estivessem aqui, gritando e fazendo barulho -
comentou de mau humor.
-Não queria uma grande festa?
- Pensei que você fosse gostar?
- Ficaria satisfeita só com os padrinhos e os amigos mais íntimos.
- E agora é que me diz?
O barulho dos copos interrompeu a conversa. Antes que Bernardo pudesse
aproximar-se mais, Luc levantou-se e apanhou a bandeja.
Catherine observou o comportamento do futuro marido com ar divertido. No dia
anterior, um pequeno avião passara pela propriedade voando baixo, o que
provocou a proibição imediata dos banhos de sol de topless e uma reclamação
veemente à Força Aérea local. Como pudera demorar tanto tempo para perceber o
quanto Luc era conservador e antiquado com relação a certas coisas?
- Adoro o jeito como você fica deitada aqui fora, como se nada estivesse
acontecendo - comentou ele com ironia.
- Bernardo sabe o que está fazendo - respondeu, omitindo o restante do
pensamento. Se ele parasse de interferir e dar ordens, como se os empregados
fossem incompetentes e inúteis, os arranjos finais já estariam terminados.
Olhou para Santini e não pôde conter um suspiro. Amanhã....
No dia seguinte seriam marido e mulher. Desde que chegaram à Itália, os dias
passavam com velocidade assustadora, em meio a um clima de felicidade completa.
Nunca passara um período como aquele, só descansando e aproveitando. Era
maravilhoso compreender de repente o que se pode conseguir com o dinheiro.
- Em que está pensando? - perguntou Luc.
- Amanhã eu serei rica... - sorriu com ar ausente e sonhador.
- Você é a única mulher no mundo capaz de fazer um comentário como esse antes
do casamento - riu ele.
Catherine limitou-se a sorrir outra vez. Luc era maravilhoso, fantástico,
bonito, incrível, divino... Fitou-o com paixão e notou que ele a olhava com um
brilho de desejo.
A resistência e as barreiras que impunha com freqüência agora eram só
lembranças do passado.
Na noite anterior Luc falara sobre a família, coisa que nunca havia feito
antes. A morte dos pais e da irmã no acidente de avião o abalara muito, mas era
um assunto no qual jamais tocara.
Na verdade nunca chegara perto de admitir a dor que senti. E Catherine tinha
certeza de que Luc não admitiria a culpa que sentiu quando eles morreram. Na
escalada em direção ao poder, havia deixado a família para trás.
Os negócios sempre ocuparam o primeiro lugar. Havia mandado a família numa
viagem de férias caríssima, para desculpar-se por mais uma visita cancelada, e
nunca mais voltou a vê-los com vida. Contou toda a historia na noite anterior,
numa das conversas confidenciais que só aconteciam ao abrigo da escuridão do
quarto. Até então, Catherine não podia compreender o quanto era difícil para
ele expressar qualquer coisa que o tocasse de maneira tão profunda.
Levantou-se e ajeitou a parte superior do biquíni, notando que os olhos dele
vagavam por todo seu corpo. Percorrida por uma onda de satisfação, percebeu a
intensidade do desejo que era capaz de despertar.
- Gosta quando olho para você desse jeito? - perguntou ele com ar divertido.
Catherine baixou a cabeça envergonhada, antes de responder:
- Não pensei que fosse notar.
- E como não perceberia? Você é o retrato de presunção....
Inclinando o corpo para frente, Luc a atraiu para perto e beijou-a, explorando
sua boca numa atitude provocativa e sensual. O mundo passou a girar mais
depressa, causando uma espécie de vertigem que a deixava tonta e confusa. Não
importava quantas vezes ele a tocasse, era sempre assim. Desde que o vira pela
primeira vez, soube que jamais seria capaz de resistir à atração intensa e
poderosa.
No inicio, sentia-se apavorada. Inocente, acreditava que, se quisesse, Luc
poderia descobrir o mesmo prazer com outras mulheres. Mas agora pensava
diferente. Durante as longas horas de paixão e desejo, que transformavam a
noite em dia e o dia em noite, a força da ânsia de Luc era capaz de levá-la a
exaustão.
Ele se afastou, relutante:
- Você me torna insaciável - sussurrou: - Duvido que leve muito tempo para
ficar grávida, se continuarmos assim.
- Grávida? - exclamou, entre confusa e apavorada.
Luc a segurou pelas mãos e beijou-as com carinho.
- Não diga que acredita na historia da cegonha! Se ainda não percebeu, o que
estamos fazendo nos últimos dias tem uma conseqüência natural, que vai alem do
imenso prazer que sentimos.
- Eu sei, mas...
- E não estamos tomando nenhuma providencia para evitar os resultados óbvios -
lembrou, demonstrando uma calma tão absoluta quanto inesperada.
Catherine estava chocada. Como um problema tão grave, que normalmente a
preocupava e obrigava a tomar todas as medidas de precaução, pudera desaparecer
de sua mente de
forma tão completa e repentina? Não havia pílulas anticoncepcionais na bolsa, o
que indicava que não as usava há muito tempo. Era estranho, pois lembrar do
remédio diário era o principal dilema de sua vida. Toda vez que esquecia de
tomá-las por um ou dois dias, era invadida por ondas de horror e pânico. Se Luc
soubesse quantas vezes estiveram perto do desastre, com certeza se sentiria
como ela agora.
O passado de ambos não a preparara para uma reação tão calma e tranqüila. Era
estranho ouvi-lo falar sobre um bebê como se fosse a coisa mais natural do
mundo. O que era... entre pessoas casadas.
Naquelas circunstâncias, decidiu que o pânico gerado pelo comentário era quase
absurdo. Teria de começar a pensar sobre reprodução com mais naturalidade dali
para frente.
Como se não percebesse a tempestade que acabava de desencadear na futura
esposa, Luc puxou-a para mais perto e perguntou com tom carinhoso:
- Não percebeu que não estávamos tomando nenhum cuidado?
- Não - murmurou, sentindo-se culpada.
- Pois eu quero filhos, enquanto sou jovem o bastante para poder brincar com
eles.
E por que não disse antes, em vez de simplesmente jogar a decisão sobre sua
cabeça como estivera fazendo? Não mesmo instante, pensou na possibilidade de
gerar um filho de Luc e sentiu-se feliz, incapaz de censurá-lo por não ter
mencionado nada até então.
- Tem razão - sorriu.
- Sabia que concordaria comigo. Agora em vez de ficar olhando para todos os
bebês que passam perto de você, vai poder pensar no nosso filho.
- É... é verdade...
- Não é maravilhoso?
Luc nunca dissera coisas tão lindas. Pelo contrario, até pouco tempo, a simples
idéia de um bebê o deixava furioso. Era surpreendente ouvi-lo dizer que queria
filhos com tanta calma.
No entanto, bastou refletir sobre o assunto durante um ou dois minutos para
perceber que tudo fazia sentido. Luc cuidava dos preparativos do casamento como
se tratasse do negócio mais importante de toda sua vida. Mostrava-se ansioso e
cheio de expectativas.... e queria um herdeiro. Ninguém constrói um império sem
pensar na dinastia. Mesmo assim, sentia-se incapaz de livrar-se do medo
irracional que a assaltava.
Por que tanto pavor? Amava Luc, adorava crianças... Onde estava o problema? Mas
a sensação inquietante persistia, a ponto de fazer sua cabeça começar a doer.
Quando o telefone tocou sobre a mesinha do jardim, não pôde evitar um
sobressalto.
Luc falava em japonês, com a calma e a frieza de
quem conhecia uma dúzia de idiomas. Quando desligou o aparelho, uma pequena
ruga de preocupação marcava o rosto bronzeado.
- Negócios - informou com um suspiro. - Tenho de ir lá dentro e fazer algumas
ligações. Volto o mais rápido que puder.
A luz do sol brincava sobre a superfície da piscina. Uma brisa suave formava
ondas minúsculas e inquietas, que possuíam efeito quase hipnótico. A cabeça de
Catherine doía demais para que pudesse pensar com clareza. Talvez fosse o
calor, ou o excesso de sol...
Um som próximo arrancou-a do estado de prostração. Uma criança surgiu por entre
as arvores, perseguindo uma bola colorida que rolava rápido em direção a
piscina. Assustada, Catherine levantou-se de um salto. Mas o garoto conseguiu
pegar a bola antes que chegasse à água. No mesmo instante, uma das criadas
aproximou-se correndo.
- Scusi, signorina, scusi! - pediu, desculpando-se pelo incômodo e pegando a
criança nos braços.
Quando mãe e filho afastaram-se, Catherine respirou fundo e tentou recuperar a
calma.
A dor na base do crânio tornou-se insuportável por um breve segundo, mas agora
começava a ceder. E, no entanto, havia algo ainda pior que a dor aguda de
momentos atrás. Algo que oscilava entre choque e o horror. Apanhou o telefone e
pressionou a tecla de comunicação interna. Uma das secretárias atendeu.
- Aqui é a srta. Parrish - informou, tossindo para limpar a garganta e obrigar
a voz a sair num voluma audível. - Quero que anote um numero da Inglaterra e
faça a ligação, por favor. É urgente! - e forçou a memória, buscando o nome
completo de Peggy, o endereço e o número de telefone da amiga.
Tremendo convulsivamente, sentou-se antes que as pernas não pudessem mas
sustentá-la. Que tipo de mãe seria capaz de esquecer o próprio filho?
- Oh, Deus, me faça acordar. Isso só pode se um pesadelo horrível! - rezou.
E então o telefone tocou.
- Alô.
- Peggy, aqui é Catherine. Daniel está com você?
- Está brincando lá fora - respondeu a amiga com tom calmo. - Você tentou
telefonar antes? Nosso telefone ficou quebrado durante dois dias.
- Bem, eu...
- Sabia que ficaria preocupada - interrompeu Peggy com a ansiedade habitual. -
Tentei entrar em contato com você, mas o aparelho público da cidade vive com
defeito. Quando consegui ligar não havia ninguém em casa. Pensei que estivesse
fazendo compras, ou procurando um emprego melhor que o que tem na casa da sra.
Anstey.
- Eu....
- Daniel está se divertindo muito. Planejamos sair para um passeio mais longo,
mas se quer falar com ele...
- Não, tudo bem.
Fui seqüestrada, estou na Itália e me caso amanhã. Pensou em revelar a verdade
a amiga, mas certamente Peggy pensaria que estava maluca. De qualquer forma,
estaria em casa antes que o filho voltasse para Londres. Ninguém precisava
saber o que havia acontecido.
- Catherine, Daniel está em esperando para o passeio. Posso telefonar depois?
- Não, não... Não estou em casa... Quero dizer, estou ligando de um telefone
público. Mande um beijo para Daniel - e desligou, encostando-se na
espreguiçadeira.
Os eventos da ultima semana ocupavam seus pensamento com clareza absoluta. Fora
humilhada, enganada... Mais uma vez, Luc demonstrava seu verdadeiro caráter.
