15 de junho de 2008

Só para te amar um dia


Só para te amar um dia...


Mil almas eu teria
Para te encontrar um dia
Para ir bem mais além
Além de onde estou
Além do que querias

Mil almas sim...
Mil almas eu teria
Para buscar-te além dos montes
Por outros horizontes
Além do gris dos dias
Mil almas sim...
Mil almas eu teria
Só para te encontrar
Só para te amar
Para te amar um dia!

Balada de uma noite de fim de ano


Balada de uma noite de fim de ano


Negras paredes de tugúrio urbano. A cidade fechada na expectativa de uma explosão de luz, recolhe-se nas últimas horas do velho ano embranquecido. Chega a noite e veste-se de negro em sons que são já um tinir de copos e desejos. No seu burel de medo, o espanto dos amantes indefesos rondando o beco sem gente. Ela enroscada no centro íntimo do seu medo. A noite um abraço de silêncio, negros passos no asfalto seco. Negro o som duma balada estripada de um velho clarinete. Agudo o soluçar da noite, nas portadas cerradas para a vida. É a noite última dos tempos, aquela que anuncia um fim e traz um princípio sem no entanto ser mais que uma noite apenas, teimosamente brindando o passar do tempo, como se este se relativizasse e nos fizesse andar atrás nos sonhos, desembrulhando-os intocáveis, puros e serenos.
Lá dentro a noite é filme sem fita, ritual de sombras projectadas à rua do desejo. O vento ruge por entre as frestas e o mundo adquire a dimensão de um buraco negro. Apenas os gestos são claros na sua busca do negro esquecimento. Ela sonha-se no tempo, em noites míticas de calendários irreais. Corpos sedentos, recortados em luares de prata onde brilham olhos de gente. Há ausências com a duração de luas e urgentes como crateras abertas. Uma penumbra nos gestos doces, um sopro de entrega nas sombras projectadas em negras paredes. Húmidos antros, são ninhos se o amor os faz. Só a escuridão dos tempos penetra na noite dos amantes sem tempo, porque a cumplicidade é um carvão incandescente riscando a negro o vinil dos corpos. Não há rosto, nem voz, nem chamamento. O fluir apenas de um rio argênteo sob a negra noite onde se abrigaram os amantes. Lá dentro, despojos de uma guerra intemporal. E porém só o silêncio adivinhado nas paredes.
Ela quer apagar uma a uma as luzes do mundo em festa borbulhante. Quer o silêncio sentado no centro da sua noite. Uma nota pungente que se alongue, cantando só a nostalgia do tempo, de todos os anos passados e vindouros, de todos os desejos explicitados no caudal de cada ano, de tudo que não se fez, não se teve, não se viu, não se ganhou e se desembrulha no clarão dourado do novo ano...
Então ele veio, directamente do tempo em que as noites ainda tinham cor e os anos ainda passavam ornamentados de luz, cintilando na alma como faíscas luminescentes de desejo. A noite ganhou então o espaço lacunar de um instante de paixão suprema. Abraçaram-se sob um luar que só eles viam - o sortilégio último de um velho ano habituado a ver nos homens a escuridão do olhar, a única que enviuva os dias e vela as noites.
Quando chegou o novo ano, em vénias de espuma e sons, música, burburinho e risos, ela deixou-se ir no cintilante caudal da noite, arqueando o corpo uma e outra vez, no instante supremo em que a solidão abandona os corpos por um instante de silêncio e luz. O prazer escorreu pelos móveis reluzentes, num cenário de guerra e celebração, retinindo no seu peito com o som de cristal partindo-se. Cai a taça, ébria de emoção no soalho triste...

Cá fora, um gato apenas vivendo a noite só, do alto do seu beiral no telhado. Indiferente na sua negra silhueta de macho só, místico na sua negra inconsciência, enfrentado felino a exuberância luminosa do mundo. E então, depois de se restaurar o silêncio oco do beco sem gente, de novo se faz tão negra a noite, tão negra e indigente que a manhã será uma crua descoberta das imperfeições na parede.

