15 de junho de 2008

A Eternidade das Pedras


A Eternidade das Pedras


Eu tenho um poema a despontar,
Como pedras cravadas de ironia.
Eu tenho o poema de todas as manhãs
Que escorre como a humidade nas umbrias
E se resume a umas hastes sensações
Eternamente por todos os homens já sentidas.
Eu sinto a leve inquietação das nuvens negras
Que abriram já outras manhãs
E ensombraram outros espíritos,
Outro seres que no céu leram
Suas dores futuras,
Suas incertezas, suas indómitas dúvidas...
Eu tenho flores insaciadas de mulheres acesas
Em sol nas palhas,
De homens labutando em terras vastas,
De suor perlando as (suas) poucas falas,
De corpos ainda por sossegar,
Nas noites de físico repouso,
Raros sonhos, labuta que nunca verga,
Faina que nunca busca
A quimérica sombra do monte.
Eu tenho o poema das inquietações todas,
Da chuva que vem e traz aluviões,
Da seca que sedimenta,
Da geada que corrói.
Eu tenho o poema de todos os incertos tempos
E sei que sou apenas mais uma voz
Que dá corpo a um mesmo imutável lamento.
Eu tenho um poema...
Mas os sinais nos céus
E a inclinação das giestas
Apenas lembram que o meu sol declina
E em gargalhadas de irónico escoamento,
Cederei o meu lugar neste carrossel da vida
A outros olhos que irremediavelmente verão
As mesmas cores do mundo
E os seus sinais de inquietação
Ou a eternidade das pedras
E dos corpos em fusão...

Ay, flores...


Ay, flores...

- um divertimento floral, com flores e tudo... -
Oh Maria-sem-vergonha
Que fazes?
Margarida, minhas dores
que me acusas
por não falar em flores...
Fazes-te calêndula
sempre-viva
não ouvindo o pelargónio
nem o rir das campainhas
E fazes-me tais horrores
porque não és sensitiva
Deras tu pela begónia,
tão gentil com a perpétua
e serias flor da azálea
ou lilás, bela de lírio.
Mas não, queres só malmequeres
quanto muito a flor das chagas
e malmequer faz se quer
as chagas não vão com rosas
Girassol és tu e tanto
sem alegria da casa
Tanta inveja ao agapanto
por ser alto e ser azul...
Serias lírio do vale
mimosa até genciana
não passas de cinerária
Bem feito por seres fisálide
se o cravo to perdoar
e ouve bem o gerânio
tão amigo da perpétua
por prímulas e por papoilas
que entre si dão ao goivo...
Ao junquilho, ao açafrão
nem fales de tanta fúcsia
ou à peónia em ciclame
feita tão suave com malva
que é malícia-de-mulher
sentindo só o que quer
E nem rapôncio te salva
se soltares outros odores...
Mas nunca por nunca digas
Que não falei em flores!

Em Estado de Luz


Em Estado de Luz


o sol de novo aceso
na mansidão da maré
e tu no prodígio da manhã
vieste a mim a ver o sol
e o meu pensamento voou
até onde a boca pôde gritar
na incandescência do dia
ficou a planar uma nota azul
de música banal
rasguei todas as nuvens
abri as asas do sorriso
e vim cair iluminada
na foz maravilhada do amor
por isso hoje os círios são sóis
e nas catedrais abertas
à cegueira do mundo
arde lentamente o tempo
em chamas sagradas
de astros famintos
lançando inquietas faúlhas
desta Luz que hoje pressinto...

Monolítico Silêncio


Monolítico Silêncio


terra de mouras escondidas
nas fragas onde a lenda as faz belas
e por amores infiéis perdidas
mulheres espreguiçadas no horizonte
repousando em monolíticas pedras
onde a memória calada se acende
nos pelourinhos e antas abertas
uma cerca derruída - silêncio
aqui jazem pedras dispersas
aqui há pontes citiando os caminhos
há o granito silente das ruínas
o estanho ensimesmado dos objectos
entrando a pique no olhar faminto
e um passado morto fazendo ninho
nos coração dos velhos sobreiros
e eu sou a águia que passa sobre
o espanto do rochedo e grita
a alma das mouras penedias
a lenda das almas outras aflitas
o musgo que arde sedento e o silêncio
ornado de malmequeres e vida
eu sou o murmúrio que vem no vento
e vem pousar no poema arrefecido
porque a memória é uma anta vazia
e o passado um grito de ave sem sentido