Aproveitara as circunstancias inesperadas e, enquanto ela não sabia sequer o
que acontecia à sua volta, manobrara os fatos de forma a impor a própria
vontade de maneira imperdoável. E fora tão fácil quanto roubar o doce de uma
criança. Criança! Bebê!
Ainda havia mais essa!
Durante uma semana, agira como se estivesse vivendo quatro anos atrás. E Luc
tomara todos os cuidados para que não recuperasse a memória. Não havia jornais,
televisão, calendários... nada que pudesse trazê-la de volta ao presente.
Todos os detalhes calculados com precisão desumana, cruel.
Nenhum erro. Sentia-se fisgada e presa em uma rede, como se fosse um peixe. Só
que um peixe teria lutado pela sobrevivência, enquanto ela se atirara à rede
com a passividade de um suicida.
Sempre fora assim. Luc conseguia tudo que queria. Escrúpulo era uma palavra
inexistente em seu vocabulário. O resultado final era o que contava, não os
meios de obtê-lo. Acreditava que ela planejava casar-se com Drew e, sabendo que
o divórcio estava próximo, não podia dar-se ao luxo de esperar mais. Era um
luta contra o tempo. Sabia que, se tivesse se atirado aos pés dele naquela
noite, o casamento jamais teria sido mencionado.
Mas resistir aos encantos de Luc era o mesmo que desafiá-lo. E ele nunca
recusava um desafio.
A imagem humilhante do peixe na rede não a deixava em paz.
Sentiu que a raiva tornava-se cada vez mais intensa; uma raiva que não conhecia
limites, poderosa a ponto de produzir reações físicas que até então
desconhecia.
Nesse momento Luc apareceu. Catherine lembrou-se do episodio no banco traseiro
da limusine e teve vontade de matá-lo com as próprias mãos. Seria a única forma
de saciar a sede de vingança que a sufocava.
Ergueu o corpo, apanhou um copo de água da mesa e atirou-o sobre ele.
Vendo que errara o alvo, começou a gritar furiosa:
- Seu trapaceiro sujo, mau caráter, canalha, mentiroso! - e atirou outro copo,
que foi seguido pelo aparelho de telefone. - Seu rato, explorador! - e apanhou
um dos sapatos, sentindo o ódio atingir proporções assustadoras. - Seu
bastardo! - e então parou com os insultos, sentindo-se ferida por aquela
palavra. Jogou o outro sapato e gritou: - Eu vou matar você!
- Então é melhor usar veneno. Sua pontaria é péssima - disse ele, olhado em
volta, vendo todos os objetos espalhados pelo jardim.
- É só isso que tem a dizer? - berrou, prestes a ter um novo ataque.
- Já recuperou a memória, não é? Acho melhor ficar quieto, pela minha própria
segurança.
- Sua segurança não vai valer um centavo, quando eu puser as mãos em você. Se
estivesse morrendo de sede, eu não lhe daria água! Se fosse o único homem da
face da terra e eu a única mulher, a espécie humana estaria extinta! Você
merece uma boa surra, e seu eu fosse um homem já teria esmurrado sua cara!
- Se fosse um homem não estaria nessa situação...
- Vou denunciar você à policia! - ameaçou por encontrar uma possibilidade mais
próxima da realidade.
- Por quê?
- Por... por quê? E ainda tem coragem de perguntar? Você me seqüestrou!
- Eu droguei você? Abusei fisicamente? Tem testemunhas?
- Eu posso arrumar... Eu posso mentir!
- E como vai explicar aquela foto do aeroporto em todos os jornais? Por que
aquele ar de felicidade, quando eu anunciei nosso casamento aos repórteres?
- Você me manteve prisioneira nesse castelo durante uma semana!
- Tranquei as portas? Não me lembro de ter proibido você de sair.
- Abusou de mim fisicamente!
- Abusei? Quando?
Catherine ergueu-se nas pontas dos pés e gritou ainda mais alto:
- Sabe muito bem do que estou falando! Enquanto eu... eu não estava em juízo
perfeito, tirou vantagem da situação.
- É mesmo? Quer saber de uma coisa? Nessa última semana você esteve melhor do
que em toda sua vida. Duvido que tenha sido mais lúcida em alguma outra época.
- Como se atreve?
- Estou dizendo a verdade.
- Retire o que disse agora mesmo!
- Não. Quando estiver mais calma, vai compreender que eu disse a verdade.
- Mais calma? Estou dando a impressão de que vou me acalmar?
- Se soubesse nadar, juro que eu a jogaria na piscina.
- Não está nem arrependido, não é? - perguntou, cada vez mais furiosa e
descontrolada.
- E por que eu deveria estar?
- Por quê? Por quê? Porque eu vou obrigá-lo a se arrepender! Já devia saber que
não teria remorsos por ter me trazido para este castelo!
- Nisso está certa.
- Age como se eu fosse uma coisa, um objeto que pode usar e jogar fora quando
quiser!
Vendo que ele sorria, de repente compreendeu por que as pessoas cometem
assassinatos.
- Se acha que eu a trato como a um objeto, eu tenho o direito de pensar o mesmo
de você.
- Eu não estou falando de sexo!
- Eu sei que não. Percebi assim que desistiu da historia do abuso físico...
- Eu não desisti!
- Mas teve o cuidado de mudar de assunto. Catherine, você me quer tanto quanto
eu a quero.... Durante toda essa semana...
- Eu estava doente! Eu odeio você!
- Isso vai passar. Sei que vai superar e....
- Não quero superar nada! Eu vou embora!
- Um gesto típico da Catherine que eu conheço. Só que desta vez não vai
conseguir fazer a mágica do desaparecimento.
- Eu vou embora agora mesmo! - e virou-se para afastar-se.
- Cuidado com o vidro!
Mas era tarde demais. Um grito de dor escapou dos lábios de Catherine, cujo pé
sangrava com abundância. Rápido, Luc pegou-a nos braços e levou-a até a cadeira
mais próxima, obrigando-a a ficar imóvel.
- Fique quieta, se não quiser que o caco de vidro faça um corte mais profundo!
- Quero ir embora! - soluçou, vendo que ele começava a tirar o vidro da sola de
seu pé.
- Deve estar brincando! Quando tomou vacina antitetânica pela última vez?
- Há seis meses. Ouviu o que eu disse? Eu quero ir embora!
- Mas não vai!
Apanhou a toalha do chão e tratou de enrolá-la sobre o corpo de Catherine, como
se estivesse vestindo uma boneca.
- Não se atreva a pôr as mãos em mim! Não pode me obrigar a ficar aqui!
Num gesto inesperado, demonstrando que acabava de perder a paciência, Luc
atirou a toalha longe e pegou-a nos braços, jogando-a sobre os ombros como se
fosse um fardo.
- Me largue! O que pensa que está fazendo?
- Cuidando da sua saúde. Vai descansar um pouco, queira ou não. Você está
histérica, e já ouvi o bastante!
- Trate de me pôr no chão!
- Fique quieta!
- Odeio você! - soluçou, incapaz de conter as lagrimas de fúria e impotência.
Um minuto depois, Luc a jogava na cama com o mesmo cuidado que dispensaria a um
saco de batatas.
- Está feliz por dizer que me odeia? - perguntou, respirando fundo e tentando
manter a calma. - Per Dio, será que tudo isso não diz nada a você?
- Diz, sim! Que você é o sujeito mais sem escrúpulos que eu tive a infelicidade
de conhecer! E eu vou embora agora!
- Não vai a lugar nenhum!
- Não pode me impedir! E também não pode me obrigar a casar com você! - afirmou
com confiança redobrada, saindo da cama para apanhar o roupão sobre a cadeira.
Sentia-se exposta com o minúsculo biquíni que usava. - E agora que Drew já tem
o contrato, não tem como prosseguir com aquela chantagem ridícula.
- Ele só vai assinar os papeis uma hora depois do casamento.
Catherine parou onde estava e virou-se de repente.
- O que está querendo dizer?
- Que imaginei que isso pudesse acontecer.
- Ele... ainda não conseguiu o contrato?
- Receio que não.
- Não pode querer casar-se comigo sabendo que eu não quero.
- Não acredito nisso. E, quando chegarmos a Londres amanhã, sei que vai estar
bem mais receptiva.
Todos os pensamentos de Catherine concentraram-se na palavra mágica:
- Londres? - perguntou. - Vamos voltar à Inglaterra depois do casamento?
- É normal, não é? As pessoas costumam viajar na lua-de-mel.
É claro que Luc acreditava que a aliança teria o poder de prendê-la para
sempre. Mas, assim que chegassem à Inglaterra, não poderia impedi-la de partir.
Enquanto permanecessem na Itália, Luc estaria com seu passaporte e todos os
documentos.
Não podia estragar a única chance de fugir arriscando-se a ser detida pela
polícia no aeroporto.
Se não concordasse com o casamento, Drew sofreria as conseqüências. Furiosa,
chegou à conclusão óbvia: os planos de deixar Luc sem noiva no dia do tão
falado casamento iam por água abaixo. Mesmo assim, a possibilidade de voltar a
Inglaterra no dia seguinte era animadora. Ninguém poderia obrigá-la a
permanecer casada.
- Catherine, nem pense nisso.
- Não tenho mais nada a dizer. Já falei tudo o que pensava e o assunto está
encerrado.
- Temos de conversar - disse ele, ignorando as batidas na porta do quarto. -
Não vou deixar que estrague o casamento - e suspirou irritado, gritando em
seguida: - Avanti.
Bernardo surgiu na soleira acompanhado da secretária.
- Signorina Peruzzi - disse, mostrando o telefone sem fio e desculpando-se. -
Parece que o assunto é urgente.
- Não vou atender essa mulher, Bernardo - informou Luc. - E, por favor, nos
deixe sozinhos.
- Ele fala inglês! - exclamou Catherine assim que a porta foi fechada. - E você
deve ter dado ordens para só falarem comigo em italiano.
- Os criados pensam que quero que você melhore seus conhecimentos do idioma.
- Detesto você!
- Só está com raiva e acho que tem suas razoes, mas sei que vai passar.
- Pelo menos reconhece que tenho motivos para odiá-lo.
- Você me pertence, Catherine. Pelo amor de Deus, use o cérebro. Nunca a vi tão
feliz quanto nessa última semana.
- Eu estava vivendo no passado.
- E por que acha que voltou exatamente para essa época do passado? Vamos, pense
um pouco!
- Eu não escolhi! E tudo o que aconteceu nessa semana não é verdadeiro!
- Mas pode ser, se quiser.
A sensação de ter sido traída a matava aos poucos. E o pior de tudo era saber
que fora traída por si mesma. Em uma semana destruiu todas as coisas que
conseguira sozinha, todas as crenças e tudo o que era, tudo o que construíra
aos poucos depois de deixá-lo. Em um única semana, esmagara quatro anos de
auto-respeito e amor próprio, derrubando todas as barreiras que deviam
protegê-la.
- Não foi o que aconteceu entre nós.
- Foi o que sempre aconteceu entre nós! - ela afirmou. - Você decide, planeja,
manipula e faz as coisas como quer que aconteçam.
- Eu não planejei a sua perda de memória.