* * *

Encantamento


Encantamento


Expiro e inspiro desordenadamente borboletas
de fumo na noite fria. Não fumo, bebo a noite
em lufadas de nostalgia procurando nas estrelas,
fiapos de mim dispersos na fragrância incerta do
nevoeiro, um corpo denso, arrojado e traiçoeiro.
Esvoaçam palavras privadas de maresia
arranco-os de mim - são bolbos vazios -
cancelo o ódio, desmonto a indiferença
- recuso a promíscua ilusão do mesmo vento
que nos banha o rosto a mim e ao mundo,
a mim e a muitos - ao mar e a todos.
Proclamo a pureza como invento, a verdade sem véus
o horizonte claro e pleno, arremesso as certezas do mundo
ervas sempre em pousio sereno,
desenho os corações voando leves no bosque do desejo,
as sereias cantando ao longe em ciclo ameno,
os homens afoitos de ouvidos mudos, boca cega ao seu lamento.
Proclamo a verdade, desafio o vento, recuso o engano,
lanço à noite um encantamento:
que do pântano se faça campo de centeio e as
borboletas se embriaguem de sol e pólen prazenteiro
e espalhem pelo mundo a nova luz, o novo amanhecer
e de cada olhar plantado no deserto
façam um novo reluzente farol espalhando para longe o nevoeiro
e o sol nos cubra os corpos de pólen verdadeiro...
Em cima do joelho e dedicado ao OrCa para lhe dar uma nesga de sol...
A todos, votos de boa noite e um amanhecer soalheiro!

Balada para uma menina triste


Balada para uma menina triste...

Dói-me
Tua lágrima
Seca na alma
Como sal
Antes da água
Enxuta...
Escorro
Os dedos
Em traços vermelhos
Sulcos
De afectos
Em que te digo
Calado...
E em ti
Me derramo
Desenhando
Teu rosto
No alvoroço
De ver-te sorrir
Outra vez...

Variações à volta do corpo


Variações à volta do corpo


sobre estas searas vestidas de estrelas
ancas como arcos à volta do ventre
cordas (in)tensas nas espigas nascentes

trémulas madrugadas caladas se acendem
eu sou a colina que desces ausente se
em tons de cristal teus lábios me sentem
em vagem aberta madura colhida
abre-se um rumor no centro da terra
sementes de sal brotam dessa ferida
e travas a fuga na dança da língua
cavalos esvoaçam na ponta das crinas
são espasmos galopes na terra menina
leves borboletas na ponta das unhas
arranhando a pele em lava contida
na seda cetim marcas de ave ferida
se te toco os lábios rasgas cegamente
os véus de veludo desejo lunar
que vesti para ti na pele de vestal
descem sobre mim as asas dos anjos
vindos nos teus dedos são golpes calados
lavrando courelas inundando vales
e o corpo soluça no sulco final

Ilusões de espelho côncavo


Ilusões de espelho côncavo ...


cicatrizes são ilusões vãs de espelho
côncavo que devolve apenas margens
e dúplice se perde no vórtice das areias
espantadas que o vento arrasta noite fora...
na cartografia do corpo são apenas sinais
indeléveis como os sulcos da memória
em afectos de mármore que o tempo
afaga nas primeiras chuvas de outono...
nada lhes acrescenta o fogo. apenas
o escultor lhes traça o rosto que os habita
(ou os renega como resto de poeiras estivais).
letra a letra morta nada conta no poema
apenas a claridade da hora que o revela
e a matéria do desejo na voz alvoroçada...

A Eternidade das Pedras


A Eternidade das Pedras


Eu tenho um poema a despontar,
Como pedras cravadas de ironia.
Eu tenho o poema de todas as manhãs
Que escorre como a humidade nas umbrias
E se resume a umas hastes sensações
Eternamente por todos os homens já sentidas.
Eu sinto a leve inquietação das nuvens negras
Que abriram já outras manhãs
E ensombraram outros espíritos,
Outro seres que no céu leram
Suas dores futuras,
Suas incertezas, suas indómitas dúvidas...
Eu tenho flores insaciadas de mulheres acesas
Em sol nas palhas,
De homens labutando em terras vastas,
De suor perlando as (suas) poucas falas,
De corpos ainda por sossegar,
Nas noites de físico repouso,
Raros sonhos, labuta que nunca verga,
Faina que nunca busca
A quimérica sombra do monte.
Eu tenho o poema das inquietações todas,
Da chuva que vem e traz aluviões,
Da seca que sedimenta,
Da geada que corrói.
Eu tenho o poema de todos os incertos tempos
E sei que sou apenas mais uma voz
Que dá corpo a um mesmo imutável lamento.
Eu tenho um poema...
Mas os sinais nos céus
E a inclinação das giestas
Apenas lembram que o meu sol declina
E em gargalhadas de irónico escoamento,
Cederei o meu lugar neste carrossel da vida
A outros olhos que irremediavelmente verão
As mesmas cores do mundo
E os seus sinais de inquietação
Ou a eternidade das pedras
E dos corpos em fusão...