Nau Frágil


Nau Frágil

Diz-se que os mares devolvem os corpos dos marinheiros sós. Vêm
enredados de algas, enfeitados de marés com harpejos de espuma,
respirando o mistério do desejo como se afagassem ainda o seu corpo
provocando o derradeiro acto-de fé da alma. Trazem no rosto o mistério
envidraçado dos dias baços aguardando o inclinar das quilhas e o erguer
dos mastros em laranjeiras suculentas contra o escorbuto da fala.
Mas tu que habitas a luz pura das estrelas, não segues só na rota dos abismos
siderais. Estende o olhar no horizonte e vê a espuma que deixas ao passar.
Não saberás, mas agora és serpente e moras no meu corpo, como se fosses
flor do desejo, um cardo seco - aberto frágil - ao sol do deserto e brotasses na
minha boca em forma de átomo, circundando o palato, os lábios em alvoroço,
ardendo, queimando, rodopiando louco.
Agora mesmo te quero como palavra acobertada nas coxas mordendo com
marcas de romã descritas sorvidas pelos dedos. Recebe o afago da memória
ardendo, uivando, querendo. E colhe-me - lambe a pele, as feridas a fundo
em espiral de fogo na fúria dos elementos, sacia a sede na fenda sísmica
tremendo, tremendo, ávido como águia, na polpa sumarenta da tua boca a
água que derramas sobre a chama, a chama no altar da carne não sei se em
oferenda se em apenas fome. E frágil a combustão do tempo.

Sabes como aqui amanhecemos por dentro - e os corpos se vazam no útero
juntos até à suspensão das marés - aqui as pedras expostas aos astros são
o leito frio onde a morte escorre para trás e nós presos no convés das noites,
as naus de regresso âncoras no cais fundeadas por dentro as vagas vazias
ao rés do vento para aterrarem a pique num corpo, o corpo de cal caindo
oblíquo na parede enclausurada..
Não te quero marinheiro naufragando só. Quero-te ave pousando como pedra
frágil no meu peito e bebendo o sol agora mesmo aceso e o beijo, um beijo de
musgo palpitando fresco. Como a âncora fundeada no lodo quero-te dentro.
Preso frágil nas palavras que moldaste na voz e cedo, cedo amanhecendo náufrago
entre o céu e o azul que me escorre dos dedos.

de
SaraComAmor

Desassossego


Desassossego
Trabalho sobre "Danae" de Klimt



Na verdade vos digo: a noite.
E a palavra ecoa num silêncio de mármore
Tal este vento oco que crepita no olhar triste das janelas.
Na verdade digo -
Ausência.
O quarto vazio na indiferença dos velhos móveis
Esta clausura que os habita
E move
Na verdade digo nuvem
E penso num poema algodoado
Como os amortecedores dos carros familiares
Com insonorização à prova de dor
Na verdade digo sol
E a noite arde num prelúdio de febre lenta
Sem remédio
Como uma teimosa flor venal
Crescendo dos céus em nome de todos os desejos,
Tão vagos como seixos
A noite, digo eu,
A noite investe sobre o meu corpo
Como pássaro negro
Uma porta uiva sobre o silêncio
E a cama cresce até à dimensão do medo
Digo a noite e penso, é cedo para o
Rumor do mar.
Pressinto o vento
Beijando as árvores no pinhal
- o mar das memórias encantadas
que dormem sonos lendários sob o rumor das pedras.
E o poema cresce na boca e desce à terra
Como a semente de todos os desejos
Crescendo, crescendo, cravados, calcados
Crispados na terra seca, medrando para dentro.
Em verdade vos digo:
eis a raiz eterna do desassossego
Bom fim de semana e obrigada a todos que vieram ler-nos e
aos quais o tempo não me permite responder como gostaria.
Um abraço muito forte e até breve...

A tarde caindo sobre o Tejo


A tarde caindo sobre o Tejo...


Curva-se o ombro da tarde
Na luz coada
Como se o tempo
Fora o rasgar da nuvem
Sobre o Tejo
Suspende-se o olhar
Sobre a janela
E o ar agora baço
É o esvoaçar da ave
Ferindo o nevoeiro...
O grito da outra margem
Gingão o cacilheiro
E o cais deserto...
Nem ontem nem hoje
Apenas o reflexo de ti batendo
E a tarde caindo sobre o Tejo...

Nota: desisti de desistir dos blogs! afinal pertenço aos meus afectos...

Don Badalo