- Mas não perdeu a oportunidade de usá-la para satisfazer seus projetos
sórdidos. E não foi a primeira vez que fez isso. Quando voltamos da Suíça, meus
patrões não moravam mais no mesmo lugar, e a galeria havia sido vendida. E eu
não tinha mais emprego! Coincidência? Duvido! Você fez tudo isso, não foi?
- Eu só comprei o prédio - ele afirmou.
- E, assim, me convenceu a ir morar em Nova York...
- Eu queria você perto de mim. E estava impaciente... - confessou, olhando-a
com ar suplicante. - Eu sou assim, bella mia, e infelizmente não tenho poder
para mudar o passado.
- Mas eu tenho. Será que ainda não entendeu? Eu tenho!
- Catherine... o que quer que eu diga? Se quer que eu seja honesto, eu serei: a
única coisa que lamento muito em todo nosso passado é ter perdido você.
- Você não me perdeu.. você me jogou fora! - soluçou.
- Por que não tentou entender meu ponto de vista? Numa bela manhã, você olha
para a minha cara e joga a questão sobre minha cabeça. O que queria que eu
fizesse?
- Nada! Eu fui muito tola ao imaginar que o grande Santini poderia fazer o
favor de casar-se comigo!
- Eu não sabia que era tão importante! E por isso falei coisas erradas. Fui
cruel, eu sei, mas... se queria ouvir um pedido de desculpas, devia ter ficado
por perto, porque eu não pretendo me desculpar agora, depois de tanto tempo.
Quer saber de uma coisa? Eu não fui a Milão. Voltei ao apartamento uma hora
depois, e onde estava você?
Chocada com a revelação, Catherine arregalou os olhos e tentou dizer alguma
coisa, mas Luc estava falando novamente:
- Sim, onde estava você? Havia partido! Desaparecera no ar, como uma miragem,
deixando para trás tudo o que eu podia oferecer. Se queria vingar-se, pode ter
certeza de que conseguiu me atingir!
Afogando os soluços, Catherine correu para dentro do banheiro e trancou a
porta. Sentou-se no chão, enterrou o rosto entre as mãos e chorou como uma
criança desesperada.
O passado e presente mesclavam-se de maneira dolorosa e, agora, diante das
novas revelações, sentia-se mergulhar num oceano de desespero.
CAPITULO
VII
Catherine sentia-se a mais tola das criaturas! No momento em que Luc a pediu em
casamento, fora abandonada pela própria inteligência.
Ignorara os pensamentos negativos e os fatos que insistiam em vir à tona,
determinada a confiar nele e a proteger a própria felicidade. Se Luc pretendia
aproveitar as circunstâncias oferecidas pela amnésia, o sucesso fora absoluto.
Como se atrevia a sugerir que ela mesma escolhera a parte do passado que
preferia ver? Estaria pensando que se lembrava da fase em que ainda viviam
juntos por ser a época mais feliz de sua vida? Naquela noite, no apartamento de
Drew, Luc a colocara entre duas escolhas impossíveis: sacrificar o amigo ou o
filho. Lutaria até o fim para manter Daniel afastado do pai.
Mas Drew também merecia lealdade e consideração, tanto por ele mesmo quanto
pela gratidão que devia a Harriet, sua irmã. Como escolher entre Daniel e Drew?
Luc envenenava tudo o que tocava. No entanto, se estava disposto a casar-se
apenas para garantir sua presença na cama, não aceitaria Daniel como parte da
barganha? Apesar de saber que há cinco anos ele odiaria a idéia de ter um
filho, agora as coisas eram diferentes....
Daniel era inocente e vulnerável, um pequeno garoto com um intelecto grande
demais para que pudesse controlar sozinho. Luc também fora um garoto
inteligente... e vejam no que se transformara! Duro, frio, calculista e
inescrupuloso. Devia correr o risco de ver o filho crescer e tornar-se um
adulto tão detestável? Os traços herdados do pai já não seriam mais que
suficientes?
Daniel era teimoso, um pouco agressivo e, se não pudesse contar com supervisão
constante, bastante egoísta. Catherine passara quatro anos e meio lutando para
vê-lo crescer como uma criança normal, e não um pequeno gênio afastado do mundo
pela grandeza da inteligência.
Odiava Luc com todas as forcas! Abrigada pela solidão, agarrou-se ao ódio como
uma fonte geradora de forcas, afastando as suspeitas sobre Luc não ser tão frio
e calculista quanto imaginava e silenciando a voz interior que insinuava a
possibilidade de ele ter mudado com o tempo.
Se tinha de casar-se, então casaria. E, assim que chegassem em Londres, o
abandonaria. Já havia feito isso antes e faria novamente, mas desta vez não
seria tola. Levaria todas as jóias que ganhara e as venderia. Depois, usaria o
dinheiro para construir uma vida melhor para ela e Daniel.
Infeliz, olhou em volta e compreendeu que vivia uma fantasia. Um lindo castelo
para a garotinha que sonhava em ser princesa. Um casamento maravilhoso, para a
adolescente que acreditava na felicidade eterna. Mas, para a mulher adulta e
realista em que se transformara, não existia nada. E a culpa era só dela! Uma
mulher crescida deveria ser capaz de perceber a diferença entre fantasia e
realidade.
Um certo não sei o quê.... Não era assim que Luc explicava o que havia entre
eles? Uma palavra de quatro letras teria sido menos romântica, porem mais
verdadeira: sexo! Provavelmente a única fraqueza do grande Santini.
- Catherine, você está bem? - ouviu-o perguntar.
- Seu nojento!
- Mas... de que diabo está falando agora? Se não sair desse banheiro, eu vou
arrombar a porta!
- A força é a única resposta que tem para tudo, não é?
Mobilizado por uma forca súbita gerada pelo orgulho, Catherine levantou-se e
despiu-se, entrando no banho. Talvez o barulho do chuveiro o convencesse a ir
embora e deixá-la em paz.
Sexo! Em retribuição ao fato de estar sempre pronta a deitar-se em sua cama,
Luc estava disposto a abrir mão dos padrões rígidos de exigência e casar-se com
ela. Azar dele, que teria de suportar as conseqüências.
Era atraente, rico e sensual. Nove entre dez mulheres caíam aos pés dele no
primeiro encontro. Infelizmente, agora ela era a décima. Infelizmente para ele,
claro!
Podia ter uma noiva, mas nunca teria uma esposa. E restaria a vida inteira para
que se arrependesse de tê-la obrigado a aceitar o casamento. Quando fosse
embora e o abandonasse, horas após a cerimônia, Luc teria que suportar a
vergonha sozinho.
Agora era a hora da vingança. Passaria para a história da sociedade como a
mulher que rejeitara o solteiro mais cobiçado do mundo. Era perfeito. Pena que
não pudesse ficar por perto para aproveitar a publicidade. As manchetes seriam
colossais:
“ Por que não pude viver com Luc Santini! “
Saiu do banho, vestiu o roupão e voltou para o quarto. Agora era uma mulher com
uma missão, uma mulher que deixava de ser a vitima para ser o carrasco.
A rolha da garrafa voou longe. Luc inclinou a cabeça, bebendo o excesso de
champanhe que escorria pelo gargalo. Em seguida sorriu e serviu a bebida em
duas taças de cristal fino.
- A força não é minha única resposta - disse. - E você está parecendo uma
lagosta. Ficou tanto tempo no chuveiro, que deve ter usado toda a água quente
do castelo.
Não esperava que ele ainda estivesse lá. Encarou-o com desprezo acentuado e
proposital, mas foi como se não tivesse sequer olhado para ele. Atravessando o
quarto com graça e agilidade, Luc colocou um dos copos em sua mão.
- Você não está apaixonada por Drew. Se estivesse, teria dormido com ele.
O simples fato de ter de encará-lo era doloroso. Os nervos voltaram a acusar o
abalo e as mãos começaram a tremer. Era uma batalha desigual. Não estava pronta
para um novo confronto, e ele sabia disso. No entanto, sorriu para si mesma
diante de tanta arrogância. Luc acreditava que seria capaz de arrastá-la de
volta para o inferno nas próximas vinte e quatro horas! Pois não sabia o que o
esperava.
- Você não seria capaz de entender um homem como Drew, nem que vivesse cem anos
- respondeu, fingindo frieza.
- Ele a atrai porque é um fracassado, um perdedor. E você tem pena dele.
- Drew não é um fracassado - disse, tomando um gole de champanhe para
acalmar-se.
- Está levando uma empresa a falência com uma série de decisões erradas. E a
Huntingdons sempre foi respeitada, antes de passar para as mãos dele.
- E, mesmo com tantos problemas, consegue ser mais fino e gentil do que você,
que tem uma vida tão confortável.
- Você está numa posição privilegiada, cara. Ninguém mais poderia dizer tal
coisa sem sofrer as conseqüências.
Catherine arrepiou-se, sentindo-se como uma criança censurada por embaraçar um
adulto. Os comentários que Luc fazia sobre Drew a deixavam furiosa, mas no
fundo sabia que ele estava certo. Drew nunca fora ambicioso o bastante para ser
bem-sucedido e, além disso, havia permitido que a família tivesse um padrão de
vida acima das posses, usando um capital que deveria investir para garantir o
futuro da empresa. No entanto, tais fatos não faziam com que gostasse menos
dele. E, quando pensava na semana de sofrimento que tivera que suportar,
esperando pela decisão a respeito do contrato, odiava Luc com intensidade ainda
maior. Não.... jamais revelaria a existência do filho a um homem tão sem
escrúpulos.
- Você prejudicou Drew - sussurrou, disposta a permitir que Luc pensasse que
realmente mantinha um relacionamento com aquele homem. - E você não é meu dono.
- Eu não preciso ser seu dono. Você me pertence de corpo e alma. Pode ter se
afastado, fugido, mas agora está volta ao lugar que sempre foi seu.
- Eu não quero esse lugar e não quero ficar com você!
- Por que tem de lutar comigo? E, o que é pior, com você mesma?
- Não estou lutando comigo.
- Então venha aqui e prove...
- Não! - exclamou, temendo ceder a força magnética que ele possuía.
- Está com medo. Você tem medo de mim, e eu não gosto disso. Não quero esse
brilho de pavor em seus olhos amanhã à noite, quando nos tornaremos marido e
mulher. Quero aquela criatura feliz e encantadora que conheci na ultima semana.
- Eu não estava feliz. Estava doente.
- Se eu não tivesse tanta certeza do amor que
sente por mim, não me casaria com você.
- Aposto que não faz a menor diferença - disse,
tentando afastar-se.
- Se for esconder-se no banheiro outra vez, juro
que derrubo a porta. Vamos resolver esse assunto agora mesmo! Quero saber por
que está colocando tantos empecilhos novamente.
- Por quê? E ainda pergunta, depois de tudo o que
fez?
- O que foi que eu fiz? Passei anos à sua procura
e, no momento em que a encontrei, decidi me casar com você. Não é um grande
elogio?
- Elogio?
- Uma ofensa eu sei que não é...
- Mas eu não quero me casar com você!
- Você me fascina...
Esse era o verdadeiro Luc. Conseguia dizer as
piores coisas como se estivesse fazendo elogios. Era tão firme e atraente... Se
perdesse a cabeça por um segundo sequer, quando voltasse á realidade já estaria
na cama dele novamente.
- Não vai conseguir me convencer com palavras
doces. E muito menos com esse ar sedutor! - exclamou, recuando até se encostar
na parede.
Ele se aproximou devagar e retirou o copo da mão
dela.
- Eu não preciso seduzi-la. Você sabe melhor do
que ninguém o que podemos fazer juntos... Sabe muito bem o quanto nossas
experiências são eróticas e intensas.
- Sexo! É só nisso que sabe pensar! Eu não sou o
tipo de mulher que está pensando, ouviu bem?
- Não. E só vou ouvir se disser alguma coisa que
me interesse. Está insistindo nessa historia de sexo há horas, mas pode
esquecer. Não vou facilitar as coisas tentando convencê-la a ir para a cama
comigo.
- Ainda bem, pois não conseguiria!
- Prefiro esperar até amanhã - sorriu, antes de
sair e fechar a porta.
Catherine correu atrás dele e trancou a porta com
chave. Depois atirou-se na cama, percebendo o quanto estava exausta pelas
emoções intensas das ultimas horas. Adormeceu em seguida.
Quando acordou, sentia-se terrivelmente sedenta e quente. Levantou-se, encheu a
taça de champanhe e bebeu como se fosse suco. Alguém havia batido na porta há
pouco tempo ou seria só imaginação?
Lembrou-se dos últimos acontecimentos e foi obrigada a admitir o fracasso. Luc
vencera a ultima batalha. Não estava preparada para vê-lo adotar a mesma
atitude da semana passada, doce e calmo. Na verdade, ele não dera a menor
importância ás coisas que ouvira. Se é que ouvira...
Era detestável admitir, mas odiar Luc não a deixava imune á atração que exercia
sobre ela. Enquanto o amava, podia suportar o fato de não ser capaz de
resistir. Mas agora que o detestava, era imperdoável.
Abriu o armário de roupas e buscou algo para vestir, mas as batidas na porta a
interromperam. Era Giulia, a criada, e por alguma razão vinha acompanhada por
Bernardo, que carregava um imenso molho de chaves.
- Não preciso de ajuda, Giulia. Obrigada.
- Mas, signorina....
- O jantar será servido em uma hora e meia - informou Bernardo com ar de
súplica.
- Sinto muito, mas o jantar vai ter de esperar. - E bateu a porta, furiosa,
lembrando-se dos dias em que tivera de comunicar-se através de sinais, já que
ninguém falava em inglês na sua presença. E por que Bernardo ficara aflito por
ter de atrasar o jantar?
Tentaria ser o mais rápida que pudesse. E Luc ficaria muito satisfeito quando a
visse pronta. Sem dúvida, esse jantar seria muito especial... e divertido.
Escolheu a roupa em poucos minutos. Uma túnica negra, que mal cobriria os
quadris e cujo decote era bastante escandaloso, meias negras, sapatos da mesma
cor e de saltos altos e, para finalizar, um par de luvas negras.
Vestida, dirigiu-se ao banheiro para cuidar da maquiagem.
Uma combinação de sombras que iam do azul ao violeta, batom cor de sangue e
cílios postiços. Os cabelos teriam de ser presos no alto da cabeça para dar um
toque mais exótico. Terminada essa etapa, agora era a vez das jóias e
acessórios.
Os três braceletes de diamantes ficariam lindos por cima das luvas. O colar e
os brincos completavam a imagem: uma verdadeira árvore de Natal!
Saiu do quarto e desceu as escadas em direção ao salão, satisfeita com a reação
de Bernardo que, ao vê-la, ficou pálido como uma folha de papel
- Signorina Parrish - disse o mordomo, abrindo a porta para que ela passasse.
Por que estava sendo anunciada? Será que Bernardo imaginava que Luc não a
reconheceria naqueles trajes? Respirou fundo e passou pela porta. E então, uma
multidão de rostos virou-se em sua direção.
Só agora lembrava-se! Aqueles eram os amigos que Luc mencionara há alguns dias,
os que viriam para o casamento e ficariam hospedados no castelo!
- Desculpem, mas tenho de voltar ao quarto - disse, tentando sair do salão. Mas
Luc aproximou-se apressado e impediu que fugisse.
- Ela é tão moderna - disse uma das convidadas, uma adolescente acompanhada
pelos pais. - Mamãe, porque não posso usar maquiagem como ela?
- Estilo punk - comentou alguém. - Que interessante!
- Muito atraente - murmurou um homem alto e louro, que levantou-se da cadeira
onde estava e aproximou-se com um sorriso. - Luc, agora compreendo por que
escondeu sua noiva até o ultimo instante. Alô, eu sou Christian Denning -
sorriu, apresentando-se.
Em seguida todos os outros foram apresentados. Havia cerca de trinta pessoas no
salão, uma mistura de nacionalidades e idiomas, gente a alta sociedade, do
mundo dos negócios e da política. Quando finalmente pôde sentar-se, Catherine
respirou aliviada.
- Você tem as pernas mais lindas que eu já vi- disse Christian, sentando-se ao
lado dela. - É impressão minha, ou Luc escondeu você durante todo esse tempo?
- Você conhece Luc há muito tempo? - perguntou com desespero.
- Dez anos. Eu a vi na Suíça com ele, há sete anos. Mas não pude me apresentar,
porque Luc não permitia que ninguém chegasse perto de você.
Nesse momento Luc aproximou-se com expressão aborrecida e perguntou, irônico:
- Está se divertindo, Christian?
- É claro que sim. Não há um único homem nessa sala que não esteja morrendo de
inveja de mim. Por quê não nos apresentou antes?
- Talvez porque já soubesse como reagiria - e pegou Catherine pela mão. -
Venha, meu amor, já é hora do jantar ser servido. Todos estão gostando muito de
você - e beijou-a no pescoço, antes de dizer me voz baixa. - Esqueceu que
teríamos convidados, não é? Se visse sua cara quando entrou... Pena que não
tenha conseguido o efeito chocante que pretendia.
Mais uma vez ele estava certo. Entre aquelas pessoas, o que mais interessava
era ser diferente. Podia estar estranha para os próprios critérios, mas para
aquelas mulheres...
Uma senhora refinada e coberta de jóias sentou-se a seu lado na mesa.
- Você caça? - perguntou, tentando iniciar uma conversa.
- Só quando perco alguma coisa - respondeu Catherine, distraída como sempre.
Alguém riu baixo, divertindo-se com a resposta, e Luc interferiu:
- Minha futura esposa não gosta de esportes sangrentos.
- Então vai ter de fazê-la mudar de idéia - comentou uma loira vestida de
vermelho, com um sorriso sarcástico nos lábios. - Esportes sangrentos sempre
foram seu forte.
- E o seu também, querida irmã - censurou Christian.
O jantar parecia interminável. Luc sorria o tempo todo, o que a fazia sentir-se
desconfortável e pouco à vontade. O café foi servido no salão, e a irmã de
Christian sentou-se a seu lado, tentando puxar conversa.
- Não a vi com Luc em Nice, no ano passado - disse Georgina.
- Eu não estava lá.
- Mas ele estava com Silvana Lenzi e.... Oh, Deus,
será que falei demais? - fingiu.
- Disse exatamente o que pretendia, mocinha - interferiu a senhora refinada,
obrigando-a a mudar de assunto.
Do outro lado da sala, Luc parecia divertir-se com um grupo de homens. Silvana
Lenzi, não é?
Uma atriz de filmes de baixa categoria, conhecida pelos romances escandalosos e
freqüentes. Bem, era o tipo de mulher que ele merecia.
Se Luc envolvia-se com qualquer mulher que aparecesse, Cathe não tinha por que
se preocupar; o problema era dele, não dela.
Pouco minutos depois ele se aproximou sorridente, tentando convencê-la a ir
descansar.
- Faltam dez minutos para a meia-noite - sorriu. - E dizem que dá azar ver a
noiva no dia do casamento, antes da cerimônia.
Já estavam fora do salão, longe dos convidados, e Catherine não pensou em mais
nada. Esbofeteou o rosto de Luc com tanta violência que quase o jogou no chão.
- Isso é por Nice. E, se tiver de vê-lo depois da meia-noite, não será só uma
questão de azar. Será um castigo dos céus, o inferno na Terra!
- Boa noite, cara - respondeu ele com tom divertido. - Você é maluca, mas eu
gosto disso.
- Qual é o problema com você? - perguntou ela, incrédula com a reação.
- Tem cinco minutos para desaparecer da minha frente...
Vendo as marcas dos dedos no rosto de Luc, ela sentiu-se envergonhada pela
demonstração de descontrole.
- Eu... sinto muito - desculpou-se. - Não devia ter feito isso.
- Esta noite eu a perdôo por tudo.
E, mais envergonhada ainda pela reação calma e equilibrada de Luc, ela se virou
e subiu as escadas correndo em direção ao quarto.
Na manha seguinte, o movimento de gente entrando e saindo não era suficiente
para distraí-la. Primeiro foi o cabeleireiro. Depois, o maquiador e a manicure.
À medida que o tempo passava, sentia-se como uma boneca nas mãos de todas
aquelas pessoas. Finalmente eles retrocederam, aplaudiram, trocaram sorrisos e
cumprimentos pelo efeito conseguido.... Pronto. A boneca estava vestida para a
festa.
Catherine avaliou a própria imagem no espelho e não pôde deixar de dar razão
aos elogios que escutava.
A pequena igreja ficava a pouco mais de um quilometro do castelo. Entrou no
pequeno templo conduzida pelo braço de um duque espanhol, a quem vira pela
primeira vez na noite anterior. Cinco anos... Tarde demais.... Agora, tudo
aquilo não possuía o menor significado para ela... No entanto, quando chegou ao
altar e foi recebida por Luc, sentia-se incapaz de raciocinar.
- A noiva mais linda que eu já vi - disse ele, beijando-a na testa com
delicadeza.
Pouco depois, a aliança brilhava em seu dedo. Christian aproximou-se para os
cumprimentos, sorrindo e desejando toda a felicidade do mundo.
Na limusine, Luc a tomou nos braços e a beijou com paixão ardente de sempre,
como se nada de anormal houvesse acontecido. Incapaz de resistir por mais
tempo, Catherine soltou o buquê e o enlaçou com ternura, correspondendo ao
beijo com o mesmo desejo de sempre.
CAPITULO
VIII
A festa foi magnífica. Ao contrario do que esperava, Catherine sentia-se feliz
e satisfeita.
- Catherine...
- Hum... - murmurou, abrindo os olhos e erguendo a cabeça do ombro de Luc.
- É hora de partirmos.
- P... partir? - repetiu, confusa com a noticia.
- Isso mesmo. E depressa.
- Mas... os convidados ainda estão aqui - comentou, arrepiando-se quando ele a
puxou para mais perto e beijou-a nos lábios.
- Os convidados podem continuar dançando e conversando sem a nossa presença.
Tenho outros planos para nós.
Teria feito qualquer coisa para permanecer onde estava, nos braços de Luc. O
pensamento de afastar-se e quebrar o encanto do momento a amedrontava. Era como
despertar de um sonho lindo.
Como pudera ser tão tola a ponto de acreditar que o odiava? Vê-lo no altar fora
o suficiente para obrigá-la a ver a realidade dos fatos: não era ódio que
sentia quando ele a tocava; era amor.
A única emoção que sobrevivia aos testes de dor e desilusão, tempo e
maturidade.
Luc a conduziu para fora do salão de baile, indiferente aos fotógrafos que se
acotovelavam para registrar cada detalhe do evento. Na escada, abrigados pelas
sombras, ele a enlaçou pela cintura e beijou-a com ardor e sensualidade.
Quando se separaram, Christian os observava com um sorriso malicioso nos
lábios. Luc limitou-se a fitá-lo com indiferença, conduzindo a esposa pelos
degraus com segurança e firmeza. Lá em cima, Giulia a esperava para ajudar com
o vestido de noiva.
Confusa, a sra. Santini questionou a própria sanidade mental.
Afinal, só um louco teria se comportado como ela naquelas últimas vinte e
quatro horas. Será que todas as mulheres mentiam para si mesmas como ela havia
feito?
Agora se sentia como uma criança elaborando um plano de fuga, esperando ser
pega antes que pudesse escapar de verdade. Há quase sete anos, entregara o
coração àquele homem sem duvidas ou questionamentos, e agora percebia que ainda
pertencia a ele.
E que seria assim para sempre. Luc era uma espécie de botão de autodestruição,
mas deixá-lo também significava morrer aos poucos.
Uma vez, quando estavam na Suíça, Luc dissera que precisava dela. Depois disso,
Catherine passou anos esperando que ele repetisse a confissão, mas não foi em
vão. Bastou ter certeza de que era amado e sentir-se seguro para desistir de
qualquer demonstração de afeto ou carinho.
Isso acontecera pouco antes do inicio do tormento de ouvi-lo repetir a cada
instante que o que havia entre eles não seria para sempre. Era terrível.
Aprendera a conviver com a felicidade de ser beijada à noite, com a mágoa de
ser ofendida pela manha e com o pânico de ser abandonada a tarde. Luc
conseguira matá-la aos poucos.
- Ele é muito cruel com você - insistia Harriet. -E você é boa demais para
suportar esse tipo de sofrimento. Fez o melhor que pôde: protegeu Daniel das
garras desse monstro. Pode orgulhar-se de seu bom senso, querida.
Quantas vezes pensara em telefonar para ele... Certa vez, chegou ao cúmulo de
passar dois dias indo ao correio várias vezes, sem saber se devia ou não mandar
o cartão de feliz aniversario, pois sabia que, desde que a família morrera,
ninguém mais se lembrava da data... além dela, é claro. Mas Harriete percebeu e
impediu.
Felizmente havia Daniel... Como alguém poderia compreender o que aquele filho
significava? A primeira vez que o segurara nos braços, chorando como uma
criança desconsolada...
Não, ninguém poderia entender. Daniel e Harriet foram a única família que
possuiu, e agora só restava ele.
E por que planejava abandonar Luc novamente? Desta vez podia ser honesta
consigo mesma. Estava apavorada por ter de dizer a verdade sobre o filho, tão
aterrorizada quanto estivera ao descobrir que estava grávida.
Havia tanto a perder... Daniel acreditava que o pais estava morto. Fizera
tantas perguntas, muitas vezes, mas Catherine só entendeu o quanto ele sentia
falta do pai no dia em que Daniel explodiu, dizendo que, se fosse como os
outros garotos, não teria tantos problemas.
Com um mínimo de esforço, Daniel aceitaria Luc. Mas como reagiria ao descobrir
que a mãe mentira? E Luc, como agiria como o filho? Daniel era tão frágil e
inseguro... se não fosse aceito pelo pai, o sofrimento seria imenso. Além do
mais, era um filho ilegítimo. Mais cedo ou mais tarde, os jornais descobririam
e publicariam os fatos... e Luc não a perdoaria por isso.
E de onde tirara a idéia de que Luc considerava o casamento eterno? Era tão
imprevisível. Teria o direito de dar falsas esperanças ao filho? E se Luc não
concordasse com sua decisão de ter um filho, cinco anos antes?
Há menos de vinte e quatro horas pensava em fugir, mas agora compreendia que,
apesar de ser a saída mais fácil, não era a solução mais correta. E o que era
pior, não queria perder o homem amado. Queria confiar e ter esperanças e, acima
de tudo, tinha de acreditar que encontraria a resposta para tudo isso.
O que significava que teria de contar a Luc sobre Daniel.
Não podia perder tempo. Dois dias antes, Peggy estaria levando o garoto de
volta para Londres. Como contaria a ele?
No vôo para Londres... ou assim que chegassem ao destino, onde quer que fosse.
Quanto mais pensava no assunto, mais apavorada ficava.
- Você está tão pálida.
Desde que entraram na limusine, ela não conseguia pensar em mais nada. Qual
seria a reação dele? Um dia antes afirmava que Luc era frio, calculista e
inescrupuloso.
E, agora que descia das nuvens, compreendia que não era nada melhor que ele.
Era mentirosa, covarde, e havia fugido da verdade, negando ao próprio filho a
possibilidade de ter um pai.
- Disse que está muito pálida. E quieta, também.
- Eu... só estava pensando.
- Sobre o quê?
- Nada especial - mentiu, baixando a cabeça para que ele não pudesse ler a
verdade em seus olhos. - Quando chegamos a Londres?
- Eu não disse? Os controladores do trafego aéreo em Roma estão fazendo uma
greve de vinte e quatro horas. Só voaremos para a Inglaterra amanhã cedo.
- Não estamos indo para o aeroporto?
- Um amigo nos ofereceu a casa de campo por essa noite.
Seria a oportunidade perfeita para estar a sós com ele e contar toda a verdade.
Mas... teria coragem?
Uma governanta os esperava na porta de entrada. Quando Luc recusou a oferta de
jantar, ela os levou até andar de cima e mostrou o quarto que deveriam ocupar.
Era uma suíte enorme, cheia de espelhos e com uma cama imensa, coberta por
almofadas exóticas de seda pura. O cenário perfeito para uma noite de núpcias.
Se contasse a verdade esta noite, arruinaria tudo o que já havia acontecido e o
que estava por acontecer.
Luc aproximou-se e começou a beijá-la nos ombros e no pescoço.
- Devíamos ter jantado - disse ela.
- Por quê? Está com fome?
- Bem...
- Jantar não iria satisfazer meus desejos.... - e virou-a devagar, obrigando-a
a encará-lo. - O que há de errado com você?
- Errado? - assustou-se.
- Está com cara de criança que foi pega fazendo coisa errada.
Ou será que é só minha imaginação?
- Sim, é impressão sua - ela mentiu, baixando a cabeça e concentrando-se em
desfazer o nó da gravata de Luc.
- Minha imaginação raramente me engana - ele declarou, segurando as mãos dela
entre as suas. - Não confia em mim, não é? Prometo que nunca mais vou magoar
você, bella mia. Eu tinha apenas vinte e sete anos quando a conheci e não
estava preparado para uma relação verdadeira. Tentei adequá-la aos meus termos,
mas logo percebi que você não merecia. Sei que me amou muito e que, por isso,
não soube impor limites. Mas, agora, eu mesmo estou cuidando disso. Sabe de uma
coisa? Eu pensava que estaria sempre à minha disposição. Quando você foi embora
percebi que todos têm um limite para tudo. Pena que era um pouco tarde...
- Luc, eu...
- Não, por favor. Não quero mais falar sobre o passado. Não hoje. Se tem algo a
dizer, por favor, espere até amanhã, está bem?
Luc estava pedindo compreensão. Não seria um sinal de mudança, para alguém que
nunca aprendera a pedir?
Tirou a gravata, o paletó e abraçou-a com forca, beijando-a na testa e no
rosto.
- Eu quase não dormi a noite passada - confessou. - E, como a culpa foi sua,
esta noite não vou deixá-la dormir.
E beijou-a nos lábios com paixão. O vestido de seda caiu no chão, sobre o
carpete, antes mesmo que percebesse que ele a estava despindo. Os dedos
deslizavam suaves por toda a extensão do corpo, causando arrepios e ondas de
calor que a sufocavam.
Pegou-a nos braços e carregou-a até a cama, deitando-se a seu lado e colando o
corpo ao dela. A camisa foi desabotoada, e Catherine acariciava o peito
bronzeado e musculoso, sentindo nos dedos a reação de cada fibra nervosa.
- Lembra-se da nossa primeira noite, na Suíça? - perguntou ele, traçando uma
linha de beijos ao longo do pescoço delicado. - Você era tão tímida, tão
inocente.... E eu fui um canalha. Aquela devia ter sido nossa noite de núpcias.
- Eu fingi que era.
- Nunca havia feito amor com uma virgem, sabe? E queria que fosse especial para
você. Por isso a convidei para ir a Suíça.
- Foi muito especial - confessou ela, beijando-o com ternura.
- Obrigado. Muito obrigado, cara. Foi tão especial para mim que tentei
segurá-la a meu lado da maneira mais egoísta possível.
Aquele não era o Luc que Catherine conhecia. Carinhoso, delicado... Por um
breve segundo, foi como se visse Daniel adulto. O mesmo sorriso aberto e
franco, os mesmos olhos negros e belos. Um segundo depois, não foi capaz de
continuar pensando, Luc voltou a beijá-la, desta vez com lentidão e suavidade,
traçando uma linha de fogo que ia do pescoço aos seios.
Havia um espelho sobre a cama, e o reflexo das mãos dele em seu corpo causaram
uma excitação ainda maior.
- Há um espelho lá em cima - sussurrou.
- Que chocante - riu ele, sem afastar os lábios de seu corpo. - Da próxima vez
que falar com Christian, diga a ele que é um sujeito muito indecente.
- Esta casa é dele?
Luc afastou-se relutante, e começou a despir-se. Era lindo, atraente.... Não
podia tirar os olhos daquele corpo forte e másculo.
- Se continuar olhando para mim desse jeito, não respondo por meus atos - ele
brincou, voltando a deitar-se e abraçando-a com força, beijando-a no rosto, no
pescoço, nos seios...
- Não devia ter feito isso.
- Isso o que?
- Planejado fugir outra vez. Eu não permitiria. Pensa que não percebi? Às vezes
sei o que está pensando antes mesmo que acabe de pensar.
E voltou a beijá-la com desejo, embriagando-a com os carinhos cada vez mais
apaixonados. Catherine podia ouvir ao longe os gemidos e sussurros que traiam
toda a intensidade das emoções que experimentava.
As unhas arranhavam as costas bronzeadas e fortes numa expressão de tormento e
protesto, de súplica e êxtase. De repente, numa explosão súbita do corpo que a
possuía, sentiu as chamas abrasarem a pele em ondas sucessivas e incessantes.
Era selvagem, agressivo, como se estivesse sendo sacrificada a algum deus
primitivo do amor.
E assim Luc prosseguiu com força cada vez maior, até que ela soluçasse de
prazer e perdesse a noção dos limites, gritando as necessidades do próprio
corpo. A explosão de sensações incontroláveis e intensas foi seguida pelo
alivio e pela exaustão que os deixou estendidos na cama com um sorriso de
satisfação nos lábios.
- Dio! - gemeu Luc, aconchegando-se aos braços que o recebiam com carinho. - Te
amo!
Ele disse! Ele disse a frase mágica!
- Luc! -
- Scusi. Agora eu sei como é sentir-se um objeto sexual - suspirou com um
sorriso. - Você me fez perder o controle.
- Parece que invertemos os papeis, não é?
Catherine sorriu com alegria. Talvez ele nem soubesse o que havia dito. E era
melhor assim, porque a ultima coisa que desejava era vê-lo arrepender-se de ter
expressado os sentimentos.
- Amo você - disse, beijando-o no rosto. - Muito...
- Eu sei.
Era a felicidade completa. Agora não tinha mais motivos para preocupar-se e...
e Daniel surgiu como uma montanha bloqueando a luz do sol.
- Luc... O que pensa sobre filhos?
- Bem... Só comecei a refletir sobre isso nos últimos dias.
- Mas gosta da idéia?
- Se gosto? Que tipo de pergunta é essa? É claro que vou gostar dos meus
filhos! Quanto ás outras crianças... bem, não sei se tenho muito interesse.
Não era muito animador. Catherine aproximou-se ainda mais e sentiu-se feliz
quando ele retornou as caricias apaixonadas. Precisava dessa proximidade, dessa
ânsia descontrolada para afastar-se o medo que ameaçava invadi-la. Luc ficaria
furioso, mas o que mais a apavorava era desconhecer a intensidade da fúria que
viria em conseqüência da revelação.
- Pode dormir no avião - sorriu ele, satisfeito e divertido por notá-la tão cansada
e sonolenta.
çãçõçéááEstavam prestes a deixar a sala
de embarque quando um homem grisalho aproximou-se, seguido por um guarda de
segurança.
- Antonio! - exclamou Luc, atravessando a sala para cumprimentá-lo.
A curta conversa em italiano possuía um tom urgente que atraiu a atenção de
Catherine. O homem mais velho deu alguma coisa a Luc, apanhou o lenço para
secar o suor da testa e, à sua maneira, devia estar pedindo desculpas. Parecia
estar dando a noticia da morte de alguém muito querido.
- Quem era aquele homem? - perguntou, assim que entraram no jatinho.
- Um dos meus advogados - respondeu Luc em tom seco.
Assim que decolaram, ele foi para o outro lado da cabine e começou a ler uma
única folha de papel. Em seguida amassou-a com raiva e chamou o comissário com
um estalo de dedos. O uísque foi trazido depressa. Tomou-o de um só gole e
dispensou o tripulante, que desapareceu como uma miragem.
- Catherine... venha cá - chamou.
- O que houve? - perguntou, soltando o cinto de segurança e aproximando-se.
- Sente-se aqui - e indicou o assento da frente.
Bastou ver os olhos dele para sentir o coração parar dentro do peito. A boca
ficou seca. A violência que parecia querer explodir em sua direção era evidente
e apavorante.
- Não quero perder a cabeça com você - começou ele com tom controlado. - Deve
haver uma explicação para tudo isso.
- Está me assustando...
- Na semana passada, Raffaela me disse algo em que me recusei a acreditar.
Depois que você desapareceu, há cinco anos, ela ficou no apartamento por
algumas semanas. Não queria que ele ficasse vazio, porque pensei que você
pudesse telefonar ou voltar.
- E daí?
- Na semana passada ela me disse que, durante esse período, atendeu a um
telefonema de um certo medico que perguntava por você. Parece que queria saber
por que não havia voltado para os exames. Raffaela concluiu que você estava
grávida quando partiu.
Catherine arrepiou-se, gelou, baixou a cabeça e obrigou a voz a sair da
garganta.
- Continue....
- Se ela não estiver delirando, e essa conclusão for real, a dedução obvia é
que você decidiu não ter a criança. Raffaela explicou que, naquela época, não
viu razoes para me contar essa história, mas agora...
O cérebro recusava-se a funcionar. Percebendo que devia dizer alguma coisa,
limitou-se a pedir em tom baixo:
- Prossiga...
- Segundo Raffaela e suas conclusões, se realmente havia uma criança,
certamente não era minha. Acho que agora pode compreender por que eu estava tão
furioso com ela. Depois de todos esses anos, essa historia me pareceu
fantástica. É claro que não acreditei em uma palavra e a defendi até o fim.
Agora é a sua vez de me dizer que tudo isso é mentira. Como pode ver, Raffaela
é persistente. Quando me recusei a atender os telefonemas, ela procurou um dos
meus advogados em Roma e deu a ele todos os detalhes do que descobriu na
Inglaterra. Antonio não sabia se devia falar comigo ou não, mas tomou a decisão
quando descobriu que um jornal inglês havia publicado algo sobre você.
- Eu... não queria que soubesse desse jeito. Pretendia contar a verdade assim
que chegássemos à Inglaterra...
- Olhe para mim! Está me dizendo que tudo isso é verdade? Que ficou grávida e
que existe mesmo uma criança?
- S... sim...
- E... se casou comigo assim mesmo? - perguntou, atônito, levantando-se devagar
e ameaçador.
- O que esperava que eu fizesse?
- O que eu esperava? - gritou, segurando-a pelo pulso e obrigando-a a
levantar-se.
- Está me machucando!
- É melhor que esse filho não seja meu - e jogou-a de volta sobre a cadeira.
- É claro que é seu!
Luc deu murro na parede do jatinho e afastou-se com passos rápidos. Uma fúria
bárbara escapava por todos os poros de seu corpo, como um líquido venenoso e
incontrolável.
- Se eu puser as mãos em você sou capaz de matá-la! Saia da minha frente antes
que eu perca a cabeça!
- Luc, por favor...
Ele se virou e encarou-a com raiva.
- Se esse filho não fosse meu, talvez... talvez eu pudesse perdoá-la, porque
seria capaz de compreender por que fugiu de mim. Mas isso... Isso eu não posso
entender!
- Se tentar manter a calma...
- Calma? Eu descubro que tenho um filho de quase cinco anos e você me pode
calma?
- Devia ter contado ontem...
- Ontem? Se tivesse dito uma palavra sobre isso na noite passada, eu teria
estrangulado você! Não estou preocupado com a noite passada ou com a última
semana! Estou falando de um período um pouco mais longo... cinco anos!
- Pare de gritar comigo...
- Se eu não gritar vou acabar espancando você! Nunca bati em uma mulher em toda
minha vida e não vou começar agora! - fez uma breve pausa, respirou fundo e
perguntou: - Por que não me contou há cinco anos?
- Eu queria... eu tentei...
- Não me lembro de ter tentado.
- Eu fique com medo de... Luc, você não vai gostar do que vou dizer.
- Não estou gostando de nada do que estou escutando. E duvido que possa dizer
algo ainda pior.
- Eu não consegui contar porque sabia que não ia gostar de ter um filho. Fiquei
com medo que me obrigasse a abortar...
- E ainda se atreve a dizer isso de mim?
- Você sempre deixou bem claro que não queria nenhum compromisso comigo. E,
honestamente, Luc, eu pensei que você fosse propor a separação... ou coisa
pior.
- Não queria compromisso com você, não com meu filho! E o que sabe sobre minha
opinião a respeito de aborto? Quando discutimos esse assunto?
- Eu... pensei que...
- Pensou errado!
- Mas na época eu acreditava que estivesse certa.
- E quer saber por que teve essa idéia feliz? Olhe para mim! Teve essa idéia
porque é má e vingativa. Agora compreendo tudo. Se eu não aceitasse o casamento
teria de pagar com a perda do meu próprio filho!
- Não! - gritou. - Você está enganado!
- Sabe que não estou. Sem aliança, sem filho. Estava jogando roleta russa
naquela mesa de café e não sabia! E pensar que me torturei durante anos,
pensando nas coisas que disse a você naquela manhã. Não tinha o direito de
esconder a verdade. Será que me odiava tanto que não pôde sequer me dar uma
chance?
- Eu amava você - soluçou.
- Aquilo era amor? Em dois anos eu só perdi a cabeça com você uma vez, e estou
pagando por isso até hoje. Isso é vingança!
- Eu não penso como você...
- É claro que não! Se pensasse como eu já estaríamos casados há cinco anos! Eu
não fujo das minhas responsabilidades. Querendo ou não, teria me casado com
você.
- Eu não me casaria sabendo que não era essa sua vontade.
- Que importância teriam os nossos sentimentos, se havia uma criança envolvida
na história?
- Não conseguiria viver com você nessas circunstancias.
- A única mulher honesta que conheci... foi o que eu disse a Raffaela sobre
você. Não sei como ela não riu na minha cara! Deve ser porque possui uma
virtude que você não tem: lealdade!
- Daniel e eu vamos sumir da sua vida. Nunca mais vai ouvir falar de nós.
CAPÍTULO IX
Com a fúria estampada nos olhos, Luc gritou, furioso?
- Não vai levá-lo a lugar nenhum!
- Você não quer esse filho! Preferia que não fosse seu! Foi a coisa mais cruel
que disse em toda sua vida!
- Cruel! Perdi cinco anos da vida dele! É ilegítimo! Tem idéia do quando ela
vai sofrer mais tarde? Ou será que vai poder continuar com essa história
ridícula de viuvez para o resto da vida? Sabe que não pode esconder a verdade
para sempre. E como acha que Daniel vai reagir? Como vai sentir-se a meu
respeito? A seu respeito? Por isso disse que preferia que não fosse meu filho!
Pelo bem dele! Os jornais já estão começando a investigar os fatos...
- Jornais?
- Pensou que poderia viver a meu lado escondendo a verdade?
Se Raffaela não tivesse impedido, a foto do menino já estaria em todos os
noticiários da Europa! Ela o pegou na casa de sua amiga e o levou para longe
dos jornalistas.
- Levou? Para onde? - perguntou assustada.
- Raffaela convenceu sua amiga a levar o garoto para o sul antes da chegada dos
repórteres. Estão esperando por nós em casa.
- Que casa?
- A que eu comprei de presente de casamento para você... cinco anos atrás.
No estado em que estava, Catherine precisou de um pouco de tempo para
compreender o significado da revelação.
- Disse... cinco anos?
- Eu era um idiota. Eu, que me orgulhava de julgar as pessoas com exatidão!
Será que não percebeu? Eu estava apaixonado por você!
- Há.. cinco anos?
- Só soube quando foi embora. Pensei que fosse voltar, telefonar, mandar um
cartão... qualquer coisa! Não podia acreditar que fosse para sempre. Gastei uma
fortuna tentando encontrá-la, porque queria me casar com você.
As lagrimas banhavam o rosto de Catherine. Tentava reprimir os soluços que
ecoavam no silencio torturante e denso, buscando algo para dizer. Mas Luc ainda
não havia terminado.
- Quando a encontrei, fechei os olhos para todas as evidencias. Pedi desculpas
e agarrei-me à ilusão de que tudo continuava como antes. E por que?
Simplesmente porque me deixei enganar pela maior mentirosa que já conheci em
toda minha vida!
- Não é verdade! - defendeu-se, tentando impedir que ele a esmagasse. Ou será
que já havia feito isso por si mesma?
- Já mentiu para mim e nunca mais terá a oportunidade de repetir a façanha.
- Quando? O que foi que eu fiz?
- Cinco anos atrás, eu confiei em você como nunca havia feito com mais ninguém.
E você traiu essa confiança. Passou a noite nos meus braços, dizendo o quanto
me amava e, na manha seguinte, simplesmente foi embora!
- Eu só estava dizendo adeus da única maneira que sabia.
- E nem imaginou que eu estava furioso com você, durante o café, porque sentia
que havia sido enganado de alguma maneira.
- Como podia sentir?
- E como não sentir? Eu não queria me casar com você nem com qualquer outra
pessoa. Meus pais me deram uma visão muito bonita do casamento. Eles odiavam um
ao outro!
- Nunca me falou sobre isso...
- Você tinha tantas ilusões sobre uma família feliz... quem era eu para
destruí-las? Meus pais se casaram porque minha mãe estava grávida. Nunca se
amaram. Na verdade, nunca gostaram um do outro. Viveram juntos todos aqueles
anos na mais bonita infelicidade. E a única coisa que queriam de mim era
dinheiro. Desde que o conforto foi garantido, não tinham o menor interesse no
que eu fazia ou deixava de fazer. Quando aquele avião caiu, a única coisa que
eu perdi foi uma irmã e dois pais que nunca quiseram ser pais de ninguém.
- Sempre pensei que sua família o amasse...
- Amavam o que eu podia dar a eles. E você não é muito diferente. Há dez dias
estava no apartamento de Drew, pronta para casar-se com ele. E, milagrosamente,
desistiu para ficar comigo...
- Ele me pediu em casamento naquele dia em que nos vimos, no Savoy. Nunca houve
nada entre nós. Sei que devia ter sido honesta e contado antes, mas...
- Honesta? Você não sabe o que significa essa palavra! Fico só imaginando sua
cara, dizendo ao meu filho que eu não apareci antes porque você teve medo da
minha reação... O que disse ao garoto sobre mim?
- Nada - murmurou, baixando a cabeça.
- Nada? Deve ter contado alguma coisa sobre o pai dele!
Catherine respirou fundo e contou toda a historia de Harriet e sua proteção. Na
verdade, Luc, só conseguiu ouvir um detalhe de tudo o que disse: Daniel pensava
que o pai estava morto!
Confusa com todas as revelações que acabara de ouvir, Catherine compreendeu que
sempre tivera a única coisa que queria da vida: o amor daquele homem. Como
pudera ser tola e ingênua a ponto de nem perceber a existência de um sentimento
tão forte?
Por que dera ouvidos aos conselhos de Harriet? Não podia culpá-la, porque a
amiga julgava Luc pelo que ela mesma dizia sobre seu caráter. Só a influenciou
porque confirmou o que ela mesma vivia dizendo. E Luc acabou derrubando todas
as convicções que a haviam sustentado durante quase cinco anos, como se fossem
um castelo de areia.
A culpa era insuportável. Fugiu, quando devia ter ficado e enfrentado a
realidade. Permaneceu distante, quando devia ter voltado e reparado o erro
anterior.
Agora podia imaginar o sofrimento que causara a Luc quando fora embora, o que
só aumentava a culpa que sentia. Luc teria se casado com ela. Daniel teria tido
um pai desde os primeiros dias de vida, sem falar nas vantagens que ela não
fora capaz de oferecer.
Luc estava certo. Não tivera a força e a coragem de dar uma chance ao homem que
amava. Fora mais fácil fugir do que ficar e enfrentar a situação. Naquela
época, não era capaz de imaginar o quanto ele sofreria ao perdê-la. E, agora,
essa mesma dor o fazia acreditar que havia sido traído pela segunda vez.
Encarava a noite de núpcias sob o mesmo ponto de vista daquela noite distante
em Nova York.
Agora podia compreender facetas de seu temperamento que nunca entendera antes.
O calor na cama e a frieza fora dela. Há poucos dias, ele começara a tentar
quebrar esse padrão de comportamento, padrão que devia ter aprendido desde
muito cedo. Para defender-se, tivera que ocultar as emoções e os sentimentos
reais. Fora magoado, ferido... Os pais nunca demonstraram nenhum carinho ou
afeição. A generosidade financeira, que no passado a obrigava a sentir-se como
um objeto comprado por um preço alto, agora podia ser vista sob luzes
diferentes. Luc tinha toda uma historia de vida, que começou muito antes de
conhecê-la, que o ensinara a atender o que era esperado dele. Quando a família
inteira morreu, ele apenas continuou mantendo os mesmos hábitos.
Luc estava mais que decepcionado; estava amargo e desiludido.
Cinco anos atrás, sem saber, ela cravara um espinho na ferida antiga. Ele nunca
poderia imaginar que estivesse grávida, porque também não imaginava que
Catherine fosse capaz de ir tão longe só para esconder a verdade de quem a
amava tanto.
Mas não seria um desastre se Luc tivesse sido obrigado a casar-se com ela,
repetindo o que ele acreditava ter sido o grande erro da vida dos pais? Não
estava pronto para fazer a opção de vida por conta própria. É claro que não
teria dado certo, mas ele não conseguia enxergar o obvio no estado em que se
encontrava. Não. Nesse momento, Luc só podia ver Daniel. E já começava a
demonstrar uma vontade incontida de conhecer o filho. Ele queria Daniel... mas
não queria a mãe dele.
A fúria de momentos atrás se transformou em frieza, mas ainda era muito
perigosa, pois poderia vir à tona novamente a qualquer instante com forca
duplicada. Estava abalado e desequilibrado. Acabava de tomar consciência de um
fato importante na vida de qualquer homem: a paternidade. Confiara nela,
culpara-a por todo o sofrimento que julgava ter causado... Se pudesse faria o
tempo voltar para reparar os próprios erros... mas só agora podia ver tudo
isso. E agora sabia que seria impossível. Catherine concluiu que a determinação
de Luc em ter tudo o que queria, em lutar pelos anseios e vontades, acabara de
levá-los a um casamento precipitado... e falido.
- Eu amo Daniel - murmurou ela.
- Tem uma maneira estranha de demonstrar. Viajou e deixou o filho para trás com
uma feminista recalcada.
- Não se atreva a falar assim de Peggy! Ela é uma pessoa maravilhosa e
inteligente. E já escreveu três livros! E é minha melhor amiga!
Ou era? No meio de toda aquela confusa, do pesadelo que parecia não ter fim,
Peggy ainda seria sua amiga? Sem saber nada sobre a existência de Luc, tirada
da casa dos pais por uma italiana que nunca vira na vida, informada por
terceiros... Devia estar furiosa!
ááO
presente de casamento era uma casa de campo de estilo antigo. Não era enorme,
não era luxuosa, mas seria motivo de grande felicidade se Catherine não estivesse
tão deprimida e envergonhada. E se Raffaela não tivesse aparecido no momento em
que chegaram, desmanchando-se em sorrisos e cumprimentos.
- Não consigo entender toda essa confusão - comentou Peggy, andando de um lado
para outro sob o sol quente da tarde.
- Eu sei... - respondeu Catherine, olhando para o relógio pela décima vez em
menos de meia hora.
Observadora como era, a amiga percebeu o gesto e tentou tranqüilizá-la:
- Fique calma, Catherine. Eles vão voltar daqui a pouco. A culpa foi minha,
sabe? Não devia ter deixado Daniel sozinho com Raffaela. Aquela mulher é uma
cobra venenosa! Mesmo assim, logo ele estará aqui, sã e salvo.
Sem querer, Catherine lembrou-se do momento da chegada. Luc dirigiu-se a
Raffaela e cumprimentou-a com alegria. Por seu lado, a italiana abusava do
charme e da feminilidade, que sempre empregava quando estava perto dele. Em
seguida, com uma conversa sarcástica sobre não querer intrometer-se, entrou no
carro e partiu, certamente consciente da encrenca que deixava para trás. Discórdia
entre marido e mulher... e rancor entre mãe e filho.
Daniel estava sentado em uma das salas do andar de baixo, solene e concentrado
como um pequeno grande homem. Sua tentativa de abraçá-lo foi rejeitada sem
rodeios.
- Você disse que meu pai estava morto! - censurou ele, sem se preocupar em
esconder as emoções violentas que o sacudiam.
Raffaela havia feito um trabalho perfeito. Daniel podia ser uma criança
brilhante, mas a capacidade de compreender os relacionamentos entre adultos era
próprio de um garoto de quatro anos. Só entendia que a mãe havia mentido para
ele. Magoado e confuso, terrivelmente nervoso por encontrar o pai que Raffaela
descreveu de forma tão impressionante, descarregou toda a carga de emoções
sobre Catherine.
Luc aproveitou o momento e aproximou-se do filho com sinceridade, falando de
maneira clara e direta para atrair a atenção do menino.
- Não sei nada sobre ser pai. Com certeza vou cometer muitos erros, e você vai
ter de me ajudar.
- Não quero um pai atrás de mim o tempo todo, fazendo perguntas que não vou
saber responder - disse ele, rápido e firme.
- Eu também não ia querer.
- Não sei nem se quero um pai - admitiu Daniel, demonstrando a confusão
emocional em que se encontrava.
- Posso entender. Mas saiba que eu tenho certeza absoluta de que quero você
como meu filho.
- Tem outros filhos?
- Não, só você. E é isso que o torna tão especial.
Catherine assistia à cena sem nenhuma surpresa. Era de se imaginar que Daniel
reagiria daquela maneira. Por outro lado, Luc representava com perfeição,
acabando com todos os receios do filho. E o dialogo continuou por muito tempo;
uma serie de negociações do lado de Luc e uma enxurrada de confidências e
perguntas curiosas por parte de Daniel. Nenhum dos dois tinha pressa. Estavam
se conhecendo, medindo-se e estudando-se a distância, pesando as possibilidades
de uma relação. Depois de uma hora, Daniel demonstrava-se mais confiante e
seguro, conquistado pelo interesse que Luc demonstrava ter por ele. Clover, o
burrinho de estimação, fazia parte dos assuntos discutidos. Em menos de um
segundo, Luc compreendeu que tirar o bichinho do abrigo para animais seria um
grande passo em direção ao sucesso com o filho. Um telefonema rápido e pronto:
Daniel já se mostrava mais feliz, sabendo que Clover ainda esperava por ele no
abrigo.
- O que acha de irmos até lá agora? - sugeriu Luc, com frieza de um grande
estrategista.
Daniel ficou tão emocionado e grato que, chorando, atirou-se nos braços do pai
e o abraçou com força, quebrando as barreiras que conservara até o momento com
tanto cuidado e atenção. Partiram poucos antes do almoço. Antes de saírem, Luc
dirigiu-se a Catherine e comentou em tom frio:
- Ele é uma criança maravilhosa. E estou muito orgulhoso por ser pai dele.
Não podia afirmar com certeza se aquilo era um elogio, um pedido velado de
desculpas ou o mero reconhecimento dos encantos naturais de Daniel. O mais
provável é que fosse uma critica, uma censura por ter sido privado do filho
durante cinco anos.
- Devia ter ido com eles - comentou Peggy.
- Não fui convidada. E, de qualquer forma, queria conversar com você. Pensei
que estivesse furiosa com toda essa confusão.
- Está brincando? Os últimos dois dias foram excitantes! Fiquei feliz quando vi
a foto que Raffaela me mostrou. Aquela do aeroporto, sua e de Luc. E depois,
quando o primeiro repórter apareceu, então começou a animação. Alguém deve ter
dado o endereço para eles, porque muita gente sabia que Daniel estava aqui
comigo.
- Duvido que continue achando divertido quando tudo isso explodir.
- Tudo isso o quê? Não exagere, Cathe! Você viveu com ele, separaram-se e agora
estão casados. Daniel é filho dele e ponto final. Não tem de ficar pensando no
escândalo ou no falatório.
- Não é tão simples...
- Catherine, eu acabei de conhecer esse homem, não conversei com ele, apenas o
vi por menos de dez minutos, mas acho que tenho o dever de dizer algumas coisas
a você. Luc tem três grandes virtudes que, queira ou não, vai ter de admitir.
Primeira: ele é generoso. Segunda: é o homem mais lindo que vi em toda a minha
vida fora de uma tela de cinema. Sei que é uma observação estranha para um
assunto tão serio, mas foi a primeira coisa em que pensei quando o vi. E
terceira: qualquer pessoa que tenha o poder de conquistar Daniel em tão pouco
tempo, especialmente no estado de animo em que estava, merece todo o respeito.
- Mais alguma coisa?
- Bem... Quando ele saiu e deixou você aqui, triste e deprimida, me peguei
torcendo para que Clover estivesse de péssimo humor quando chegassem lá.
Gostaria muito de ver Luc tentando trazer um burrinho empacado para casa.
Aposto que ele nunca esteve perto de um animal daquele tamanho antes.
Era tão ridículo, que Catherine explodiu em gargalhadas. Mas a alegria durou
pouco.
- Se eu não tivesse perdido a memória, teria contado a ele sobre Daniel na
semana passada. Não teria sido tão ruim.
- Se quer minha opinião, Luc esta tendo o que merece. Se tivesse conquistado
sua confiança, saberia da existência do filho desde o momento em que você
descobriu que estava grávida. E quer saber de uma coisa? Ele é inteligente o
bastante para perceber tudo isso sozinho.
Se ele quiser perceber. E nada do que Luc dissera durante o dia dava a
impressão de que tentaria fazer tamanho esforço de compreensão.
Catherine acompanhou Peggy até o carro e ficou sozinha, esperando e temendo o
retorno de Luc.
Clover chegou primeiro, mal-humorado como sempre, pisoteando o jardim e
estragando as flores tão bem cultivadas. Catherine tentou agradecer a diretora
do abrigo de animais, que teve o trabalho de trazer o burrinho de volta, mas
foi interrompida pela mulher, que informou sorridente sobre um grande donativo
feito por Luc. Irritada, pensou por que as coisas tinham de ser sempre tão
fáceis para ele.
Dez minutos depois, Luc entrava em casa com Daniel nos braços, adormecido.
Furiosa, querendo saber por onde andaram durante o dia inteiro, adiantou-se e
parou diante do marido com expressão contrariada. Mas o olhar frio e desafiante
de Luc, preparado para aquele tipo de recepção, foi o bastante para fazê-la
desistir do interrogatório.
- Vou pô-lo na cama - disse, pegando o filho no colo.
Catherine levou o garoto para o quarto que havia ocupado durante as ultimas
duas noites. Enquanto o despia, Daniel abriu os olhos com dificuldade e
perguntou com voz sonolenta, carregada de pânico:
- Onde está o papai?
- Está lá em baixo.
- Pensei que tivesse sonhado com ele - sorriu. - Ele não sabe nada sobre
crianças, mas sabe um monte de coisas sobre computadores - explicou, abraçando
a mãe com carinho. - Desculpe se fui um garoto mau...
- Está desculpado - sorriu ela, beijando-o na face.
- Papai planejou tudo. Foi por culpa dele que demoramos tanto...
Vendo o filho adormecido, sua expressão tranqüila e feliz, teve de admitir que
Luc merecia os agradecimentos, pelo menos por isso. Fora capaz de colocar as
necessidades de Daniel acima da própria raiva, abafando o conflito iminente
entra ela e o filho.
Era fácil de prever o futuro: Luc passaria a ocupar o papel principal na vida
de Daniel. Podia ter aproveitado a ocasião para seduzi-lo com presentes e
viagens, para afastá-lo da mãe, mas não fizera nada disso.
Fechou a porta do quarto com cuidado e desceu. A sala de estar era ampla e
confortável, decorada de acordo com o estilo campestre que sempre admirara. A
governanta, a sra. Stokes, arranjou flores para preencher os espaços vazios,
mas era obvio que ninguém havia morado naquele local nos últimos anos. Nem
mesmo Luc, segundo a sra, Stokes, passara uma única noite sob aquele teto.
E comprara a casa para ela, convencido que retornaria. Agora, depois de todas
as revelações dolorosas do dia, seria obrigado a encarar de uma vez por todas
que fora abandonado, que Catherine nunca tivera a menor intenção de voltar para
seus braços. E de quem fora a culpa?
A culpa era dela.
- Ele dormiu? - perguntou Luc.
- Desmaiou. Apagou como uma lâmpada. E isso não é nada comum, sabe? Devia estar
exausto!
- Esse menino não tem estimulação suficiente. Comportou-se muito bem comigo,
mas desconfio das explosões como a que vi quando chegamos são freqüentes...
certo?
- Ele estava magoado - defendeu-se a mãe.
- É uma criança brilhante. Devia ir para a escola o mais cedo possível.
- Não quero ele longe de mim - assustou-se Catherine.
- Eu disse que tinha de afastar-se dele? Roma possui excelentes colégios para
crianças acima da media. A oportunidade de conviver com garotos iguais a ele
será maravilhosa para o crescimento de Daniel. - Luc respirou fundo e olhou
para ela, mas Catherine recusou-se a encará-lo. Mantinha a cabeça baixa, como
se temesse as criticas que acreditava próximas. - Ele já está bem grandinho
para que permita esses ataques de birra. O excesso de energia tem de ser
empregado em algo mais útil, compreende?
- Você é muito critico!
- Não foi minha intenção. Na verdade, o equilíbrio emocional de Daniel é muito
melhor que o meu, quando tinha idade dele. Só estou dizendo que ele precisa
ocupar-se, em vez de ser educado pelo aparelho de televisão.
- Eu tenho feito o melhor que posso - justificou-se, sabendo que Luc estava
certo.
- Basicamente, trata-se de uma criança feliz e confiante. Você fez um trabalho
maravilhoso, considerando o fato de estar sozinha e sem dinheiro, como o
próprio Daniel me contou mais de uma vez. É um problema que o preocupa muito,
sabe?
O elogio só aumentou a tensão. Luc estava tão distante e controlado, tão
diferente da maneira que ela o conhecia. Como estaria sentindo-se agora, depois
de ter tido tempo para acalmar-se?
- Daniel é uma criança observadora e.. - ela tentou dizer.
Mas Luc a interrompeu, interessado em outras questões:
- O que disse esta manhã é verdade ou foi só um comentário impensado, uma forma
de se defender? - perguntou. - Acredita mesmo que eu teria tentado convencê-la
a não ter o menino?
- Falando assim parece tão...
- Cruel? Desumano? Egoísta? - sugeriu, sem deixar de encarar o rosto pálido e
desfigurado pelas emoções do dia. - Essa devia ser a maneira como me via então.
- Não, eu não... - balançou a cabeça. - É que... quando alguma coisa o
atrapalha, você simplesmente a tira do caminho e... - interrompeu-se,
consciente de que não estava expressando os pensamentos com clareza. - Só
imaginei que, se você não quisesse o nosso filho, eu não teria forças para
enfrentá-lo. Por isso senti tanto medo. Eu sei que acabaria me convencendo.
- Pelo amor de Deus, o que foi que eu fiz para construir uma imagem tão odiosa?
As coisas não estavam acontecendo da maneira que esperava. Luc duelava com
sentimentos e emoções confusos e intensos. O medo que a guiava há cinco anos
atrás voltou a invadi-la com força total.
- Será que não pode entender? Quanto mais tempo demorava para contar a verdade,
mais difícil ia se tornando.
- O que eu entendo é que morria de medo de mim e que tinha certeza de que eu
seria capaz de matar meu filho pro mera conveniência. No entanto, mesmo quando
ainda não sabia que a amava, eu me preocupava com você. E, mesmo que não a
amasse, nunca tomaria uma decisão tão inescrupulosa.
- Sinto muito... - murmurou de cabeça baixa, incapaz de conter as lagrimas.
- Acho que quem devia estar lamentando era eu. Por algum motivo, não soube
conquistar a sua confiança. E o pior é que ontem, quando nos casamos, você
ainda não confiava em mim. Não teve coragem de me contar sobre Daniel...
- Eu sou uma covarde... já devia saber disso. E, por outro lado, eu não queria
estragar o casamento - confessou, consciente da fragilidade da desculpa.
O silencio estendeu-se por minutos que tornaram insuportáveis, levando-a à
beira da histeria.
- Quais são as chances de termos aumentado a família na última semana? -
perguntou ele com objetividade.
Ao entender o significado da pergunta, Catherine ficou ainda mais nervosa,
lembrando-se de que em pouco tempo teria a confirmação em um ou outro sentido.
- Poucas chances - disse com honestidade, embaraçada por ter de tocar num
assunto tão delicado.
A atitude de Luc não lembrava em nada o comportamento que tivera dias atrás, na
piscina. E esse dia parecia estar tão longe...
Se pelo menos tivesse o tato de não suspirar de alivio ao ouvir a resposta, a
situação não seria tão insuportável.
- Catherine, quero que saiba que não sou nenhum irresponsável. Nem mesmo no
inicio do nosso relacionamento, eu... bem, eu nunca tive a intenção de
engravidá-la.
- Não precisa desculpar-se - ela suspirou, desesperada com a reação dele frente
a possibilidade de um segundo filho. De repente descobria o quanto estava
animada com a idéia de engravidar outra vez. No entanto, a falta de entusiasmo
de Luc era a ultima rejeição, a gota d’ água no copo cheio de dores e
sofrimentos. A conclusão seguinte era óbvia: o casamento estava arruinado.